Wilson Martins


 



Prosa & Verso, 24.10.1998



O tempo e o modo 

 


 

 

Que haverá de comum entre poetas separados uns dos outros não só pelas gerações literárias, mas também, e sobretudo, pelas gerações sociais, para nada dizer das respectivas singularidades biográficas Refiro-me a Moacyr Félix, com 72 anos; Astrid Cabral, com 62, e Ruy Espinheira Filho com 56, distanciados entre si pelas décadas cronológicas que assinalam as mudanças de guarda, tanto na literatura e nas artes quanto na sucessão das idades.

Moacyr Félix é poeta de 1948, com "Cubo de trevas", mas, apesar dessa referência milesimal, não pertence literariamente à Geração de 45, distinguindo-se do esteticismo pelo empenho político e doutrinário que marcaria, antes, o "engajamento" dos escritores de 1930. Astrid Cabral foi excêntrica de todas as gerações, estreando em 1979 com "Ponto-de-cruz" (fruto temporão de 45) e retomando a poesia dois anos depois, com "Torna-viagem". Ruy Espinheira Filho situa-se entre eles ("Julgado do vento", 1966), liberado dos anátemas antiparnasianos dos modernistas, dos compromissos partidários de 1930 e do rebuscamento retórico de 45 - todos intocados pelos exercícios tipográficos dos concretistas nos anos 50.

Não há, na poesia brasileira do último meio século, um centro geométrico perceptível, tanto mais que em todo esse período Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira dominaram o território como patriarcas ao mesmo tempo contemporâneos e atuantes, além de veneráveis sobreviventes. Lembremos, a esse respeito, a famosa litania recitada por Mário Faustino em 1956, anunciando a Terra Prometida do Concretismo sobre os escombros do que lhe parecia a cidade morta da literatura: "há o sr. Carlos Drummond de Andrade... há o sr. João Cabral de Melo Neto... há o sr. Manuel Bandeira... há a sra. Cecília Meireles...".

De todos, o que lhe parecia mais vivo era "o finado sr. Jorge de Lima", classificado como "pequeno poeta maior". Não era mais entusiástico o seu juízo sobre Murilo Mendes, "um dos poucos intelectuais cultos do Brasil", mas autor antes de "bons versos" que de "bons poemas"; nem sobre Vinicius de Morais, que "tinha muito para vir a ser um grande poeta"; nem sobre Cassiano Ricardo, que, até "João Torto e o arranha-céu de vidro", "não era grande coisa".

Assim falava o procurador geral da República das Letras, rejeitando o que lhe parecia o peso morto dos antepassados. Os modernistas de 1922/1930, apesar de Drummond e Bandeira, pareciam então monumentos algo empoeirados de uma idade que se esfumava no horizonte, incluindo o passado recente representado pelos poetas de 45. Estes últimos tiveram em Fernando Ferreira de Loanda o seu arquivista cautelosamente prematuro - nem por isso menos definitivo com o "Panorama da poesia brasileira" (1951), a "Antologia da nova poesia brasileira" (1965) e a "Antologia da moderna poesia brasileira", em 1967.

Prefaciando em 1991 o que parece ter sido o seu último volume de versos ("Kuala Lumpur"), Lêdo Ivo, que foi, creio eu, o mais alto poeta da geração, assinalava que, em sua atividade editorial, Fernando Ferreira de Loanda lançou praticamente todos os poetas então emergentes: "Foi ele o primeiro editor ‘comercial’ de João Cabral, ao apresentar, nos ‘Poemas reunidos’ (1954), uma obra então rara. E a esse nome consular, acrescentemos os de Afonso Félix de Sousa, Darcy Damasceno, Nilo Aparecido Pinto, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Marly de Oliveira, Octavio Mora, Marcos Konder Reis, Domingos Carvalho da Silva, Walmir Ayala, Gilberto Mendonça Teles, Stella Leonardos e tantos outros que constituem a chamada ‘Geração de 45’[...]."

Tudo terminou, para ele e em grande parte para todos, na melancolia cinzenta dos triunfos extintos: "Os poetas da minha geração, a malograda,/ e os posteriores, os antolhados frívolos da glória,/ esqueceram-se de colocar a chave sob o tapete" (Fernando Ferreira de Loanda. "Ode para Walt Whitman ou Efraín Huerta"). Se Lêdo Ivo foi o maior poeta, o mais espontâneo e emocional dessa geração, Moacyr Félix, seu contemporâneo na poesia, foi o grande poeta retardatário de 1930 que 1930 não conseguiu produzir ("Singular plural", 2ª edição. Rio: Record, 1998). Era extemporâneo entre os estetas puros e extemporâneo continuou nos anos 80 anunciando, em nome do socialismo, os amanhãs que cantam. Os poemas reaparecem agora com podas que os especialistas saberão estudar a
seu tempo.

Foi uma testemunha, como Ruy Espinheira Filho em coordenadas diferentes ("Poesia reunida e inéditos". 2ª edição. Rio: Record, 1998). É o poeta da memória, do passado que não passou e da inquietante condição humana. Tanto quanto Moacyr Félix, prefere o poema longo e, no plano espiritual, a meditação filosófica ("Exumação"). Nisso se distingue de Astrid Cabral ("De déu em déu". Rio: Sette Letras, 1998), poeta intimista, confessional e narcisista, como tantos outros: "Ah incurável romântica!" - é como se descreve e se apresenta com evidente encantamento.

O implacável Drummond, que sabia do que estava falando, embora nem sempre obedecesse à sua própria arte poética, anunciou urbi et orbi as tábuas da lei que trouxe do Monte Itabira: "Não há criação nem morte perante a poesia [...]. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro/ são indiferentes". Trata-se de "penetrar surdamente no
reino das palavras", onde alguns poucos encontram sem buscar, enquanto muitos outros buscam sem encontrar. Assim, as gerações se sucedem, sem substituir-se, sensíveis à rosa dos ventos de cada contexto ideológico - e, por que não dizê-lo? - às modas efêmeras da feira literária. Mas alguma coisa fica, e o que fica dos grandes poetas é, sem tautologia, o que verdadeiramente fica para a literatura. 
 



Leia a obra de Astrid Cabral
Leia a obra de Ruy Espinheira Filho
Leia a obra de Moacyr Felix

 

 

 

 

 

29/08/2005