Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

 

 

 

 

 

Rodrigo Magalhães


 

Claustrofobia


João Carlos, 1970 – 2003.


Todos os sorrisos e farpas
de um homem na abscissa do tempo.


Cada gesto mínimo e mesmo
a explosão, outrora, de um músculo
no vazio abafado entre dois números.


E, assim, enterramos nossos mortos: espremendo.


Qual os objetos,
apertando-os para serem mais portáveis
e não gritarem para os vivos o escuro
do escuro-túmulo.


Daí eu me pergunto: Não parece castigo
colocar as datas na vida, quando a morte
já luta por espaço no esquife e, mais tarde,
pelo corpo contra os fungos?
 

 

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Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

Rodrigo Magalhães


 

O muro


O menino em equilíbrio no muro.


                       As pernas tenras,
                       o peso tenso,
                       os olhos prenhes de milagre.


De súbito,
a queda.


           A primavera-centelha de Dubcek, Praga.
             O desfile dos tanques de Stálin, Moscou.



Frouxo,
o córrego de sangue,
ante-sala da cicatriz.


          Os cem mil da praça celestial, Pequim.
            Vinte e quatro execuções em público, Pequim.



Novamente o menino subirá.
Pois lá, acredita:
serei mais alto
serei mais nobre
e crescerei forte mais rápido.


          O muro caía de cima do homem, Berlim.


A criatura sabia cedo,
apesar do chão e da queda, que
ele, o muro, será melhor
embaixo.

 

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Tintoretto, Criação dos animais

Rodrigo Magalhães



Formandos de 1936


Olha a foto dos formandos de 1936.
No sorriso, este vigor de astro nos dentes;
sonhos, consistente uivar nos olhos;
hormônios latejando a eternidade que não existia.
Amiga, repara na semelhança da substância,
a anatomia inconfundível, o barro lógico.
Eram jovens, eram homens,
vivos, livres e mortais.
Ali, o fungo que vive o segundo estático,
lúcido, ao comer a alquimia de momento em arte;
o preto-e-branco a rugir em mar de nostalgia;
o suspiro de gramofone, este sebo de retrocesso.
Nada esclarece esta úlcera a doer o fim da vida,
esta química que sofre, debilita,
este cais sereno, o baço na vista
– a saber que o iodo e as demais coisas se sublimam.
Obscura, a razão deste silêncio engasgado na terra,
a censura que é a cica dos cajus,
esta sina, esta certeza
que tudo forma, ferve e oxida.
Então, não percamos o vapor dos minutos.
Não deixes resvalar sem incêndio
esta flor em luzes, incenso,
que não será tua,
presa ao futuro de alguma fotografia.

 

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José Saramago, Nobel

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Ivan, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Filosofia

Rodrigo Magalhães


 

Deus e João no mundo cão


Primeiro, a emboscada e o chão era de barro.


Não deu para ver se alvos ou mestiços.
Mas não eram machos.


Tavam numa espreita, dessas em que o sujeito mira acocorado,
da qual só restam dois: o estampido e o baleado.


Cabul,
era o míssil nomeando a cidade.



Após o acontecido, comi um tanto da poeira.
Que era do chão. Que era de barro.


E só via um sol de fazer ouro na retina,
que, entre os gumes de minha sina, alastrava o seu mormaço.


Era lá, à espreita
pelo Tomahawk em assovio
          – parecia o simum no canudo,
                               alguém dizia.



À espera do suspiro que nos finda,
cobriu-me a certeza de alguns nomes sobre a força dos cajados.
Foi o coronel. Ele honrou o seu gado, a sua família.
Soprou a minha vida.


Alguém se persignava.
 


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Leonardo da Vinci, Embrião

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Paulo Bomfim

 

 

 

 

 

28/03/2005