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Erorci Santana


 

O Corvo Rudimentar


I
Caçar um poema é como
caçar um corvo, essa ave
sem utilidade. Não se descobre
nesse gesto o canto nem
o estofo da palavra morte.

O corvo jamais esteve em extinção.
Os grandes exterminadores
ignoram sua plumagem, ave
renitente nunca avis rara.

Infiro, pois: empresa vã,
capricho, obstinação estéril.

Quando a noite desce
e a cidade cobre-se de claridades,
muitos andam por São Paulo
tocaiando búfalos e magos, eternos
fugitivos do absurdo. Os poetas não.
Desapressados, sentam-se na cabeceira
dos viadutos – habitat natural dos rapineiros.

Trazem farta matalotagem e sonhos
no interior de seus embornais surrados.
Ensimesmados como beatas, crêem
que a morte do Corvo-Rei
mudará o curso do mundo.
E esperam, rifles em punho.

II

É. Todas as mulheres são iguais,
irmanam-se na mesma luz.
A mais sem brilho empresta
suas ancas à ferocidade dos touros
em dias de sangue e arena.
São anjos forjados de explosão e suicídio.

Perdi o talismã da linguagem.
Fui cio, chuva, fui il capo
da felicidade. Existi? Os futuristas
aninhavam-se no colo lascivo
da puta que pariu a guerra.

Corvo desvivo, e agora?
Falta-me arte, gravidade,
pra recompor tuas negras asas,
soprar-te no bico
tua vida abjeta, negrejar-te
novo e reluzente no império da carne.

Nem quero, incauto, ser teu deus,
ressuscitá-lo. Amanhã,
celebrarei tua ruína.


in "Carnavras", 1986

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

Erorci Santana



Meu Nome é Legião


Somos muitos
para o terror do mundo.
Por isso estamos sempre fingindo
esses adeuses
brancos e sanguinolentos.
Se um vai
por entre azuis e púrpuras,
outro vem, sem júbilo,
ocupa sua escrivaninha corroída


in "Carnavras", 1986

 

   

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

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Luiz Edmundo Alves

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

Erorci Santana


 

Canisode


A serpente do til
sobre teu
dorso, cão. É
pouco o sonoro
nome, a lâmina
do faro, mesmo
essa rebeldia
de mijar todos
os postes. O horizon
te é largo em más
caras poligástricas, confinado
à estreiteza desse abrigo,
não tens todos os cios

das cadelas, outros bichos
ciciam teus ouvidos.

És
um cão não casadoiro, meu
todo teu arterial ladrido rasga
a noite em flâmulas
e ódios. Grita-me
a razão um desconchavo:
– Ama o animal, a brevidade,
que anima
é coisa não provada
em tomos de tratados!

Cão, eu não o quero
sevandija simples biológico!
Crudelíssimo, ó cão,
pagar tão pouco
pela tua imensurável fieldade,
quando há homens
que nos legam ferro e fel
em paga desse beijo e desse sangue

derramados. Cão, não é C A N I S
esta palavra escan
dida – duas sílabas
de fácil conjugação –
a mola desse
sentimento radical.

Eu não o quero assim
pontiagudo. Gosta-se
no mundo até dos brutos sólidos!
Quem dirá? Charcos
de certeza imperturbável:
a besta humana quando ama
é de amor invertebrada.

O teu afeto em alma
chã, cãoão, porque de venerar
tu te vinculas ao afago,
ao minuto em que te passo
a mão pelas orelha.

Tamanha tua ingenuidade:
talvez onde haja
rugas te pareçam
um monturo de ossadas.
Porém tu te perfilas
balançando a safadeza desse rabo.

Camarada inconseqüente por lamber
o feixe dos meus nervos, cão
ão eco,
que não deves ser eterno
– vira-latas ou dentuço guardião.

Pois então, sus! Como quem diz: “Leve-te
a salvo a terra ou o diabo!”,
raspa-te do asfalto ao brusco
freio! Raspa-te da fúria
dos cosmopolitanos caçadores!
Foge ao vitrificado pão, à cortiça,
ao veneno que te atiram, cão mortal!


in "Carnavras", 1986

 

   

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Grief of the Pasha

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Leônidas Arruda

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

Erorci Santana



Os Amantes


Ilíada noite adentro,
os amantes
             easy rider
ou pactuados com os anjos
em Éden definido.

Cavalgam
           na voragem
           de sidéreos solos
montados
           no dorso
           de seus pégasos vermelhos.

Os amantes,
serpentário
               guizos
vagalhões
onde mais medre
o delírio em gozo e coração.

Viagem pela noite
sem retorno
com seus urros
sobre molas, travesseiros.

Sobre touros na voragem,
minotauros resgatados
ao mundo labiríntico,
aos velórios contumazes.

Dentro da noite,
                    dentro,
luz
de espelhos e avelórios.


in "Carnavras", 1986

 

   

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

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Roberto Gobatto

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

Erorci Santana



Getsemani


Extenuado
de buscas e desilusões,
aporto-me nesse cais
do vosso colo, teus
liames. Sangra-me
o peito malmequeres,
fibras, molesquerendo
tão explosivas manhãs.

