Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856) Soares Feitosa Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)
 
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Penúltimo Canto
 Variação nº 1, a dúvida



Dedicatória:
    para Artur Eduardo Benevides
    de longo curso e mar-oceano, capitão
    e buscador e achador destes "graais".
.
Epígrafes:
    “deixavam espaços em branco,
    em branco,
    para as coisas que não sabiam”
    (Ezra Pound, Canto 13,
    tradução  Irmãos  Campos
    e Décio Pignatari, Ed. Hucitec)

 

Homem algum sabe contar a história completa. 
(anônimo, manuscritos do Mar Morto)
O falador ficará sem resposta?
(livro de Jó, 11, 2)
 
Disse-Lhe Pilatos: O que é a verdade ? 
(João, 18, 38)
.
— O que mais terei deixado de esconder?

Se aprendi as respostas, 
nada me perguntam; 
se perguntarem, 
não saberei, pois 
as respostas estavam... 
não consigo lembrar onde as guardei.

Uma resposta, 
em boa resposta sendo, tem que ser  mais 
rápida do que sacar 
uma arma: a faca, o cacete, o varapau, 
o disparar do alçapão, do estilete, 
do espinho, ou da tarrafa de pegar 
o peixe, e roubar 
a idéia no ar, 
que também pelo silêncio 
uma indignação silenciada pode ser.

Falar é compulsivo, 
desafiar os sons, recebê-los de volta, 
ouvido-ósseo, escutar “lá-dentro” 
o pulsar dos sinos 
e receber, 
fazer retornar o eco 
e as palavras retornar, que retornadas 

                            — falar sozinho, e por que não? — 
nos resguardam das respostas 
jamais dadas.

Dizem  que existe um armazém alfandegado 
das respostas; 
para uma viagem, o passaporte, 
e um livro,

                         — quem sabe, não seria 
                         o Livro de Areia, do argentino?

vasto livro de anotações extensas 
esquecidas, 
para aquela, ligeira, a resposta, 
na ponta-da-língua, 

                         — não pode titubear — 

cal virgem que n'água incendeia

                         O que direi, de que me defendo?

resposta de fogo, se é que existe, 
como ousá-la 
se o interlocutor é terrível e impaciente 
e parece 
zombar e sabe balançar 
horizontal a cabeça 
— e os olhos fixos — à direita e à esquerda, 
a cabeça e o sorriso, 
enquanto aos lábios trêmulos 
as tuas palavras e as respostas 
medram medo 
e se afogam no soluço.

                    O que te garante que e(E)le te acreditou? 

Recusarias: 
               o alicate, a unha, 
                             o desterro e a tenaz?!

.
Ite, 
incendiate!, disse Loiola...
.
Como assim, 
como é que se incendeia, 
preferes de fósforo, napalm ou gasolina?

Melhor de lenha molhada, Bruno, 
que não pega fogo imediato; 
geme, fumaceia e chora, 
apenas, que talvez tivesse dado: 
                                            tempo.

.
Roçar dois paus, bater um ritmo de noite inteira, 
o ritual 
acender, 
ajuntar a chama ao leve sopro e uns matinhos 
secos 
requer 
tempo 
quando 
preciso da resposta aqui, ligeira, o lingueirão de longo fogo, 
camaleão de língua vasta, 
e o enlace 
agora, agora, pois 
daqui a pouco serei a lembrança distante de um homem, 
mera lembrança de quem: 
já morreu.

Terei eu sido cúmplice de alguma vagareza, 
louco de alguma pressa 
—- e a resposta — 
onde, 
onde a resposta?

