Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

Nilto Maciel

Baturité, CE, 30/01/1945 - Fortaleza, CE, 29/04/2014

Sandro Botticelli, Saint Augustine, Ognissanti's Church, Firenze

Livros de inteiro teor:


Poesia:


Conto & Crônica:


Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Fortuna:


Alguma notícia do autor:

 

Nilto, 2003, Fortaleza - Ceará

 

Nelly Novaes Coelho

 

Micheliny Verunschk

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

Nilto Maciel


 

Bio-Bibliografia:


 

Formou-se pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará.

Morou em Brasília de 1977 a 2002, tendo trabalhado na Câmara dos Deputados, Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça do DF.

Em Fortaleza, foi um dos fundadores da revista O Saco (1976).

Editou, de 1992 a 2008, a revista Literatura.

Tem contos e poemas publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês. O Cabra que Virou Bode foi transposto para a tela (vídeo), pelo cineasta Clébio Ribeiro, em 1993.

Organizou, com Glauco Mattoso, Queda de Braço — Uma Antologia do Conto Marginal (Rio de Janeiro/Fortaleza, 1977). Participa de diversas coletâneas, entre elas Quartas Histórias – Contos Baseados em Narrativas de Guimarães Rosa, org. por Rinaldo de Fernandes (Ed. Garamond, Rio de Janeiro, 2006); 15 Cuentos Brasileros/15 Contos Brasileiros, edición bilingüe español-portugués, org. por Nelson de Oliveira e tradução de Federico Lavezzo (Córdoba, Argentina, Editorial Comunicarte, 2007); e Capitu Mandou Flores, org. por Rinaldo de Fernandes (Geração Editorial, São Paulo, 2008).


Obras:

  • Itinerário, contos, 1.ª ed. 1974, ed. do Autor, Fortaleza, CE; 2.ª ed. 1990, Scortecci Editora, São Paulo, SP.
  • Tempos de Mula Preta, contos, 1.ª ed. 1981, Secretaria da Cultura do Ceará; 2.ª ed. 2000, Papel Virtual Editora, Rio de Janeiro, RJ.
  • A Guerra da Donzela, novela, l.ª ed. 1982, 2.ª ed. 1984, 3.ª ed. 1985, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, RS.
  • Punhalzinho Cravado de Ódio, contos, 1986, Secretaria da Cultura do Ceará.
  • Estaca Zero, romance, 1987, Edicon, São Paulo, SP.
  • Os Guerreiros de Monte-Mor, romance, 1988, Editora Contexto, São Paulo, SP.
  • O Cabra que Virou Bode, romance, 1.ª ed. 1991, 2.ª ed. 1992, 3.ª ed. 1995, 4.ª ed. 1996, Editora Atual, São Paulo, SP.
  • As Insolentes Patas do Cão, contos, 1991, Scortecci Editora, São Paulo, SP.
  • Os Varões de Palma, romance, 1994, Editora Códice, Brasília.
  • Navegador, poemas, 1996, Editora Códice, Brasília.
  • Babel, contos, 1997, Editora Códice, Brasília.
  • A Rosa Gótica, romance, 1.ª ed. 1997, Fundação Catarinense de Cultura, Florianópolis, SC (Prêmio Cruz e Sousa, 1996), 2.ª ed. 2002, Thesaurus Editora, Brasília, DF.
  • Vasto Abismo, novelas, 1998, Ed. Códice, Brasília.
  • Pescoço de Girafa na Poeira, contos, 1999, Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, Brasília.
  • A Última Noite de Helena, romance, 2003. Editora Komedi, Campinas, SP.
  • Os Luzeiros do Mundo, romance, 2005. Editora Códice, Fortaleza, CE.
  • Panorama do Conto Cearense, ensaio, 2005. Editora Códice, Fortaleza, CE.
  • A Leste da Morte, contos, 2006. Editora Bestiário, Porto Alegre, RS.
  • Carnavalha, romance, 2007. Bestiário, Porto Alegre, RS.
  • Contistas do Ceará: D'A Quinzena ao Caos Portátil, ensaio, 2008. Imprece, Fortaleza, CE.
  • Contos reunidos (volume I), 2009. Editora Bestiário, Porto Alegre, RS.
  • Menos vivi do que fiei palavras, 2012. Editora Penalux, Guaratinguetá, SP.
  • Sôbolas Manhãs, 2014. Editora Bestiário, Porto Alegre, RS.


