| 
             
            
            Ruy Espinheira Filho 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
             
			Manuscrito descoberto entre os papéis do poeta, em envelope 
			lacrado que ele, infelizmente, nunca chegou a abrir 
			 
			 
			Não queremos, nem de longe, 
			pensar no que pode haver, 
			poeta Mário de Andrade, 
			se um dia você morrer. 
			 
			Não queremos, porém como 
			impedir o pensamento 
			de se pensamentear? 
			Não morra nunca, poeta, 
			porque há sombras nas sombras 
			só esperando a sua morte 
			para assaltar os jornais, 
			submeter as revistas 
			e desterrar os poetas 
			(perigosos, subversivos, 
			capazes de qualquer coisa, 
			de acreditar em talento, 
			em lirismo, inspiração) 
			— e tudo será tristeza, 
			desamparo, solidão. 
			 
			Eis que estão prontos e indóceis, 
			só aguardando a sua partida, 
			parnasianos tardios 
			armados de metros rijos, 
			estrofes sisudas (com 
			ou sem consoantes de apoio), 
			dicionários de rimas,  
			disciplina de cesuras, 
			iniludíveis sinéreses, 
			impecáveis hemistíquios, 
			implacáveis sinalefas 
			— para saltar desse escuro 
			e a alma nos arrancar! 
			 
			Ah, não morra, Mário, poeta, 
			que o Sol pode se apagar! 
			Porque depois saltarão, 
			do escuro oculto no escuro, 
			cáfilas de não-poetas 
			gritando a morte do verso 
			em impudente algaravia, 
			concreção de logogrifos, 
			insalubres despoéticas 
			verbi-voco-visuais 
			contra o sonho e a poesia! 
			 
			E ainda virão uns outros 
			em linhas irregulares, 
			reboantes, pantanosas, 
			ou em feição de diarréia 
			— que chamam de verso-livre, 
			como se o verso não fosse 
			o rigor que é sua vida! 
			E ainda virão mais uns 
			que trarão palavras frias, 
			sem música, pedregosas, 
			arquitetos do vazio, 
			construtivistas de nada. 
			Não resistiriam, todos, 
			aos combates de você, 
			poeta, mas vencerão, 
			se acaso você morrer! 
			 
			Poeta Mário de Andrade, 
			não nos faça esse vexame, 
			não nos deixe abandonados 
			a apocalipses que tais, 
			como é o jargão espesso 
			dos professores-doutores 
			grávidos de metaplasmos, 
			poéticas objetais, 
			monósticos, semantemas, 
			afirmações axiais, 
			topos, vocóides, sememas 
			e outras disfunções letais! 
			Que ensinarão ser você 
			equívocos de você; 
			que aquilo que você disse, 
			em prosa ou verso, de fato 
			não disse; e o que você disse 
			traz profundas discordâncias 
			daquilo que você disse; 
			e, em suma, aquilo que disse 
			você, você nunca disse; 
			e o que você nunca disse 
			é exatamente o que disse, 
			ou que, ao menos no caso, 
			você queria dizer; 
			e muito provavelmente, 
			o que você disse, disse 
			porque disse o que não disse 
			quando dizia o que disse, 
			se disse mesmo o que disse; 
			se é que isso se deu — e se 
			você foi mesmo você 
			(e eis que, sob aplausos, cai 
			o pano: Magister dixit!)! 
			 
			Por esses e outros motivos, 
			poeta Mário de Andrade, 
			não morra nunca jamais! 
			Porque, se você morrer, 
			será esse horror assim 
			— e o mundo pode acabar! 
			E se não se acaba o mundo, 
			depois que você morrer, 
			o que nos restar vai ser 
			bem difícil de agüentar! 
			 
  
                                                                   
          
              
                                                    |