.
No palheiro,
disseram,
entre as agulhas,
na palha,
palha seca,
coração de fogo rápido:
Cal, caliça, cáustico, cálice,
calem-se,
que é melhor
calar.
.
Calei-me.
.
Que muitas vezes,
a melhor resposta 
está em João,
capítulo 18,
versículo 38,
talvez
seja mesmo melhor a certeza
¿...?
da dúvida-interrogada.
.
————————» calou-se «————————
.
Ou, preocupado
(afinal, era mesmo um assassinato)
João tenha-se esquecido de
anotar.
.
Ou,
de pura misericórdia,
nos teria poupado
(Ele ou João)
do perigo de 
....
saber.
.
O senhor procurador, 
algum tempo depois da cena do lavabo, 
foi substituído por Marcellus, 
que ninguém jamais deixou de ser 
substituído, procuradores inclusos.
.
Os deuses também foram substituídos 
e os leões se alimentaram fartamente.
.
Um obscuro poema, o de “J”, o Javista, 
não saberia dizer se era o maior de todos, prevaleceu 
e tem expulsado todos os outros deuses e reduzido 
todos os outros poemas a simples literatura.

Inclusive os deuses e os poemas destas terras, 
a partir de 12 de outubro de 1492, "depois d’Ele", 
foram expulsos, 
substituídos, 
ridicularizados, 
extintos, 
todos.

Alguns daqueles velhos deuses, expulsos, 
até que não eram tão maus, dizem; 
alguns faziam chover, 
outros se aplacavam de sacrifícios humanos, 
que afinal não tem feito muita diferença: 
temos aperfeiçoado com absoluto sucesso 
as técnicas de matar...em nome 
                                             d’Ele.
O senhor procurador (o da pergunta) 
até que se esforçou para alterar a história, 
e parece não era uma pessoa muito má, 
até que se esforçou, 
tanto que é citado nominalmente, 
sem nenhuma mágoa, numa belíssima oração, 
milhões de vezes todos os dias.
.
E se o senhor procurador contou 
a alguém o que “ouvira”.
(quem sabe, só uns balbucios, afinal, 
o acusado ainda não sofrera quase nada 
comparativamente 
ao que tinha para sofrer, 
mas deveria estar 
bastante aterrorizado 
com os interrogatórios 
e a gritaria)
e se Ele, o acusado, chegou a responder 
bem baixinho, 
não há registro confiável 
de que Lhe fora escutada 
a resposta.
                                                 Se Lha tiver escutado, 
                        o senhor procurador 
            não contou 
                        a ninguém, 
                                     e se contou, 
                                                  perderam-na, 
                                                                extraviaram-na,
                                                                                   perderam, 
                                                                              perdemos, 
                                                           perdemos tudo.
Salvador, BA, noite alta, 07.09.1995

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Comentários:
  1. Roberto Pomeu de Toledo
  2. José Romero Antonialli, uma primeira navegação
  3. Henrique Northfleet
  4. Luiz Bello
  5. Nilto Maciel
  6. Joaquim Alves
  7. José Romero Antonialli, uma segunda navegação
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ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

          Tudo é surpresa de sua parte. Tudo é uma caixa de surpresas. Ou melhor: várias caixas de surpresa, uma dentro da outra, como nos jogos infantis de cubos.

          Surpresa número 1: o livro como objeto. Que livro! Que objeto! É o encontro do artesanal com a alta tecnologia. Do que há de primitivo, que é fazer as coisas com as mãos, e por si só, com paciência e esmero, com o que há de avançado, que é dominar os recursos do computador e usá-los com destreza. Desse encontro nasceu uma nova mídia.

          Surpresa número 2: A variedade do que tem dentro do livro — fotos, cartas, currículo, notícia de jornal, críticas, envelope com cheiro.

          Surpresa número 3: Sua história pessoal, de alguém que só começou a escrever aos 50 anos.

          Surpresa número 4: Que depois disso tudo, dessa mistura de simplicidade de colecionador de recordações com criatividade de cientista maluco, de artesão com piloto emérito de computador, e de muitas outras coisas, ainda apareça, lá no fundo, desvendada junto com o último cubo, uma literatura de qualidade. Ainda não li tudo. A leitura da poesia me exige um ritmo e um clima que não me está disponível todo dia. Vou lendo seu livro aos poucos. Mas do que li gostei — o "Penúltimo Canto, a Dúvida", principalmente.