Prêmios:

  • Prêmio da Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 1981, com o livro de contos Tempos de Mula Preta;
  • Prêmio da Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 1986, com o livro de contos Punhalzinho Cravado de Ódio;
  • Prêmio “Brasília de Literatura”, 90, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Distrito Federal, com A Última Noite de Helena;
  • Prêmio “Graciliano Ramos”, 92/93, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Estado de Alagoas, com Os Luzeiros do Mundo;
  • Prêmio “Cruz e Sousa”, 96, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Estado de Santa Catarina, com A Rosa Gótica;
  • Prêmio VI Prêmio Literário Cidade de Fortaleza, 1996,
  • Prêmio Fundação Cultural de Fortaleza, CE, com o conto Apontamentos Para Um Ensaio;
  • Prêmio “Bolsa Brasília de Produção Literária”, 98, categoria conto, com o livro Pescoço de Girafa na Poeira;
  • Prêmio "Eça de Queiroz", 99, categoria novela, União Brasileira de Escritores, Rio de Janeiro, com o livro Vasto Abismo.

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

Nilto Maciel



Dor


Não tenho mal nenhum, senhora minha,
como se fosse puro, imaculado,
como se fosse um anjo, um serafim,
como se fosse deus, imune à dor.


Eu nada sinto, dor nenhuma tenho,
quer na cabeça, quer no amargo peito.
Não tenho mal nenhum, senhora minha,
perfeitamente são me sinto e puro.


Se existe mal em mim, se existe dor,
é a de morrer tão cedo, a pleno sol,
envelhecer como qualquer mortal.


E a dor maior, minha senhora bela,
é dentro d'alma, bem profunda e aguda,
a dor chamada angústia, a dor de ser. Possessão


Nada é meu,
nem a vida,
que é minha.


 

 

 

 

 

 

 

 

Nilto Maciel


 

SÍSIFO

Para Cátia Silva



O meu destino é semelhante àquele
imposto ao legendário rei coríntio,
que carregava ao ombro para o monte
pedra que despencava em avalancha.


Buscava novamente a rocha bruta,
subia o monte e, mal chegava ao cimo,
de suas mãos sangradas escapava
o mineral, que ao solo retornava.


E assim jamais o seu suplício ao fim
chegava, mesmo exausto, quase morto.


O meu suplício é semelhante ao dele
? a cada “não” que tu me dizes, subo
minha montanha, carregando pedras,
que se desprendem de meus ombros, rolam
ladeira abaixo, e volto a ti, pedinte.


E tu de novo dizes “não”, sorrindo.


Apanho minha rocha, subo o monte.
Se conseguir chegar ao cimo e lá
deitar a pedra, ao chão fincá?la, o “sim”
de ti terei; porém fui condenado
a carregar meu fardo vida afora
e vê?lo escorregar pelas escarpas.


E quando quase morto me encontrar,
sabendo, embora, que somente “não”
a mim dirás, ainda assim direi:
“Melhor este suplício, a ser feliz
longe dos olhos teus, vizinho à morte”.


 

 

 

 

 

 

 

 

As Carnaubeiras de Catuana

Nilto Maciel



Soneto crepuscular

Para Francisco Carvalho



Nos campos de meu pai antigamente
as chuvas inundavam meus pensares
e do pomar do céu pingavam frutos.


Ventos ninavam aves repousadas
nas árvores vigias de seu sono,
sentinelas da luz crepuscular.


As ovelhas baliam suas crias,
os vaga-lumes alumbravam tudo
e a solidão das vacas nos currais.


Duendes se assustavam co’os trovões.
Na escuridão dos quartos o perfume
do amor gemente à sombra dos lençóis.


Invernos que de mim se evaporaram
nos campos de meu pai antigamente.

(2.9.97)



 

As Carnaubeiras de Catuana

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

Nilto Maciel


 

 

 

A versatilidade verbal de Luciano Bonfim

 

 

Em dois livros – Dançando com Sapatos que Incomodam e móbiles [hestórias e considerações] – Luciano Bonfim se revela um escritor inventivo, versátil, que sabe se desviar do lugar-comum da literatura, da narrativa tradicional e linear.

