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Ruy Espinheira Filho



A Canção de Beatriz

para Núbia Maria


Nunca mais.
Sobre isso nunca mais.
Não falo.
Que adianta
se não adianta?
Falar falar falar
e sair
para ser machucada
de novo
e novamente e outra vez e sempre
e ainda mais
dolorida porque chamei
o que estava fechado no
esquecimento
porque
ressenti?
Ah
me desculpe
não digo nada
não
só que meu nome é Beatriz
dos Anjos Silva
39 anos
mas não pareço: desde menina
esta cara
de menina.
Só digo
que o pior mesmo
é a polícia. Muito pior
que os homens, os amantes, os
maridos, muito, muito
pior.
(mas entenda, não falo de
gigolô, que nunca tive: não
sou feia.)
Esses
de farda. Um até
bem-educado
me roubou. Disse: meu bem,
vamos? Quando acordei
cadê
desodorante,
calcinha,
sutiã?
só o dinheiro
não perdi. Foi Deus
graças a Deus
que guiou
minha mão com o dinheiro
para o sapato velho
tão velho que o miserável desprezou.
Desodorante,
calcinha,
sutiã.
Mas eu disse
deixe estar.

Essa gente não presta.
Faz
uma semana
o rapaz motorista na porta da casa dele
o soldado vinha e disse: documento.
E o outro meteu a mão no bolso: não
tinha nada. E o soldado foi
xingando, foi
passando rasteira, foi
chutando a cara
e eu só ali na esquina vendo
tudo
e então saiu
a mulher com o filhinho
nos braços e
pelo amor de Deus o senhor mata
meu marido!
E o soldado: cala
a boca, puta
não tem marido. E ela:
pára com isso.
E ele
chutando o outro: cala
a boca! E deu um tapa
na mulher
e
quando vi
um soco
na testa da criança!

não agüentei, corri, falei: moço,
é uma criança! E ele
me bateu
com as costas da mão
que eu rodei
mas voltei
em cima: é
uma criança! E ele
xingou de tudo e foi andando
e disse
quando voltar não quero ver ninguém
ou levo tudo em cana.
E o rapaz
quebrado
e o filho
com um calombo que crescia
o menininho
nem sei mesmo se vai
se criar.
Essa gente.
Uma vez
meu marido,
um que está comigo e eu tomo conta,
me deu um soco aqui, no lado esquerdo,
e eu caí
e quando levantei
foi com a mão
na pedra
e fiz chuva de pedra nele
e ele pulava
e eu pedra
e pedra
e ele pulando
e então veio a polícia e perguntou:
por que
essa violência?
e eu:
pergunte
pra ele antes
o que ele me fez
e o soldado:
tu é desaforada, aprende, peste!
e foi
me dando tapa
e levou ele e eu na viatura
e eu disse: vocês estão errados. E o soldado:
cala a boca, vagabunda. E eu: não sou
vagabunda. E ele me bateu
de novo
na cara
e meu marido
calado
e me mandaram sentar
no colo dele
e ficaram se rindo
e na delegacia eu contei tudo
mas ninguém que ligou.
E perguntei
a ele
ao meu marido:
com que mão,
desgraçado,
tu me bateu?
E ele estendeu a mão
e eu dei pancada nela
e pedi
um cassetete
pra quebrar ela
mas ninguém deu,
falavam: ela tá doida.
E eu tava
doida mesmo. Eu tava doida. Mas depois
passou.
Só que ainda
vou dar e troco nele.


É por isso que eu não falo mais
nessas coisas. Dá um frio,
uma vertigem
aqui dentro,
uma vontade
de sumir no chão.
Que adianta?
Nada
tem jeito. Nunca. Mas com homem
que a gente gosta, que a gente toma conta,
é menos ruim,