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Primeiro comentário sobre o poema
Penúltimo Canto,
variação nº 1, a dúvida
de Soares Feitosa,
por 

José ROMERO Antonialli

romeroa@rantac.com.br





I - 25.05.2000:

1. Relatório do impacto inicial 
 

Um poema intenso, provocativo.
Patético, sem pessimismo.
Dramático, sem pieguismo.
Uma interrogação belíssima.
Um clamor da alma.
O gemer do espírito prometeicamente acorrenatado à rocha do solene e fleugmático desconsolo?...
 

2. Relatório de navegação:

O poema, distribuído em 14 estrofes, faz-nos lembrar dos 14 passos da cruz.
A verdade crucificada 14 vezes... Infinitas vezes?

E a sede causticante do saber, do buscar a resposta.
Uma resposta que pode machucar, ferir, queimar.

A verdade buscada - e sempre fugidia? - que moveu a Inquisição com seus torquemadas, que imolou tantos Brunos.
Em nome dEle?
Em nome de um fanatismo megalômano, teomiminizante.

E onde buscar a verdade?
Nos lábios que se teriam calado diante da pergunta de Pilatos?
Nos palheiros, nos infindáveis e labirínticos meandros do fogo da paixão, da reflexão, do inebriar-se?

E a quem dirigir a pergunta?
A ouvidos incertos, alheados, transcendentemente surdos?

E qual o preço a pagar?
Qual a taxa alfandegária para liberar as verdades? 
A verdade?
A Verdade?
O alicate - a prisão?
A unha - a tortura?
O desterro - o exílio, o isolamento?
A tenaz - a angústia, a opressão?

E crucificou-se a verdade.  A Verdade?
E a conseqüência disso no coração do homem?
A piedade? A misericórdia?  A solidariedade?
Não!
O fanatismo, as perseguições, a cristianização etnocida, as guerras santas, as santas guerras.
As catequizações esterilizantemente maquiavélicas, maniqueístas...

Em vão o seu sacrifício?
Em vão o ter ingerido o cálice até a última gota?
E este cálice?  Como ingeri-lo?
E este cale-se? Como tolerá-lo?

E o que nos ficou?
Uma verdade que, se existe, não conhecemos.
Extraviou-se, perdeu-se.
(Para sempre?)
E nós nos perdemos com ela.
E nós nos extraviamos com ela.

E se não há, accessível, pronta para uso, essa verdade que nos conforte, que nos oriente, que nos ensine o que fazer de nossa vida, de nossa existência?
Fruste o enlace?
Eros e Psique, divorciados... até quando?
Como acelerar otimamente o alquímico processo?
Não estaríamos investindo, por insciência, num terrível adiamento?
 

3. Relatório de impacto final:

O poema, denso, nos maravilha, pela intensidade do patético desse ser que se sonda, pavidamente impávido, à beira do abismo - sem fundo, sem fim? - ... De si mesmo?

Notável! Grandioso! Transtelúrico!
 

Do admirador,

Romero.

[]s.

José Romero Antonialli, uma segunda navegação
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Henrique Northfleet

Mestre Feitosa, és também (como todos) homem impotente frente a verdade, esta resposta que, por certo, foi ouvida e esquecida. Teu poema, descobre o penúltimo selo, que jamais será entendido, apesar de nos ter sido revelado: como a palavra, que escrita, deixa-esvair-a-verdade. A verdade que, saida da boca, se forma do nada do ar (o roubar a idéia do ar!) e se perde mesmo na tua pena (ou no tão moderno teclado do computador) que garatuja o acontecido - com tua terra, com teu povo.

Penúltimo Canto, a dúvida?

Acredito que descreves, sim, a certeza, de que o „Novo Mundo“ perdeu sua cultura-mais-do-que-sua-inocência ao ter sido „descoberto“.