O contista não somente se vale da intertextualidade, ao colar trechos de obras clássicas ou contemporâneas, dar-lhes outra roupagem, como presta homenagem a alguns dos ícones da Literatura, ao conceber novas formas a fragmentos de suas criações, como em “O Cálice dos Desesperados”, numa recriação substantiva de um momento da Metamorfose de Kafka, como se lê aqui: “Até que um dia deparou-se com aquele monstro horrível, e sentiu mesmo uma imensa vontade de esmagá-lo”. Em “combinações aleatórias” as homenagens a escritores são claras. Nelas e no processo de diálogo intertextual, Luciano vai dos clássicos (Sören Kierkegaard, Juan Rulfo, Clarice Lispector) aos mais novos, como Caio Fernando Abreu e Jorge Pieiro.

Afeito à intertextualidade, Luciano sabe dialogar com outros textos, não somente os literários. Ao se aproveitar do recurso intertextual, ele o faz muito mais conscientemente do que inconscientemente, como se vê ao citar nomes e títulos de obras.

O contista demonstra afinidade não somente com escritores, mas também com compositores e pintores, como é o caso de Van Gogh. “Ilustração” se inicia assim: “No campo os girassóis lembram um certo pintor holandês ridicularizado em vida”.

Luciano também se socorre muito da descrição, que vem do seu amor à pintura e ao desenho. Como neste trecho de “Variações”: “Existe, após as casas, um imenso terreno baldio e um pequeno sítio onde cultivam flores e hortaliças; também possuem uma colméia”.
Vejam-se as imagens, pinceladas, descrições em “Após a Neblina Cinzenta do Crepúsculo”, cuja poesia se inicia no título: “Em toda a sua extensão a nossa vila turva-se de vermelho, rosa, roxo, verde, florais – estampas de um enorme e denso colorido. A lua nestas noites, desde as primeiras horas, talvez influenciada por tantas mudanças, compõe-se bordô, – reforçando detalhes e apagando eventuais manchas que possam dissimular imagens”. O próprio narrador (“Naquela mesma lua, na espessa calda que recobre a noite, os traços de Zuita Benoar ganham uma conotação cada vez mais confusa – aspecto de rascunho engolido pela paisagem”) se encarrega de enfatizar a tendência de Luciano pelo desenho, pela pintura, pela paisagem. Em “Aves de Arribação” (clara homenagem a Antônio Sales) se lê: “Durante algum tempo, a corda tensa no espaço e o corpo oscilando suspenso no ar, permaneceram compondo a paisagem, tendo o desvão azul e frio do céu como fundo arbitrário de imagem” (grifo nosso). Em “Estúpido Cupido de Giz” (absorção de parte da letra da música de Neil Sedaka, na voz de Celly Campello, gravada em 1959) outra descrição, outra pintura: “O firmamento é um imenso prato raso, onde todos os canais noturnos do inferno astral convergem para além do firmamento blue”.

Em Luciano há muita poesia, sobretudo nas metáforas, que são abundantes: “Numa noite difusa, silenciosamente, as casas devoraram os seus moradores”. E, se não são metáforas, estamos diante de pura literatura fantástica. Veja-se a poesia deste excerto: “Não me encontrando [em meu coração] especializei-me em vislumbrar abismos”.

Dois de seus personagens – Margot e Gaspar – aparecem em diversas composições, o que levaria o leitor a imaginar a construção de um romance. Talvez houvesse essa pretensão no escritor. Porém em nenhum momento se percebe nos “móbiles” ou nos “passos” do primeiro livro o espírito de romance.

Em “Terceiro Caderno” o ser fictício está perdido e nem sabe como narrar, ou o que narrar. O de “Não Existe Apenas uma Forma de Amor & Prazer” mais se assemelha a ensaísta, num ensaio do amor e do prazer carnal. Em “Segundo Rascunho” o narrador-personagem está em completa solidão, desespero: “As ruas não estavam desertas, eu estava”. Em “Sobre Naturezas Humanas” o tema central é o ser humano, como a dizer: “Assim são os humanos”. Em “Por Causa do Gato Lilás”, cujo protagonista é um animal, “Tarsila, uma gata siamesa, que conviveu conosco por alguns dias, apaixonou-se pelo ‘gato lilás’ de Aldemir Martins – uma reprodução da tela que possuímos em casa”. Seria a felina também pintora? Em “Correspondência Violada” o tema é a solidão do escritor, os sonhos literários, e seu cotidiano doméstico.

