Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Nilto Maciel


 


A crônica e a posteridade




 

A crônica moderna é o gênero literário que mais possibilidades dá ao escritor para enveredar por quantos caminhos ou atalhos quiser. Veja-se nos jornais a variedade de tipos de cronistas: esportivos, policiais, políticos, “de sociedade” ou “da alta sociedade”, etc. Sem contar aqueles que passeiam por esses segmentos, mas que se dedicam à chamada crônica geral. E é aqui que o bom cronista se revela, ao vislumbrar os infinitos confluentes do grande rio da escrita literária. Para tanto, se serve do talento, da imaginação, do conhecimento, das técnicas de narrar e da poesia. Sem isto, seria um mero registrador de fatos, um contador de efemérides.

Em Moça com Flor na Boca, o poeta e contista Airton Monte viaja por todos os caminhos da crônica. E o faz exatamente por ser poeta e prosador de primeira linha. Suas crônicas, publicadas diariamente em jornais, têm o sabor de poemas líricos ou de contos introspectivos. É como se ele não as escrevesse para jornais, mas para a posteridade.

O cronista às vezes se volta para o cotidiano imaginado, porque não conta fatos ou episódios, mas descreve estados d’alma (“Histórias do cotidiano”, “A palavra muda”, “O repouso do guerreiro”) e faz da crônica peça ficcional. “A mulher no aquário” é conto de fino lavor. Personagens, quase sempre sem nome explícito, povoam muitas dessas crônicas, que se assemelham a contos. Em “Telefone, retratos, escorpião” vê-se um homem desesperado em determinados lugar e tempo e sua história. Em outra composição um homem bem vestido chupa manga na calçada e faz o cronista lembrar a infância, o tempo das mangas, dos quintais (... “eu pulava (o muro) no ressonar das tardes de domingo pra roubar manga-rosa no pé”. A infância, aliás, é um dos temas favoritos do cronista (“Considerações sobre o longe”, “Declaração de amor”). Essas lembranças não poderiam deixar de remeter ao passar do tempo, ao envelhecimento, à morte (“Um dia absolutamente normal”, “La belle dame sans merci”).

Essa visão do mundo o leva a pintar personagens solitários, como os goleiros: “Quando se postam imóveis debaixo das traves, são a metáfora vida de uma palavra perdida entre parênteses”. Ou a não carecer de personagens, como se quisesse dizer que uma história nem sempre precisa deles. Ou precisa tanto deles que todos os possíveis personagens se apresentam, embora por momentos, no palco. Como numa arca de Noé. “Crônica surrealista” é, talvez, o melhor exemplo disso. Peça literária de altíssimo valor, assemelha-se a um mosaico imenso, pintado no chão ou longe dele, no céu, no não-lugar: “Um rosto no escuro”, como nos filmes de Hitchcock; “Uma princesa e um sapo passeando de braço dado na floresta negra”, como nos contos de Andersen e dos irmãos Grimm; “Um aperto de mão, um par de algemas, um arrocho no peito, um ataque de asma, um tesão recolhido na inocência do sátiro”, como só se lê em quem veio da Hélade, conheceu Dante e se fez Airton Monte.
A solidão, o desencontro das pessoas no mundo também estão em Moça com Flor na Boca. Como o homem e a moça que não se falam, em “Moça de azul-celeste”. Ou na poética “A mulher de preto”. Outras vezes, a solidão não está muito longe, pelo contrário, atinge em cheio o próprio cronista (ou o narrador, se quiserem), como em “A nudez do cronista”.

Em algumas crônicas a busca do mundo leva o cronista a se afastar de si mesmo. Ou buscar o mundo com os olhos, à cata de histórias, e se levar consigo pela cidade (“De palavra em palavra”). Imaginar-se na Fortaleza de sua infância, adolescência e juventude, na Praia de Iracema, “na borda da velha ponte derruída” (“Namorados, namorai”). Essa Fortaleza está presente em diversos momentos do livro, ora em forma de lamento, ora de exaltação (“Feliz aniversário, Fortaleza”, “A morte anunciada”).

