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Soares Feitosa


Rio Macacos

 

para José Alcides Pinto: O Galo,
para Castro Alves: Cachoeira de Paulo Afonso
para Virgílio: Bucólicas
para Maomé: O Alcorão
para autor desconhecido: Livro de Jó
para o Terceiro Milênio: chegante!

 

 

Três léguas entre minha aldeia e a fazendola,
uma estradinha de pedregulho serpenteia
e três vezes atravessa o mesmo rio.
 

Porque as vertentes disseram às águas:

— Desçam!


E as águas desceram!
 

Agora venho cobrar notícias da primeira gota gotejada
da folha,
grossa folha do jatobá mais alto,
porque me consta que ela caiu da mais alta
numa folha mais abaixo, talvez num ninho ela caiu,
e mais outra gota e outras se molharam em comunhão
de copas, cópulas do criar, sob o relâmpago subitamente 
emudecido:

— Desçam!
E as águas desceram!
 

Nem precisou do trovão para assustá-las, 
elas já vinham descendo...

— Desçam!
E entre vertente e mar
(o mar que sobe e desce todas as manhãs),
quem o segura?
E entre montanha e mar, mexo-me eu, 
entre as vertentes da Serra Branca e a Volta-do-Rio, 
Macacos, eis-me o rio, rio Macacos
(estas alpercatas pisadeiras pisaram chão de vasto mundo),
três vezes cruzava a estrada de terra o mesmo rio, ou,
se preferem, três vezes o rio é quem cortava;
os rios cortam! 
 
                                — Rio?!

Quem chamaria aquilo de rio? 

Era apenas uma grota risível,
aquela, do jatobá mais alto, que se iniciara viagem
atravessada sob meus rastros, molhados 
numa manhã de abril.

 

Em primeiro passo, a grota-rio corria para minha 
esquerda;
logo ali, mais abaixo, se me voltava pela direita,
para no lugar Joaquim Lopes me atacar
pela esquerda, onde me perdia a vista e o suspiro
que manhãzinha, bem cedo, aquela água molharia
teus pés, amor, 
e teus caminhos,
orvalho e cântaro molharia.

 

Porque pela noite — já manhã, agora —
os galos dormem ligados
nos ponteiros remotos de uma deusa-manhã,
que jamais se ouviu dizer que os galos,
que jamais se ouviu dizer que o Sol,
nem a aurora se lhes falhassem — galos —,
mesmo que debaixo de grossa cerração,
daqueles nevoeiros de cobertor de lã,
mesmo assim, 8h00 da manhã, 
escuro que seja,
os galos já abriram o dia, faz tempo que abriram, 
nos horários
certos,  há dois milênios, 

dia:
                                                  é um Novo Dia,
nas mesmas métrica e rima certas, por linhas... cegas... 
                                                  do Ontem!

 

A quem prestam contas os galos?

Por que essa insânia, sob qualquer tempo,
frio ou quente, um ruflar de asas, de um grito súbito
ecoado n’amplidão dos escuros?!

Que bichos outros tão regiamente, a natureza os paga
também regiamente, não poderiam
saudar o dia!?

 

Mas nenhum, mesmo dos outros galináceos, 
nem o Homem,
esse implume de dois pés, bicho, nenhum,
porque só o galo, sob um porte guerreiro, de batalhas
jamais perdidas!, 
[...]

Galo,
Galo-rei!,
ó supremo Rei da criação!,
sob a tenaz do teu bico, as fêmeas de tua raça,
mesmo que ensaiem uma corrida ligeira, as fêmeas
te entregam lestas o segredo das gemas,
numa manhã de ouro elas entregam!

 

Porque as vertentes disseram às águas:

— Desçam!


Porque as gargantas-de-Deus, 
numa sub-manhã de cuidados,
disseram ao Sol:

— Nasça!

 

Obedecidos são os ordenamentos

             [mesmo que você me prove
             que Ele não existe...
             que talvez nem, 
             — mesmo assim!]
porque ninguém mais próximo d’Ele:
      • o grito das madrugadas,
      • o trom das corredeiras.

 

Post Scriptum: 

Disseram os aurorais, 
num tom mais brando,
gentilmente às estrelas, 
à Lua e à Vésper eles disseram:

— Por favor, recolham-se, 
escondam-se, vocês estão nuas sob a luz,
s'escondam, e só nos voltem... quando for...
de noite...!