Em muitas peças nada se vê de descrição ou mesmo de informação geográfica. No entanto, aqui e ali se percebe como espaço das ações a cidade do interior. “Sina” é todo composto de referências ao ambiente rural, em vocábulos e expressões de uso comum no sertão. “Viúva de Marido Vivo” também retrata o ambiente de pobreza, a seca. Em “Apesar de.” “Uma pequena chuva ainda insiste, e desliza pelos telhados da pequena cidade”.

A chuva é outro elemento freqüente na obra de Luciano, talvez exatamente em face da escassez dela no Ceará. Em “Blues da Finitude.” se lê: “Uma pequena chuva, dessas que não divergem opiniões e nos estimulam ao sexo, lambeu por toda a noite a cidade insone”.

Um conto só é bom se tiver um bom desfecho. Como em “Negócios Importantes para o Futuro da Empresa”: “Dali a pouco, ela pegaria a sua filha no colégio e eu me encontraria com o seu marido, para tratarmos de negócios importantes para o futuro da empresa”. Belo deslinde, inusitado, embora realista.

Luciano se serve das mais variadas formas ou modalidades de comunicação: a carta – o que não é novidade – (como em “Cartas a Van Gogh”), a propaganda, a conversa fiada, o anúncio, a frase feita, o lugar-comum, o ditado (em “Na Brevidade das Fugas” a pessoa que dialoga com Maria e também o narrador fazem uso constante dessa linguagem). O mesmo recurso é utilizado em “De Natureza Cíclica”. Há até uma “Conversa entre Liquidificadores” (ilegível para o leitor humano, talvez legível por outros liquidificadores, que falariam de si mesmos ou dos humanos, de suas engrenagens, de seu trabalho diário, etc. Sim, sobre o que “conversam” os liquidificadores? Sobre os humanos ou sobre si mesmos?) Em “Noturnos Ópios No 9” Luciano aproveita a fórmula das questões de prova escolar. Em “Variações” encontramos até o que se poderia chamar de relatório oficial: “Casas: iguais e diferentes. /Moradores: análogos e divergentes. /Situações: semelhantes e distintas”. Em “Apesar de.” a forma utilizada é a do diário, o que também não é novidade.

Muitas de suas composições são bem curtas, constituídas de diálogos breves, quase enigmáticos. Outras são compostas apenas de uma fala e uma narração breve, como em “Implicações Clandestinas das Herméticas Influências”. “Intervenção Urbana” seria uma síntese de um acidente ou suicídio. Em “Original Lugar Comum” ele brinca com as fórmulas filosóficas, os sofismas, etc. Em “A Realidade Segundo H. P. Down” de novo a linguagem dos filósofos ou uma paródia filosófica. Ou conclusões lógicas, como em “O Filho Alérgico e a Mãe Protetora”.

Luciano também aproveita com cuidado a seqüência de vocábulos ideologicamente análogos, para construir a frase, o enunciado narrativo, como em “Manhã Guardada”: “Confissões, namoros feitos, mágoas, traições refeitas, álcool, amores desfeitos, mulher amada, punhais, olhares penumbros, bichas pavão, lésbicas fumadas, viciados utópicos – a praça para além dos bancos”. Ou em “Filhos de mãe d’água”.

Tudo isso faz de Luciano Bonfim um escritor absolutamente moderno, novo, embora não se desfaça das fórmulas consagradas de narrar ou escrever, não se afaste dos narradores essenciais e, acima de tudo, não pense que inventou a roda, a pólvora ou mesmo o conto.

 

Publicado em OVEROMUNDO

 

Link para Luciano Bonfim

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

 

Cida Sepúlveda

 

Maria Georgina Albuquerque

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci, página do editor

 

 

Nilto Maciel

 

João Clímaco Bezerra e a arte da novela

 