às vezes é até bom.
Eles batem
mas
é só maluqueira
de cachaça e maconha. E jogo. E intriga
de mulher. Ah, ruim
é mulher. Ficam de olho
no homem da gente.
Vão inventando
contam mentira pra ele
e ele então
se esquenta e vem bater.
Por que
eu pergunto
se o dinheiro tá aqui?
se a comida tá pronta?
se a roupa tá lavada?
e não aceito
e quando
um me bate
eu bato nele
do mesmo jeito estilo eu bato nele
meu sangue eu vou buscar.
Não é a polícia,
depois se acerta tudo
no carinho.
Ah
menos aquele
que uma noite chegou e me bateu
e quando eu quis bater
pegou uma cadeira e quebrou
minha cabeça
fiquei zonza,
no escuro,
depois vi:
tava no chão
e tanto sangue
e ele me olhava
assustado
e largou a cadeira e me pegou
me levantou
como se eu fosse criancinha
com cuidado
me carregou
pela rua
chamou um táxi e me levou
pro pronto-socorro
e lá
cortaram meu cabelo
lavaram a ferida
deram doze pontos
duas injeções
e me mandaram pra casa e ele,
me deitou na cama e foi
buscar comida
e leite e ficou
tomando conta
murcho
e eu disse
não tem importância
esquece.
E ele
balançou a cabeça
tão triste
pediu perdão
chorou
e eu passei a mão no cabelo dele
e repeti
não tem importância.
E fiquei boa e a gente
se gostava tanto
e uma noite
ele estava dormindo e peguei um pau
e
quebrei a cabeça dele do jeito que ele tinha
quebrado a minha
e ele pulou
doido
gritando e me xingando e se batendo
pelas paredes
sujando
tudo de sangue
como eu naquele dia
e eu
quis pegar ele e levar
como me levou
pro pronto-socorro
queria
trazer ele de volta e tomar conta
e ficar com ele de quem gostava tanto
mas estava horrível
rodando no quarto
e correu e abriu a porta e
sumiu
ainda escuto seu grito e tenho pena
e pensei
amanhã ele volta
mas não voltou
nem depois
nem nunca
às vezes eu fico lembrando como a gente se
gostava tanto
tanto.
Desodorante,
calcinha,
sutiã.
Bem que eu disse:
deixe estar.
Passou um ano e encontrei ele
fardado
fazendo pose na praça
e falei:
olha
tu é polícia mas é ladrão,
me roubou. Agora vai e faz
uma compra pra mim
pois tu me roubou naquela noite
e me diga
pra que queria calcinha e sutiã:
pra tuas negas ou
pra tu mesmo?
agora anda
e me compra comida
tudo do melhor
ou vou ao teu comando e faço queixa.
E ele foi
e fez a compra
e agora
quando me vê corta volta
aprendeu
quem é Beatriz
dos Anjos Silva
39 anos
que ninguém dá. A cara
não diz
mas não sou mais menina
como antes
de cabelos compridos e cantando
a cantiga da história,
aquela:
Capineiro de meu pai
não me corte o meu cabelo
minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelo figo da figueira
que o sabia beliscou
triste cantiga
mas eu mesma não era triste
sonhava
com o cavalo branco
sonhava
de olhos abertos
esperava
porque o homem prometeu
aquele homem
que dormiu uma noite lá em casa
nem lembro dele
lembro
do cavalo que disse ia trazer
para mim
um cavalinho branco
ele falou
pequenininho e alvo como nuvem
e sonhei
que ele vinha
no dia da primeira comunhão
branco branco
como o vestido feito por minha mãe
que Deus a tenha e não deixe
sofrer por mim
mas ele não veio
nunca veio
ficou só esta lembrança de sonho
e um resto de raiva.


Ah, não ligue
pra Beatriz, um olho quase perdido,
mas que ainda faz inveja nessas mulheres aí
umas podres
todas com despeito
porque tenho um homem pra dar carinho
comida bebida roupa lavada
e ele sempre vem
às vezes some uns tempos mas já volta
a gente briga
se pega
se unha
mas se gosta tanto
por isso elas invejam e quando eu passo
gritam
lá vai ela
a vaca a
metida a merda
mas eu
faço que nem escuto
e vou
de cabeça erguida
dando o desprezo que elas merecem
essas
as crocodilas.


Capineiro de meu pai.
Meu pai não tinha capineiro: era ele mesmo
na roça.
Tinha
os pés sujos
as mãos duras
o rosto fechado.
Um dia me mandou pro mundo
que é lugar
de desonradas
dizendo graças a Deus tua mãe não viveu pra ter
este desgosto
e foi tudo como um pesadelo e nunca mais
acordei.
Mas não culpo ele:
espero
que me perdoe
esteja vivo ou morto
pelo amor de minha mãe.
Ah, por isso
é que não quero falar. É que peço
me deixem.
Me esqueçam
como quero esquecer.
Lembrar somente
as ingazeiras o riacho o dia
nascendo, no morro
a mula Candelária
a cachorra Raposa
meus irmãos pequenos
que é feito deles?
mas me deixem
nem isso
que era bom demais
pra isto aqui agora que é pior sem fim
minha Nossa Senhora
mas eu vou levando
e até que penso
não é tão ruim
que somos a gente nesta sociedade
só a gente
que cuida de tudo
se acaba
homem menino mulher
e até por amor
se desgraça
mas é a gente
somos a gente mesma
não é ninguém
por isso eu agradeço
levanto as mãos
e agradeço
porque é só a gente mesma
não é como lá fora.


