Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Diálogo de mestres


14.08.2004

Assim, pouco a pouco, Manuel Bandeira regressa do purgatório em que são confinados os grandes escritores falecidos, voltando, em geral, com algumas correções às idéias feitas, às verdades aceitas e aos lugares-comuns dos manuais. Uma leitura superficial catalogou-o desde logo entre os modernistas, o que ele, aliás, expressamente desautorizou — equívoco reforçado pelo diálogo epistolar que durante 22 anos manteve com Mário de Andrade. Ora, essa amizade literária foi, antes de mais nada e nas suas estratificações profundas, um exercício de conciliação e superação de contrários (Ruy Espinheira Filho. “Forma & alumbramento: poética e poesia em Manuel Bandeira”. Rio: José Olympio/Academia Brasileira de Letras, 2004).

Nossas relações, escrevia Mário de Andrade ao correspondente já em setembro de 1923, “foram sempre assim. Tu a dares, eu a receber”, síntese perfeita das suas posições recíprocas. Ele conceituava o amigo como seu Mentor, imagem retórica que surpreende no vocabulário de um modernista, mas a ser aqui tomada em todo o rigor do que significa. Mário confessava receber com “docilidade por demais” as críticas do amigo, abertas e francas, e até impiedosas, observa Ruy Espinheira. Na verdade, Bandeira procurava morigerar os excessos “modernistas” e experimentais do amigo, reagindo, de resto, com o seu próprio temperamento, mas a franqueza ia às vezes longe demais, com as inevitáveis tensões de amor próprio, a tal ponto que Bandeira sentiu necessidade de amenizá-la: “A facilidade com que vais aceitando as minhas sugestões atemorizam-me. Vê lá. Pesa-as bem, (...) Tomaste muito à conta de correções o que fui lançando rapidamente à margem dos teus poemas. Aquilo tudo eram apenas sugestões”.

Mas, não eram apenas “sugestões” o que escreveu sobre “Paulicéia desvairada”: “neologismos fabricados por necessidade ocasional de expressão, sem nenhum propósito de diferenciação brasileira, como ‘luscofuscolares’, ‘suaviloqüência’, ‘jacotam’, etc.; um gosto de substantivar advérbios (...) estendendo-se aos advérbios em ‘mente’ (Sentimentos em mim do asperamente... os perenementes da ligação mensal (...)”. Mais feroz ainda foi a sua leitura de “Macunaíma”, antecipando o que Mário de Andrade reconheceria mais tarde, isto é, tratar-se de obra-prima que não saiu obra-prima. Ele achava que o Macunaíma adulto não tinha a mesma vida do “Macunaíma crila”, pondo, sem querer, o dedo no defeito fundamental: a história perde gradativamente de interesse, tornando-se irreparavelmente tediosa. Eis as partes que Bandeira achava “chatas”: as em que se “adensam algumas lendas cheias de detalhes... a Carla prás Icamiabas, paulificação horrorosa... vernáculo sem sabor nenhum (...)”, e assim por diante.

O que não é nada perto do que escreveu a respeito de “Há uma gota de sangue em cada poema”, em 1925: considerava-o “uma merda”, violência de linguagem que procurou amenizar na carta seguinte: achava tudo “muito ruim”, mas, apesar disso, “um ruim diferente dos outros ruins, um ruim esquisito”, expressão que faria fortuna, inclusive junto ao interessado: “O que faço questão é que você não esqueça duma expressão inefável que você empregou duas vezes em duas cartas diferentes sobre o meu passadismo: um ruim esquisito. Não posso me lembrar dessa expressão de você sem rir gostoso. É tão verdadeira!”.

Mário de Andrade é maior que a sua obra, é nele que geralmente se concentra o interesse dos exegetas e historiadores. Quanto a isso, Bandeira formulou o juízo crítico essencial: “A sua obra vai ser como as de Fagundes Varela e Castro Alves, uma coisa grandalhona de que a gente não pode gostar em bloco, mas tem que aceitar em bloco”. Revelando insegurança mais comum entre principiantes, Bandeira submeteu à leitura do amigo os originais de suas poesias, antes de mandá-las à impressão, com o que teve a surpresa muito comum nesses casos: “Antes de entregar meus versos à tipografia, mandei-os a você, pedindo-lhe que os criticasse: o meu desejo era que você fizesse com eles o que eu, a seu pedido, faço com os seus: uma espinafração isenta de qualquer medo de magoar ou melindrar — crítica de sala de jantar de família carioca, de pijama e chinelo sem meia. Você tirou o corpo fora e limitou-se a aconselhar a supressão de um soneto. Se você tivesse me dado outros conselhos, o meu livro sairia mais magro porém certamente mais belo”.

Não tendo lido os originais, Mário de Andrade colocou-se, entretanto, em posição extremamente suspeita, ao criticar o livro de maneira desfavorável na “Revista do Brasil”, ao que Bandeira reagiu, como seria de esperar, surpreso pela duplicidade que o amigo reconheceu: “Fiquei corrido de vergonha e principalmente triste. É verdade. Essa mesma censura eu me tenho feito várias vezes e não discuto: é verdade (...)” — seguindo-se laboriosas justificações para o que não tinha nenhuma: “Esquece o que te fiz”, concluía ele, sabendo que essas coisas não se esquecem nem perdoam. Bandeira, de seu lado, “defendeu” os poemas censurados, num gesto que, de qualquer maneira, dava o assunto por encerrado.

Figura antonomástica do Modernismo, Mário de Andrade morreu simbolicamente em 1945, abrindo o vácuo em que a geração seguinte se despenhou, sem outro projeto que o de substituir, enquanto escola, o movimento de 22. Segundo João Cabral, aqui citado, “a Geração de 45 não tem nenhum poeta original”, mas se enganava ao atribuir-lhe a invenção a Lêdo Ivo. Na verdade, o nome e a coisa foram lançados por Domingos Carvalho da Silva, no Congresso de Poesia de São Paulo, o que, aliás, não tira a Lêdo Ivo a condição de grande poeta que é a sua, por oposição aos pálidos eruditos da Retórica que em sua maior parte a constituíam.

Na observação de Mário de Andrade, sua correspondência com o amigo escapava ao “estilo epistolar” em que os escritores geralmente se comprazem. Um e outro escreviam “de pijama”, primeiro sinal de autêntica espontaneidade, “contando coisas, dizendo palavrões, discutindo problemas estéticos e sociais... sem mandar respeitos à excelentíssima esposa... sem dançar minuetos sobre eleições acadêmicas e doenças do fígado (...)”. Que esse tom não nos engane, entretanto, porque os correspondentes, ao contrário, eram profissionais que levavam extremamente a sério a dignidade das letras e das artes.

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09/01/2006