Talvez não seja mais tempo de se debater o que sejam conto, novela e romance. As estruturas dos gêneros foram se modificando: o conto deixou de ser narrativa linear, o espaço narrativo do romance se reduziu, etc. Escritores e editores decidiram a questão com a ajuda da régua: conto = peça ficcional curta; novela = história de tamanho médio, cerca de 100 páginas; romance = ficção longa, com mais de 100 páginas. Longa é a noite, de João Clímaco Bezerra, é tida como novela. A 3ª edição (Fortaleza: Edições Poetaria, 2007) tem apenas 76 páginas. O volume todo chega a 88, incluídos o sumário, o prefácio e as páginas iniciais comuns a qualquer livro. Poderia ter diminuído ainda mais, se o editor tivesse emendado os “capítulos”, sem deixar espaços em branco nas páginas. Há capítulos com uma linha, cinco linhas. Assim, seria um conto longo. Mas o próprio Clímaco o considerou novela, como se vê no título do livro em que a obra apareceu pela segunda vez, em 1952: Duas novelas, de parceria com José Stênio Lopes, autor da narrativa A chuva.

João Clímaco Bezerra (Lavras da Mangabeira, Ceará, 1913-2006) publicou Não há estrelas no céu (1948), Longa é a noite (1951), Sol posto (1952), O homem e seu cachorro (1959), este de crônicas, O semeador de ausências (1967), A vinha dos esquecidos (1980) e deixou inédito Os órfãos de Deus.

Longa é a noite tem a forma de diário: de 1º de janeiro a 7 de abril de ano indeterminado. São 53 dias ou capítulos. Como o narrador se acha numa casa de serra, nas proximidades de um vilarejo, longe dos produtos da era industrial, torna-se impossível determinar a época em que vivia. Não há referência a automóvel e telefone. A menção, no primeiro dia, a uma vitrola que “moía o Danúbio azul” num café (cafeteria) dá idéia da presença de energia elétrica na vila. No entanto, mais adiante se refere “à luz do acetileno” para alumiar uma roleta. Na casa em que está usa-se lamparina, porque a “energia elétrica termina às onze horas” (p. 35). O transporte da capital para a vila é o trem, como se pode observar no capítulo “2 de fevereiro”: “Encontrei-a (Margarida) no trem no dia justo em que vim para esta casa”.

O nome do narrador é omitido ao longo da história. Talvez o autor tenha tido o propósito de deixar de mencioná-lo. Ou terá sido descuido, desatenção, falha? Qual o escritor que não sonha com a imortalidade de pelo menos um de seus personagens? Os grandes protagonistas de romances, novelas e contos ficaram na lembrança dos leitores também por seus nomes: Quixote, Bovary, Iracema, Capitu. Ao leitor de Longa é a noite resta “descobrir” a identidade de seu personagem principal em breves informações. A primeira delas é de que se trata de um homem: “sou um homem triste” (segundo parágrafo). E o complemento: um homem doente. De uma “doença arrasadora”, “inoculada no meu sangue”. Se se tratasse de novela do Século XXI, o leitor imaginaria um doente de AIDS. No passado, as pessoas afetadas por doenças de pulmão procuravam as serras como cura. O doutor “admirou-se de eu haver abandonado os recursos médicos da capital para me valer exclusivamente do clima”. (...) “O acertado seria ter permanecido na capital, fazendo pneumotórax” (p. 26). O narrador, como quase todo doente, evita falar da doença, do nome dela. Na p. 57, ao visitar o barbeiro, ouve pela primeira vez o nome indesejado (“um termo terrível e contundente”): “Desde quando está tísico?” Também no primeiro dia há a informação de que sempre viveu só. Isto é, sem mulher e filhos, sem família. No segundo dia, o complemento: vive com uma “velha empregada, a preta Joana”. No 15º dia o homem doente se revela poeta. O jornal, trazido pelo carteiro, estampa “alguns versos meus”. E revela: “Chamavam-me de um dos mais altos valores da moderna geração de intelectuais da minha cidade”. A partir daí, o poeta não para de citar livros e escritores. O primeiro é José de Alencar, em 31 de janeiro. Nos dias seguintes, Renan, Machado de Assis, Eça, Rilke, Camilo, Jacques D’Arnoux, como para demonstrar erudição.     

