Jornal de Poesia, o nº 1 do www.google.com  

Soares  Feitosa

 

Theodore Chasseriau, França, 1853, The Tepidarium
 

Balançando devagarinho

 

Mestre Antônio, por seu favor, 
preciso urgente de um rapé de imburana, 
a cera-de-abelha, 
parece que de jandaíra, 
de abelha-limão não é, 
meio falsificada a cera, 
os cabras são safados, botaram saburá, 
talvez serragem, 
mesmo assim cheirou. 
  

Agora o barbante,  
o barbante encerado, 
para costurar o livro 
pois o livro é puro sertão, 
é puro lá-em-casa,  

       quando... 
  

Minha mãe abria, 
com muito cuidado,  
e me mostrava a rainha, 
o cortiço que eram oito, 
a jandaíra da casinha alpendrada, 
adredemente abelha,  
adredemente alpendre, 
adredemente sombra, 
elas zumbiam 
e ninguém tinha medo, 

       quando... 
  

A garrafinha de mel, 
uma xícara e o limão 
(se  não tinha limão, uma casca de laranja), 
a colher esquentada, esfregada-na-mão, 
mel e mel, que eram dois, 
um da garrafa, do frio da serra, mel, 
o outro, das mãos, era mais quente 
e cheiros de mel & mel,  

        quando... 
 

Uma garganta, 
de traquinagem,  
de muita poeira e gritaria na tarde rubra, 
“ah, menino danado”, ela dizia. 
  

Danada era ela, que pegava menino, 
que ensinava menino, 
que amansava mulher 
parideira 
(basta ouvir sua voz, comadre, elas diziam), 
que os meninos nasciam. 
Chovia menino em cima da serra, 
dona Anísia aparando... 
  

Danada era ela que costurava as facadas dos valentões, 
remendava, com agulha grossa, o couro da cabeça 
dos mais frouxos, cacetadas, 
quando Vicente, dito Cabeção, de fama valente, 
que uma agonia paralisou — eu vi —  
arrebatei-lhe a lamparina, e disse: 
— Madrin’Ana, traga um capucho de álcool 
para mestre Vicente cheirar. 

Naquela  noite,  
o serviço de costurar quengos foi concluído 
por uma mulher-feme muito macha 
e um menino gritador e corredor na tarde rubra, 
danado, 
tossidor e lambedor de mel na noite fria, 
que Vicente,  
dito brabo, agoniou. 

       Segurei até o fim. 
  

Danada era ela que um dia esbarrou  
uma cobra coral só com o olhar 
e sabia balançar 
devagarinho,  
para não bater na parede, a rede, 
nem nas costelas da cama, a rede, 
para não fazer, com o balanço, 
muito vento e de balanço vasto 
trazer 
mais tosse ao pé-de-vento-menino 
danado. 
  

Aquela garganta gritadeira se imolara à tarde  quente, 
para quando de noite 
um pano tépido, 
um pouco de mel:  
uma carícia leve, 
levíssima, 
de pluma, 
um pano de quase-fralda, morno 
que eram apenas 
as mãos: 
................................................. 
................................................. 

durma, meu filho. 

         Eram. 
 
 

Vá, mestre (vaqueiro) Antônio, 
e vá ligeiro,  
o burro vermelho tá selado, ali na garagem, 
abasteça-lhe a mochila,  
a gasolina, veja o azeite, as ferraduras, 
complete, 
mande calibrar, e traga 
a imburana, 
quero botar este livro 
para cheirar: 
pr'àqueles tempos. 
  

Pois enquanto mestre Antônio me corria as Sete Portas, 
varejava o Pelourinho, 
a feira dos Barris, 
Calçada,  
Sapateiro e outros baixios, 
fui ao léxico saber das imburanas, 
daquele cheiro, e flor, 
madeira mole,  
madeira de lei,  
por certo uma lei amena, 
que madeira não tão dura,  
não tão pedra, 
não tão cabrália, 
educada no leve e no rangir,  
nunca na pedra, 
boa de fazer uns carrinhos e rodas, 
umas porteiras do meu curral de gado-de-osso fazer; 
[...] 
e um canivete,  
um pequeno serrote, 
ah, meu Deus, 
estas, 
com estas, 
nestas mesmas mãos aqui. 
 

             Pregos. 

             Cravos.

  

Vejam o que disseram os “sabidos” 
da minha imburana, 
pois o que dizem de mim: 

      “Pequena árvore da caatinga, muito esgalhada, 
      (Bursera keptophleos) de folhas penadas...”

Nunca dizem coisa boa com a gente. 
  

Sim,  
esgalhados somos, 
que de muitos filhos, vasta parentela, 
que raízes de céu,  
se for de chifres é 
neles! 
Lá neles! 

Penadas devem ser as almas nossas: 
unha 
coice 
longe. 

Aqui, 
que é perto, 
também, 
se 
não chove 
até 

19 
de março. 

Amém. 

Aqui 
a mãe. 
  

Que também falta 
o pai. 

  
Faltou

Desde.

Faltam.