Muito menos do que um canto apocalíptico, o teu poema nos revela a razão pela qual fomos expulsos do paraiso!

Mestre Feitosa, apenas numa coisa estás equivocado-por-modéstia: nem todos os outros poemas foram reduzidos a simples literatura posto que neste teu Penúltimo Canto o contradizes!

Um abraço

Henrique Northfleet
16.09.2000

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LUIZ BELLO 

           Penúltimo Canto, trajetória entre uma pergunta inquieta e a revelação final do perigo de saber... Um poema que flui, baila e galopa ao longo de marcos miliários distribuídos por Pound, Sócrates, pensadores bíblicos e até o anônimo redator de um sábio manuscrito do Mar Morto. Tem alpiste suficiente para alimentar todo um viveiro de pássaros intimidados. E substância bastante para aspergir, sobre o meio em que brotou, a água benta amigável de uma mensagem decodificada. Cal, virgem, quando ferve na água e no verso de um artista sensível, convida à reflexão.

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NILTO MACIEL

De: Nilto Maciel  
Enviada em: Domingo, 4 de Junho de 2000 14:18
Assunto: Comentário sobre Penúltimo Canto
 

Grande Poeta Soares Feitosa, receba um caloroso abraço de amizade e
admiração. Li o "Penúltimo Canto" como se estivesse morrendo. Não por
sentir dor, não por estar desesperado, não por me sentir velho. O poema
é um apocalipse, um final, quase um ponto final na poesia. Ainda haverá
o que dizer poeticamente, depois desse "Penúltimo Canto". Não
perguntemos nada aos católicos, aos protestantes, aos chamados
evangélicos, aos muçulmanos — que eles são todos pilatos com cara de
cristo. Ou então não perguntemos nada a ninguém. Estou cansado, sem
fôlego, exausto, depois da leitura do seu poema. Não por ser ele longo.
Também é longo o "Lusíadas". E eu o li com muito prazer. Aprendi muito.
Continuo aprendendo, embora não seja mais tempo de aprender nada. Talvez
seja apenas o tempo de apreender as palavras, o sentido delas, da
traição, da guerra, da fome, da iniqüidade, da vileza, de tudo o que
está na poesia maior, naquela que diz tudo, como este "Penúltimo Canto".
Porque o último canto não existirá nunca. Abraços cordiais do admirador
Nilto Maciel
 

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Joaquim Alves" <allegro@clix.pt>
 
 

Pronto, 
cá estou de volta para comentar este MAGNÍFICO poema-manifesto.
Pergunta-antes-de-resposta: porquê "penúltimo"?????
Esqueça a minha pergunta, porque aí vai comentário!!!!!
Viu?
O seu poema, uma vez mais, tem este ritmo frenético dos 18 anos! 
Sim, dos 18 anos. 
Também pode
ser dos 20, para quem tenha nascido em anos 50 ou antes.
Continuo a ter esses anos - 18-20 - e é isso que sinto nos seus poemetos.
Desculpe, nos seus superpoemas.
Onde é que a sua memória mora?

Sempre coisas boas.

joaquim alves, português da beira baixa
(interior de portugal-pequeno, mas muito belo!)
 

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Segundo comentário sobre o poema
Penúltimo Canto,
variação nº 1, a dúvida
de Soares Feitosa,
por 

José ROMERO Antonialli

romeroa@rantac.com.br


II - 03.06.2000:

ECOANDO O PENÚLTIMO CANTO...

Entrada:  O poema, cal virgem nas águas da emoção, da sensibilidade...
              Turbulência...  Calor...  Fogo....
              Causticou! Inquietou! Arrebatou!
              E eis-me de volta, eco pálido do seu verbo forte.

Garimpagem:

(Alguns comentários punctuais)
 

. "O que mais terei deixado de esconder?"