O leitor tem, pois, a seguinte informação: o protagonista é um homem doente de tísica, está numa serra, vindo da capital, em busca de cura, vive com uma empregada e escreve um diário e publica versos nos jornais da capital. Não se sabe sua idade (homem maduro, pelas recordações dele), como se veste e calça, de que se alimenta, etc. Vez por outra passeia pelo campo, vai à vila, frequenta o café, conversa com o médico e o pároco e procura Margarida. E é esta personagem quase imaginária que alimenta a curiosidade do leitor. E faz de Longa é a noite obra literária de intrigante concepção. Quem é Margarida? O narrador está apaixonado? Por que a garota nunca aparece? Será a noiva do médico? Impossível o leitor obter respostas, pelos silêncios do narrador, pelas sinuosidades da narrativa. E isto é que dá à história uma aura singular, só vista em composições menos realistas e mais intimistas, como as de Cornélio Pena, Lúcio Cardoso, O. G. Rego de Carvalho e outros grandes romancistas brasileiros.

Margarida “aparece” logo na primeira página: “Afagava também a esperança de encontrar Margarida. Conversar com ela, contagiando-me da sua tagarelice”. E assim é durante todo o diário: ele se refere a ela, mas não a vê, não a encontra, como se fosse invisível, impalpável, etérea. Talvez a mulher ideal, dos sonhos, a musa. Em 23 de janeiro ele a vê, furtivamente: “Acordei, sobressaltando. Alonguei a vista para a estrada e estremeci. Margarida passava em direção à vila. Gritei por ela, ergui-me num ímpeto e corri”. Não consegue, porém, alcançá-la e desiste.

O protagonista da novela conheceu Margarida no trem que o trouxe da capital para a vila: “Não a avistei mais. Desapareceu. Recordo que tinha os cabelos louros, e, à noite, cantou para os passageiros”. No capítulo “3 de fevereiro” o personagem faz a seguinte revelação: “Joana disse-me, pela manhã de hoje, que o Dr. Lima era noivo. (...) Há anos o médico namora uma pequena bem mais moça que ele e muito linda”. Seria Margarida? Em 21 de março, uma conversa do protagonista com o padre alimenta mais a curiosidade do leitor: “Confessou-me que a pequena não quer bem ao médico”. No último dia do diário (e da vida do narrador) um trecho parece esclarecer tudo: “A agonia exaure-me as forças. Mal ouço as conversas do Dr. Lima na sala de visita. Trouxe a mãe e a noiva para me visitarem. Vi apenas a velha; a noiva não quis entrar no meu quarto”. Além de tudo, em nenhum momento do livro o nome da noiva do médico é relevado. E, mesmo se o fosse (Margarida ou outro nome), ainda assim persistiria a dúvida do leitor, pois a moça do trem poderia muito bem ter se apresentado com nome falso, por ser noiva do médico.

Longa é a noite não é novela de costumes, realista, razão pela qual não há nela nenhuma manifestação explícita de sexo, sem que isto signifique lirismo exagerado ou romantismo açucarado.

O personagem não vive, porém, só de presente. O diário não é pura narração de fatos ocorridos nos dias na serra. A todo o momento, ele se volta para o passado anterior à sua viagem de trem ao vilarejo. No 5º dia surgem as primeiras lembranças: “Recordo os amigos que deixei longe. (...) Eles devem frequentar o mesmo café”. Além dos amigos, também lembra a irmã Lucimar e sua filha Mariazinha. E o marido que a maltratava, bebia muito. A separação, a ida dela e da menina para a casa do irmão. “Depois aquela história confusa: um ônibus, abalroamento, testemunhas. E a mesa branca da assistência”. (...) “Mana Lucimar e Mariazinha partiram. Deixaram-me terrivelmente só”. Recorda também o pai e a mãe, com carinho: “Quando ela morreu, tinha eu apenas 11 anos. Meu pai não se tornou a casar e eu me liguei ao seu carinho, como visgo. Éramos inseparáveis, nos longos passeios pela praia, nos divertimentos, nas alegrias”.

A linguagem de João Clímaco Bezerra é concisa. As frases são curtas, sem floreios. Diretas, objetivas, desde a primeira: “Desci ontem ao vilarejo que dormita lá embaixo, ao pé da serra”. Diálogos são raros e de poucas falas. Descrições contidas: regatos, veredas, árvores, casas da vila. Vocabulário simples, um ou outro verbo menos usado hoje, como “engazopar” (p. 73). Sua linguagem não chega a ser castiça, embora não seja desleixada. O leitor pode ver uso exagerado de adjetivos, talvez em voga nos anos 1940, quando o livro foi escrito. Mas nem isso macula a boa novela Longa é a noite.

Fortaleza, abril de 2009.

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci, página do editor

 

 

   

 

 

 

 

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