 
Fiz vinte, 
vinte  livros, 
na mão; 
encerei, eu mesmo, o barbante olímpico, 
olimpicamente algodão, 
quando se fiava algodão; 
o fuso, 
algodão branco de nuvem-verão, 
algodão leve de nuvem-qualquer, 
mesmo que de encharcada nuvem,  
que chove rápido  
de ficar leve outra vez 
(nuvens que as daqui são sempre leves, levíssimas), 
algodão macio de nuvem-dela,  
ela...  
a mãe também, 
ambas. 

          Sejam. 

          Foram. 

          Dorme, menino!

           

E amanhã,  menino danado, 
vê se não me vai correr 
na tarde quente 
para não tossir de noite. 

          Dorme, menino.

  
  

Com a agulha de costurar saco, 
quase daquela mesma 
com que minha mãe costurava cabeças 
que mestre Cabeção, Vicente, 
que de fama valente, recusara olhar, 
e o barbante, 
quase aquele mesmo barbante de pião. 
 
 

          Pião não existe.

Existe barbante, 
existe braço, 
existe mão 
e movimento. 
 

      Existe 
      um atré... 
      atrevimento 
      no jeito de pegar, 
      no jeito de lançar: 
      um polegar na barriga do bólide 
      um indicador em cima do pino  
      onde se instala a laçada do cordão 
      a outra ponta do cordão dobrada, 
      depois de enrodilhar o bicho todo, 
      do prego até acima do meio, bem forte 
      engancha-se-lhe a ponta do cordão no fura-bolo 
      para o arremesso 
      e um puxão ao vento 
      (quem gira é o ar) 
      e unha e calma 
      (tenho a marca-de-unha, até hoje) 
      a calma de pegar  
      o bicho no ar: 
       

          vejam!

  

A areia passa pelo fino furo, 
o movimento também passa: 
cessa-pião. 
 

        Cai. 

        Giramos.  

        Caídos. 

        Chronos,  
        cronômetro-pião, 
        depois vacila, 
        borboleteia 
        e cai. 

        Parou.

  

Que também pode ser 
o movimento 
de uma carrapeta 
de eucalipto:  
aí basta um quase-estalar, 
é bem mais fácil,  
de dedos 
[polegar e fura-bolo] 
a carrapetinha loucamente arremessada 
girando entre os besouros 
de cima da mesa da sala-de-janta 
que se faziam de mortos cascudinhos 
e a gente os “acordava” 
ao giro da lamparina (amarelando) 
de carrapeta. 

E ampulheta:  
 
 

      Mestre Antônio, traga também 
      um maço de eucalipto. 

      Carrapetas, veja se tem.

 
  

E não se esqueça, mestre Antônio, 
jogar o pião não é só rebolar para frente 
tem que ter um empurrar-puxar, 
vai-que-vem 
e unha, 
bote de serpente  
de vasta calmaria, 
mergulho-e-tona,  
algum engenho 

menino 
danado, 
de preferência 
 
 
 

        Costurei um a um. 

        Fiz. 

        Vinte.  
          

        Vinte, 
        às imburanas, 
        às abelhas jandaíras lá de casa, 
        ao mel-mel 
        de um pano morno, 
        dorme, menino.

  

Também a uma menina 
que fiava barbantes 
à lamparina; 
incendiavam-se  
olho e coração; 
amanhã, você me veja,  
menino danado, 
se não vai correr...  
na poeira quente. 
 
 

        Corria. 

  

De não parar, 
todas as tardes, 
de noite também corria,  
em especial 
de lua crescente. 
 

        Durma, meu filho.

 
  

Barbante que se dissolve ao movimento 
bote de cobra-rodilha 
à vista 
aos ouvidos 
aos outros três e aos demais 
indagadores 
de mais coisas  
sentidos 
sei que tem mais coisa  
muito mais 
para além de um simples giro-de-pião  
quando se espatifa o giro 
no estertor e pára 
de borco 
para além de um simples lembrar  
muito além da tarde rubra. 
 
 
 
 

          Não existe pião. 
           
            

          Só giro. 

          E sopro. 
            

          Existem.

 
   

Salvador, madrugada, 06.05.1995


Notas: 

1. Saburá: restos de pólen, uma quase lixo das colméia, que os vendedores de cera menos honestos misturam com a cera para "render" mais. 

2. Danada era ela: a mãe do poeta, Anísia, professora, parteira, farmacêutica, curandeira, das rezas e dos encantamentos. 

3. O pai faltou: a marcha fúnebre é oriunda de Compadre-Primo

4. Cabrália, educado na pedra: João Cabral de Melo Neto, in Educação pela Pedra. 

5. Sopro, de penúltimo verso: "Um vento de Deus pairava sobre as águas"- Gen. 01,02. 

6. Fiz 20: confecção artesanal dos primeiros volumes do livro Réqueim em Sol da Tarde, de um total de 257 exemplares, todos feitos à mão, pelo próprio autor. O fazer físico dos primeiros volumes detonou este poema quando imaginei que seria mais proveitoso encerar o barbante — com que costurava o primeiro exemplar — com cera de abelha, como fazemos lá no interior para que fique mais forte. Assim foi feito. Porém, com a chegada da cera, diligentemente comprada por mestre Antônio, detonou-se outra memória: a imburana, da Serra das Matas — daí o envelope. Cada exemplar do livro Psi, a Penúltima (tipograficamente impresso) trouxe um envelope com a imburana de cheiro. Pena que a Internet ainda não lhe transmita o olor.  

 


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