O tempo:  um passado em relação ao futuro.
A preocupação: o esconder, o ocultar, o não revelar.
O referencial: este poema;
                     o poema da busca;
                     a vida;
                     a existência.
Depois de lido o referencial, o que mais ainda ficou por revelar?
E esse caminho do revelar, do revelar-se, seria ele infinito?
Infinitamente infinito?
Por isso, também, o "Penúltimo Canto":
                            o penúltimo poema;
                            a penúltima vida;
                            a penúltima existência;
                            .................................
É de se notar, também, a ambigüidade do termo mais.
1) O que ainda haverá a esconder?
2) O que é que terá ficado mais escondido?
 

. "Uma resposta
  .....................
  uma indignação silenciada pode ser."

A boa resposta, a que nos plenamente satisfaça, tem de ser:
1) rápida, captura instantânea de um átimo de deslumbramento.
    E, acima de tudo, o tempo urge, o tempo voa!
2) roubo. Tem de ser uma apropriação-transgressão.
              Ela precisa invadir, precisa ousar, 
              precisa abeirar-se das fímbrias do ainda-proibido.
              O botim a que todo Prometeu aspira...
3) "uma indignação silenciada"  "pelo silêncio".
     A boa resposta indigna, escandaliza, 
     fere a sensibilidade de muitos.
     E precisa ser silenciada, calada.
     Pelo silêncio, pelo desprezo, 
     pela indiferença, pela desqualificação .
     Isso, o menos.
     Pelo silêncio, pelo silenciamento,
     pela mordaça, pela tortura,
     pelo extermínio, pela aniquilação.
     O ter achado, algo plenificante.
     O falar, algo temerário, insensato, perigooso.

     Mas...

. "Falar é compulsivo"...
   Falar para quê?
   Para
   "fazer retornar o eco
   e as palavras retornar"...
Quem busca, quem acha,
 ou quem acha que achou,
precisa falar, ainda que sozinho, 
na esperança doida, doída, 
de encontrar um eco,
que faça as palavras de origem
retornar mais límpidas, mais claras, mais suas.
O símbolo para aquele que o profere 
também é um símbolo:
um símbolo do qual ele viu uma faceta,
 uma profundidade, um sentido.
Mas sabe que quando fala,
 fala de coisas que (bem) entende, 
de coisas que intui,
de coisas que, também, para ele,
estão envoltas em densas brumas.
De aí, a importância do retorno,
uma e muitas vezes.
 

.  "que retornadas"
    ......................
   "nos resguardam das respostas
    jamais dadas."

As palavras, quando retornam de sua jornada
às alfândegas do Verbo, 
nos resguardam, nos protegem...
De quê?
Resposta insólita:
Das respostas jamais dadas.
(Trecho ultradenso, de difícil penetração!)
Há respostas que jamais foram dadas.
Qual o prazo de validade da assertiva?
Há respostas que talvez jamais nos sejam dadas.
E isso, para nossa proteção.
Há respostas que nos chegam, e delas  falamos
("Falar é compulsivo").
E uns a recebem com alegria.
Outros, com indiferença.
Alguns com espírito de contradição.
E há aqueles outros possuídos 
de grande zelo-copyright de Deus...
E a fogueira da execração quando se apagará?

E há respostas que - negadas - nos defendem de nós mesmos.
E há respostas que  - negadas -  nos defendem do mundo.

(Mas tudo isso que temos falado é pouco
para se levar a um entendimento, ainda que leve,
do que aquelas densas palavras acobertam 
com um diáfano e espesso véu.

A resposta, aquela, é qual 
"cal virgem que n'água incendeia."
Linda e intrigante imagem!
A resposta, aquela, é virgem:
inaudita, inédita, quase inefável!
A resposta, aquela, é cal:
calor, fogo, turbulência,
na água da emoção, da sensibilidade!
A resposta, aquela, incendeia.
Calcina, reduz a cinzas: a Fênix à espera...

(O que mais falar diante de tanta densidão?)
 
 

Para finalizar, a terceira estrofe, núcleo, no meu entender,
de todo o poema.
É aqui que os arquétipos se mostram mais primais.
Por isso, o verbo é aqui especialmente denso,
exigindo do leitor um tremendo esforço
 para dele vislumbrar uma mera - e grandiosa - sombra.
 

