Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Rodrigo Magalhães


 

O Legado de Beltrano

 

 

Breve Catálogo das Miudezas de Beltrano
 

 

 

 

 

 

Formou, pois, o senhor Deus ao limo da
terra, e assoprou sobre o seu rosto um sopro
de vida; e recebeu o homem, alma e vida.
                    (Gênese, 2: 7)

 

 

 

 

 

Próximo...

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

Início desta página

Rodrigo Petronio [2003]

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

 

 

 

 

 

Rodrigo Magalhães


 

Poética
 

 

Notícia do poema
 

Jacó Lima da Silva, 21, foi morto a tiros, ontem, na
favela  do  Cabeção. O  acusado é o  seu  irmão, o
vigilante   noturno   Esaú   Lima   da  Silva,  25.  O
homicídio   ocorreu  durante  uma  roda  de  samba
organizada pela comunidade da favela. O motivo do
assassinato ainda é desconhecido.

 

Poema da notícia
 

 

O pandeiro e a mão caindo e batendo. O ritmo.
 

 

À esquerda, os outros, Rosa e a mão de Esaú na mão
de Rosa.
À direita, os outros, Jacó e os olhos de Jacó nos olhos
de Rosa.
 

 

Bumbo.
 

 

Pra lá, um terreiro. O homem chega, a galinha corre.
A galinha percebe só de estar no olho do homem.
 

 

A alça de Rosa. O ombro deslizando por baixo.
Cavaquinho, reco-reco. Ponta de língua.
Lábio deslizando por cima.
 

 

Jacó sorri sem os dentes. A tensão na boca
e o risco na boca. Jacó sorri o elástico.
 

 

Esaú cisma. Cavaquinho, reco-reco e atabaque.
Cisma.
 

 

O pandeiro e a mão caindo e batendo. O bolso e a
mão caindo.
 

 

Esaú e os olhos de Esaú nos olhos de Jacó.
A galinha percebe só de estar no olho do homem.
 

 

Esaú, Jacó. À esquerda e à direita, os outros.
A mão subindo, a pressão do dedo,
o pandeiro, o gatilho. O ritmo.

 

 

Bumbo.
 

 

O morto sorri o elástico. Só o chocalho.
Levemente.

 

 

Próximo...

 

 

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

Início desta página

Tarcísio Holanda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

Rodrigo Magalhães


 

Laika


Eles largavam as perguntas lentamente
e diziam que ela veria nos lábios.


Pra lá do céu, em qual ponto
Deus já recolhe estrela pra luz não conter as nuvens?
Até onde o que se alcança é nuvem?



Latiu.


Alguns encostavam suas dúvidas.
O mais paciente ( e a mão escorrendo
o pêlo) arriscou enquanto derramava
o punho:


Afora, quando a Terra sobe o fuso
pra girar, se há céu para cobrir o fio
e as roldanas?



Silêncio,
pois o olho que ela trazia,
ali,
morria no azul.




* Laika, a cadela soviética, foi o primeiro animal a ser enviado ao espaço. Diz-se que ela faleceu durante a viagem. O autor, contudo, acredita que a morte veio depois.
 

 

Próximo...

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

Início desta página

Paulo de Tarso Pardal

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

 

Rodrigo Magalhães


 

Xifópagos
 

 

‘Caim, acorda! Acorda, Caim!’ ‘Hã? Que é?’
‘Tô com sede. Quero água.’ ‘Agora, Abel?’
‘Agora.’ ‘Não pode agüentar só um pouquim?’
‘Ô Caim!’ ‘Tá bom, tá bom. A gente vai.’
‘Vixe, só tem água no poço!’
‘Nada não. A gente faz o arrodeio.’
 

 

Caim e Abel, lado a lado,
indo e cedendo. Vindo e cedendo.
 

 

Afora, as mãos esquecem. Impedem.
Não se aprendem dadas.

 

 

Próximo...

 

 

Da Vinci, Homem vitruviano

Início desta página

Nelson Ascher

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

Rodrigo Magalhães


 

Os fungos


Como já não bastassem, outrora,
enfurnados em meu pão, meu
queijo, minha bebida; o alheio,
o cogumelo do batente, o grão
de Fleming na penicilina ( ainda
o mofo, o ancestral morto na carne
tombando no retrato),
eles insistem lá fora e batem na urna para entrar.
 

 

Próximo...
 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, David, detalhe

Início desta página

Izacyl Guimarães Ferreira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

 

 

 

 

Rodrigo Magalhães


 

Assim falhou Zaratustra


O canguru sabe a sua bolsa,
e o pequeno sabe o que lhe falta.


As abelhas nunca enganaram o pólen,
sabem que é pro vôo, sabem que não é de comer.


É quase de trepar.


E os homens, anos a fio,
raspando e polindo a pedra,
o bronze, o ferro,
e era algo de abrir: chave de fenda.


Chave de fenda,
agora,
já é algo de matar.


Manhã,
no trânsito, um rapaz
com o punho acima à procura
de um rapaz abaixo.


Baixou o punho, e o Homo erectus
não mais sabia o que fez da pedra.


Nem as cartas, antes ao poema ou às lágrimas
de canto, de um canto
do rosto que não busca o que aspira,
                                                   anthrax.


Pois Maria, a dos Curies,
já não tinha às mãos o radioativo
quando olharam e constataram:
– General, deve ser de matar.


Logo, desenvolveram no horizonte
a técnica extraordinária
de pender e despencar.


Longe, sob o que era céu
e calou-se escuro,
o Homo sapiens não mais sabia o fogo,


incendiava.

 

Próximo...

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Pipelighter

Início desta página

Rodrigo Marques, ago/2003

 

 

 

 

28/03/2005