Capineiro
de meu pai
agora meu pai sou eu
eu
que me mando pro mundo
este mundo
eu mesma meu pai
e minha mãe
muito mais minha mãe
eu me consolando como ela fazia
ela tão boa que morreu chorando
pedindo pra não morrer
como eu ainda escuto de noite
dormindo
às vezes também acordada
minha mãe
acho que agora é santa
já era santa
como gostava dela
como gosto
uma vez conheci uma mulher
morava aqui perto
no alto da ladeira
uma mulher moça que escolhia homem
podia escolher pois não faltava
praqueles dentes brancos
aquela pele
morena de veludo
aqueles peitos
empinados
cinturinha
fala
macia
olhos
queimando como um fogo
preto preto
aquela
Raquel
pois um dia a gente
foi acudir:
tinha
se cortado toda com caco de vidro
e uma velha disse:
lembrou
da mãe
quando lembra da mãe se corta toda bate
a cabeça nos móveis na parede
pobrezinha
e um mês depois
eu soube
comprou um remédio
umas bolas
e destilou
e tomou tudo pela veia e vomitou
que era só sangue
cada grito era sangue
quando voltou do hospital estava caída
cadê mais
arranjar homem?
os olhos
apagados
depois sumiu
foi pedir esmola ou acabar de vez
pra não lembrar mais da mãe.
Por isso digo
até que tenho sorte. Cortada já fui
mas não por mim.
Uma vez a navalha
de uma puta velha
por causa de homem
que queria ir comigo
não com ela
e ela
me cortou
olha aqui no braço
e eu acertei
uma garrafa no nariz da bruxa
mas foi só
aí foi só
ruim mesmo
foi com ele
Arnaldo
que não durou muito
morreu
brigando com parceiros de erva e pico
Arnaldo
alto bonito cabelo liso
gostou de mim
dividi
o quarto com ele
e era tudo bom
até
que ele endoidava na rua e chegava
pra quebrar
e um dia
chegou tão que me pegou
e disse vou te matar
era forte
fiquei sem defesa e ele enfiou a faca
por sorte
pegou numa costela aqui
quebrou a ponta
só cortou
mesmo assim foi muito sangue
o rapaz vizinho viu
gritou
Arnaldo correu
mas sujo de sangue e a polícia
prendeu ele.
Não passaram três dias
fui lá
disse pro delegado: solte meu homem
foi eu que ele furou
não foi você
e ele falou: esse sujeito
lhe mata qualquer hora
e eu respondi
a vida é minha
e ele soltou Arnaldo
e ele voltou comigo
e eu acho que ia acabar furando ele um dia
mais cedo ou mais tarde
mas os parceiros furaram antes
no peito e nas costas
na mão esquerda também
o rosto era como se ainda estivesse vivo
só um pouco pálido
e eu fui ao enterro com um vestido preto bonito
que tomei emprestado
e ficava como se tivesse sido feito
em meu corpo.
Nem dois meses
e eu já com Luís
como até hoje
às vezes a gente briga se pega se unha
mas se gosta tanto
ele é bom
não foi ele
que fez mal ao meu olho
este aqui
não foi ele
quem foi não quero dizer
nem pensar
só quero esquecer a fera
e me operar
pra enxergar direito novamente


Ah
já cansei de correr
posto
clínica
hospital
não é aqui é lá é mais adiante
é não sei onde
é
na puta que o pariu
cansei cansei
mas não posso cansar
não quero ficar cega
Nossa Senhora me ajude
eu assim e o miserável nem nada
quem vai mexer?
me lembro do gari:
morreu
e ficou morto e o assassino
ele
na rua pra fazer mais
pra ofender meu olho.
Chega
não falo mais
não falo
se falasse vocês nem imaginam
mas não falo
guardo minha boca
que adianta?
Me deixem no meu canto
que eu aqui fico pedindo a Deus pra não cair nunca
no mundo lá de fora
que é muito pior.