. "Roçar dois paus, bater um ritmo de noite inteira,"

Dois paus: um será o excitador, o ativo, o masculino.
                Aquele que busca.
              : o outro será o excitado, o receptivo, o esperativo, o feminino.
                Aquela que é buscada.
Eros e Psique.

E há entre os dois um roçar, um leve tocar, quase imperceptível.
E todo o processo de produzir o fogo está afeito a um ritmo,
feito de sons e de pausas intercalados. 
E há de durar uma noite inteira, um período inteiro 
em que o que tenta produzir fogo  (Quem é ele?)
está mergulhado em densas trevas.  E os dois paus também.
 

. "ajuntar a chama ao leve sopro"
Chama: fogo, paixão, arrebatamento.
Sopro: espírito.
O Batismo de Fogo?
O Batismo do Espírito Santo?
O encontro em enlace do eu com o Eu?

Mas quanto tempo, quantas vindas isso requer!
E eu "preciso da resposta aqui, ligeira, o lingüeirão de longo fogo,"
"camaleão de língua vasta,"
Camaleão: transformações, metamorfoses,
 mascaramentos, personações.
Por quantas vindas, por quantas vidas, por quantas metanóias, 
é mister passar, 
até chegar a Hora?

"e o enlace
agora, agora, pois
daqui a pouco serei a lembrança distante de um homem,
mera lembrança de quem:
já morreu."

Aqui o Poeta fala da preocupação central que anima,
com vívido fogo, 
o seu viver, 
o seu viver-em-buscar,
o seu buscar-em-viver.
Ele já sabe que está predestinado - inexoravelmente - a experimentar
- como ele ou como o outro ele? -
um momento de imane glória:
aquele momento sagrado, em que os dois pólos 
complementares de si mesmo
irão se unir em transcendentais núpcias.
Mas ele deseja isso para agora,
enquanto ele é ele mesmo,
vestindo a personalidade que atualmente atua
no palco do seu ser, 
no palco do seu estar-sendo.
Amanhã ele será ele mesmo,
mas será também aquele que hoje ele está-sendo?
Essa, talvez, a pergunta
(ou uma das perguntas)
de cuja resposta estamos resguardados...

E encerra o poema (pois é aqui que está o clímax de tudo):

"Terei eu sido cúmplice de alguma vagareza,"

Cúmplice de quem?
- Dele mesmo,
 de uma parte dele mesmo que rejeita e acolhe 
a um só tempo.
(E aqui teríamos material para farta reflexão.)
O fato é que percebe que, de alguma maneira,
ele está contribuindo para adiar o tão esperado momento,
coroamento do seu longo jornadear.

"louco de alguma pressa"
 Ou teria, de alguma maneira, apressado de mais o processo,
perdendo com isso alguns dados fundamentais
para o seu mesmo realizar-se?

Como sabê-lo?
Como agir de maneira a optar pela estratégia ótima,
aquela que o liberte, desta vez?

" - e a resposta -
onde,
onde  a resposta?"

______________________
 

Soares Feitosa:

Desculpe-me por ter invadido, atabalhoadamente, os escaninhos
do seu sagrado.
O discursivo, ao  se deitar sobre o poético, tem esse dom
de deformá-lo, de apequená-lo.
Mas esse mesmo discursivo, depois de ter mostrado uma nesga
de sombra do poema, tem de se recolher a sua pequenez e
remeter o leitor para uma viagem mais nítida.
Essa a sua desculpa.
Tive de voltar ao poema, uma e muitas vezes.
E agora o ecôo.
É que a palavra, quando é forte,
penetra fundo, provocando ecos 
que não podem ser sufocados.
Exatamente como você disse!
Obrigado, grande vate!

Do seu admirador,

Romero.

Abraços cordiais.

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Herodias, by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 


 

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