Às vezes não é exatamente o mundo físico que o cronista esquadrinha, mas o mundo interior ou a vida no seu decorrer. O que são os domingos, as tardes de Domingo, a solidão domingueira (“Os passarinhos fujões”, “A casa cheia de palavras”)?

Entretanto, a crônica tem muitas vezes como protagonista o próprio cronista, que também pode ser visto como um personagem, à semelhança do que acontece nas narrativas em primeira pessoa. Há ainda a possibilidade de o cronista se voltar para o próprio ato de escrever, questionar o que seja escrever e se mostrar o mais sincero possível: “gosto de brincar com palavras” (“Licença poética”). Ou se mostrar angustiado por não ter sobre o que escrever (“O mar é mulher”).

Um dos temas mais caros ao cronista Airton Monte é a mulher. Não exatamente a própria mulher, a namorada, a amante, ou a mulher do próximo, a fatal, a imaginada, mas a mulher como ser. E, de tanto se ocupar dela, termina criando peças de autêntica ourivesaria, contos da melhor feição literária, como em “Desejos de mulher”. Mas nem só de mulher vive o cronista. O homem também ocupa um lugar especial na carpintaria do escritor, o que é absolutamente normal. No conto “Enfim, livre”, um homem solitário pensa. Isto é, a solidão se abate sobre os seres de forma indefensável. Outras figuras masculinas povoam as composições do livro, às vezes com descrição minuciosa. Em “Figuras urbanas” o protagonista é “um preto alto e magro feito um guerreiro etíope”.

O mais freqüente em Airton Monte é, sem dúvida, a crônica poética, realizada sempre com muita sabedoria e talento. Em algumas delas o “eu” se pluraliza, se torna nós, numa atitude puramente lírica, como em “S. O. S. Deus”. O narrador ou o eu, nesses momentos, se desnuda de todo para o leitor. Ou para si mesmo. Abre a janela para o nada, em completo desânimo, em plena desilusão. Ou pinta um auto-retrato em branco e preto, com pinceladas ríspidas e rápidas (“Atestado de identidade”). Essa busca de si mesmo leva o cronista a, vez em quando, tecer considerações sobre o ato de escrever e, mais ainda, sobre o ser poeta, como se vê em “O desertor da poesia”, espécie de ato de fé ao contrário, se não for lido como pura ironia. Em “Licença poética” observou: “Sim, escrever trata-se fundamentalmente de brincar, embora muitas vezes seja um jogo perigoso, arriscado, que pode nos levar à paz dos precipícios, à bem-aventurança dos infernos que em nós mesmos residem, silenciosos e ocultos sob a pele das palavras ainda não escritas”.

Aiton Monte não tenta ludibriar o leitor e, quando a ele se dirige, o faz com humildade (“Vocês, meus parcos leitores, que perdem seu preciso tempo lendo essas aleivosias que escrevo”...) E pede desculpas se, por acaso, estiver a repetir o tema (“O poeta naturista”). O que é natural para o cronista que diariamente escreve. Essa angústia já se manifestava em “O mar é mulher”, a angústia da falta de assunto, de não ter visto nada que valesse a pena servir de tema para uma crônica: “Há dias assim, tão terrivelmente medíocres que sequer inspiram a mais reles croniqueta”.

Por fim, diga-se que Airton Monte, poeta e contista de vocação lírica, mas também social, não poderia deixar de se indignar com as guerras, o caos, as catástrofes e suas conseqüências. A crônica que encerra o volume – “Os olhos das crianças de Bagdá” – é um soco no estômago de todos nós: “Os olhos das crianças de Bagdá são faróis acesos na escuridão de nossas consciências”.


Fortaleza, 7 de setembro de 2005.
Nilto Maciel, escritor.
 

 

 

 

 

19/09/2005