 

 
Porque à nudez dos teus olhos, meu amor (digo-te eu),
      jamais precisei de sóis para luz minha,
jamais segui estrelas em minha viagem:
 
— Vem, vamos, viajemos aos escuros da noite
que a Aurora é coisa minha
coisa minha é a Aurora
só isso tenho
isso só
a ti
.

 

Fortaleza, noite alta, 23.2.97

 

Notas sobre Rio Macacos (e oficina)

1 - Dedicatórias: 

1.1 José Alcides Pinto: Belíssimo poema O Galo, "como estão próximos de Deus os galos e os vertentes!". Alcides usa vertentes, no masculino, no sentido de fontes d'água, o que também é correto, enquanto que uso vertentes, femininas, como sendo a aba oeste da Serra das Matas, donde descem  todas as águas. 

1.2  Castro Alves, homenagem aos sequicentenário do Poeta, 14.03.1847 - 14.03.97, Cachoeira de Paulo Afonso, onde fui buscar  trom das corredeiras, para a penúltima estrofe de Rio Macacos. 

1.3  Vergilius: Bucólicas,  onde fui beber o tom dos verdes, e da aventura  daquela mísera gota inicialmente caída numa  jatobá (Sub tegmine fagi - em Roma não havia jatobás, nem faveleiras, nem juazeiros!), até se transformar, a gotícula, no caudal das corredeiras. 

1.4  o autor desconhecido: Livro de Jó, o tom dos discursos de Yhaveh, Jó, 38/40 

1.5  Maomé: O Alcorão,  a sumprema poesia do livro maior dos muçulmanos, pura Poesia! Vejam um exemplo de uma página aberta a esmo (tradução de Mansour Challita), como é belo o Alcorão! 
 
"Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso. 
Não houve uma época da história em que o homem não era mencionado? 
Criamos o homem para comprová-lo. E outorgamos-lhe o ouvido e a vista. 
E fosse ingrato ou reconhecido, guiamo-lo na senda da retidão. 
Mas para os descrentes, preparamos grilhões, golilhas 
e um fogo flamejante" (Alcorão 76  1-5)

E mais: 

"E jogou as montanhas sobre a terra para fixá-la e impedi-la de mover-se,convosco, e criou os rios e a estradas para que pudésseis orientar-vos."  Idem, 16.15

2. A aurora é coisa minha: verso de Gerardo Mello Mourão, in Peripécia de Gerardo, ed. GRD.

3. Rio Macacos: nem sei se ainda existe, mas lhes garanto que água ele não tem!

Escreva para o editor

Da generosidade dos leitores

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Cleópatra ante César

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Paula Meneghetti

Rio Macacos... 
Que lindo... 
Todo esse bucolismo, a existência quase compreensível da natureza... 
me lembrou Alberto Caeiro. 
Parabéns! 

Paula

 

 

Wilson Martins

 

Um poeta da terra nordestina

 

Para Soares Feitosa,

o mundo existe, não como paisagem,

mas como bloco existencial de matas e rios

 

É Soares Feitosa ("Psi, a penúltima". Salvador: Papel em Branco, 1997), poeta da terra nordestina, não pelo pitoresco exótico, mas como integração pessoal e orgânica, como parte física e palpável do Brasil, como visão ao mesmo tempo épica e lírica do rincão natal. Pertence à família dos nossos poetas daWilson Martins terra, os Joaquim Cardozo, Ascenço Ferreira, Raul Bopp, Juvenal Galeno, Thiago de Mello, mas, é preciso dizê-lo, com amplidão muito maior no que se poderia chamar a incorporação cósmica. 

Segundo a frase célebre, é um homem para quem o mundo exterior existe, não como paisagem ou quadros de uma exposição, mas como bloco existencial de matas e rios, pássaros silvestres e animais domésticos, homens e mulheres em estreita convivência com cavalos e cabras, burrinhos de carga, a família e o meio, cenas da infância, as estações do ano, humanidade e ecúmeno de que faz parte, expressa, aqui e ali, com fervor patriótico. E, dominando tudo, o fator catalítico do tempo que passa e do tempo que dura. 

Para ele, a Pátria são os caminhos que pisa, as armadilhas de caçar passarinhos, as cobras que rastejam, as abelhas que produzem cera e mel, a paisagem esturricada, as montanhas e as árvores que conhece pelo nome, as frutas e os campos, o sofrimento do homem, a tragédia do clima e o milagre da chuva, a resistência resignada com que aquele mundo enfrenta a adversidade, a recompensa das manhãs e a impiedade do sol, o sentimento de abandono em que a região é mantida. Não são temas "literários" e o ufanismo de Soares Feitosa nada tem de simplório: é, antes, com amargura e revolta que encara a realidade: 

"Auriverde pendão de minha terra, que a brisa do Brasil beija e balança... famintos do meu Brasil precisam sonhar com um pão. Não há país como este, em se plantando, ó Caminha, sim, plantaram, plantaram nas algibeiras onanistas do metal. Em se plantando, seu Caminha, o que dá, não dá, o que deu, não deu, nunca deu... o que deu, o gato comeu, o que deu, o rato roeu". 

Os motes gerais dessa poesia, nas suas próprias palavras, são a infância, o chão, os matos, as pedras, os céus, as águas, o sertão, os bichos grandes e miúdos, oficinas e tralhas, cheiros e sons! mofumbos & alecrins, perfumes — tudo expresso no idioma dos grandes poetas universais, ecos da poesia primeva, Homero e Saint-John Perse, Walt Whitman e Victor Hugo, porque Soares Feitosa não é um "ingênuo" do romanceiro popular, não é o falso sertanejo da cidade nem o verdadeiro sertanejo iletrado, mas o sertanejo autêntico hipostasiado em poeta culto. 

É a "matéria do Nordeste" que forma a substância dos seus cantos épicos e dos seus transportes líricos, como na extraordinária "Antífona", uma das mais belas odes jamais escritas em língua portuguesa. É poema a ser lido por inteiro e em voz alta: "Venho de outras terras, meu capitão, não sou da beira do mar, eu venho desd’onde uma bola de fogo, volúpia de luz, volúpia de cor, cavalgava o horizonte e desabava, queda brusca por detrás da serrania (...)". 

As suas raízes humanas e poéticas, como as de Homero (literalmente evocado), estão nos cantadores das gestas populares: "Acudam-me os cantadores: Ignácio da Catingueira, negro e escravo; Romano da Mãe d’Água; vocês também fundaram o galope, a cantoria; Pinto do Monteiro, Otacílio, dos Batistas, a batistada toda, venham todos (...). 

Leiam o saboroso "Rio Macacos": "Rio?! Quem chamaria aquilo de rio? Era apenas uma grota risível (...)", explicando nas notas didáticas que acompanham todos os poemas: "Rio Macacos, nem sei se ainda existe, mas lhes garanto que água ele não tem!".

Soares Feitosa traduz o folclore em versos literários, escritos num idioma culto, sem concessões tolas ao populismo de carregação, assim escapando dos lugares-comuns previsíveis e estafados: "O sol, ainda ferro de brasa, chiando como um ferro de ferrar boi, soltando chispas, para bater a poeira, as fagulhas do dia, abanar-se um pouquinho da tarde quente, se esfregava nos penachos da palmeira mais alta (...)."

A mais a seca, maldição divina, seguida pelo milagre da água: "As águas em minha terra são efêmeras,/ parideiras, fêmeas, efêmeras eram as águas...". Com a primeira chuva, explodem as sementes mais apressadas: "Noutra chuva,/ outra leva nasceu (...) e mais outra, sempre mais uma leva/ de sementes nasciam e sucumbiam/ um raspar das enxadas (...)". [Panos Passados] e [Dormências]. 

Anexado ao volume, Soares Feitosa oferece ao leitor o contacto físico com o Nordeste e o Brasil antigo, sob a forma de um envelope com sementes de imburana-de-cheiro, por ele mesmo torradas e moídas: é o perfume da terra que perpassa pela obra, não só em sua materialidade física, mas também como representação por assim dizer olfativa da poesia da terra. 

Trata-se, então, de um poeta sertanejo, limitado ao regionalismo típico das letras? Longe disso: é um poeta lírico de harmônicas universais, inclusive as sugestões místicas; é também um saudosista, na medida em que são por natureza saudosistas os temas históricos e as evocações sentimentais, inspiração para belos poemas, como, por exemplo, "Perdidos e achados". 

Não podemos tampouco ignorar-lhe o lado ultra-moderno, criador do "Jornal de Poesia" pela Internet, em 1996, por não haver encontrado nenhum texto de poesia em língua portuguesa pelas ondas etéreas da eletrônica. E agora lá estão eles, os poetas, consagrados e principiantes, o que já é, em si mesmo, uma forma de poesia: a poesia do nosso tempo.

 

[Fac-símile de O Globo (Prosa & Verso), página inteira, 26.4.1997].

Soares Feitosa, dez anos

Jorge Amado

Escreva para o editor

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Cleópatra ante César