Rendo-me aqui, amor,
em Getsemani, em tua
silhueta recortada em luas,
luzes, ó
não afaste de mim
teu cálice, eu

que já fui
um valente de quimeras
e largos gestos que o amor
não comportara
em sua face mais humana.

Teus cabelos, divididos
em terra, fogo, água,
não acusam estações
impreteríveis. Há-de
ser assim
os que amam: esperar
o Grande Amor
em seus roçados,
seus teares, sem
que o tempo cause dano
neles.

Há-de ser assim,
o relógio e seu compasso
secular. Há quanto tempo
o teu perfil
alheio a nuvens, vendavais?

Há muito tenho sede
então deixa que eu
beba do teu pote
a volúpia, o carnal volume,
ai! Querer-te assim

uma tábua
para os meus naufrágios
um punhal
no peito das minhas dores.

O que não dera
em gestos e palavras,
dar-te em alma
o que faltara
à eloqüência
dos meus lábios

trêmulos. Morte assim devia
ir morrendo nos teus braços
sob a insuportável
dor do teu afago.

Reconheço-me amante
aqui, rendo-me ao peso
do amor, ao jugo,
e nunca fui tão anjo,

tão demônio, tão homem,
tão... Quem mede:
o incêndio onde queimo
alma, coração;
a ramagem e o grão
da seara de amor e fogo?

Amor, uma melodia
de sons indecifráveis.
Saxofones, banjos, alaúdes?
Saque a tua arma
mais mortal e alveje-me
de morte inenarrável.

Violas, cordas. O delírio
é vert. Violinos, cordas
para o meu delírio
verde, vertical. A sinuo
sidade montanhosa do teu corpo.

Aí residem sonhos
no teu ventre verde,
no diamante
dos teus olhos lúbricos.

Qual o conluio, o pacto?
Esplendor. Tens
o brilho de um sol
suicida derramado.

E esse brilho
da tua cara
leva-me
a outros mundos

onde subsista
a glória do querer
sem danação.

Ruir. A flor
do teu silêncio
bebe todo amor.


in "Carnavras", 1986

 

   

 

Aurora, William Bouguereau (French, 1825-1905)

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Adriana Zapparoli

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

Erorci Santana



História Sobrenatural


Falar de um primeiro amor é, sobretudo,
dizer a cor do seu sapato predileto.
E o que mais nos levaria a lugares tão remotos,
onde as chuvas graúdas do verão,
vazando as frestas do telhado, urinavam
nossa cama? Criaturas ameaçadoras berçavam
com o medo; que nenhuma delas nos levasse
pela noite antes que um deus sem rosto ao menos
permitisse que ela pronunciasse nosso nome.
Vêm chegando os avantesmas, vêm
dos tempos de Marluce, uma loirinha
invadindo o meu dia com a dor,
pois o rosto da beleza ostenta a mágoa,
esse adereço que os mortos precoces levam
para além de um mundo feio e corruptor.
Quem sabe essa Marlucinha tão bonita
não foi Marilyn, Kim Bassinger ou Sharon Stone depois?

Mas se fosse para relembrar uma infância,
eu começaria pelos dias mais cruéis e insalubres,
a grande mão do Zé (o mais forte dentre nós,
o mais nutrido) distribuindo tapas
nas frágeis cabeças de desafetos e inimigos.

Não que esse Zé tivesse tantos;
ele os inventava para saciar umas vinganças
ou combatê-los a pretexto de ser livre.
Ademais, anulava-se ou predava-se ali
toda forma viva, com fome, raiva,
susto, carabina ou estilingue.

Muitas vezes a pedra era maior
que o seu alvo: com o impacto,
arrebentava-se o passarinho todo.
Servia para o aprendizado de que
há-de perecer tudo que se move.

Entre o que pairava majestático
sobre nós e o que restava no solo,
aniquilado, eu quis
dizer a Pé-de-Pato esta ciência:
“Os mortos são irredutíveis”,
recolhendo os restos mortais da vida.

Ao vê-los tão hábeis na construção
de arapucas flutuantes para ribeirinhas aves
(uma vez capturaram cinco fêmeas
e o lamento de seus pios não era
humanamente suportável), que mais direi,
senão que a infância, longe da inocência,
fundamenta-se no mal e na perversão?

O Zinho, bicho-grilo, tinha
sido preso em trem noturno
a caminho do Espírito Santo.
À tiracolo, desconexa e lânguida, a filha
da vizinha, aliciada, algumas gramas ácidas,
dois quilos de maconha.

Depois desse lisérgico episódio,
os pais garrotearam os filhos,
rasparam suas barbas, apararam suas unhas,
cortaram seus cabelos, ingressando-os
no serviço militar obrigatório.

O mais fácil logradouro para execução
de inimigos era o leito da via férrea. Para lá,
os mais fortes conduziam os mais fracos
e se inclinavam sobre eles
numa sanha branca, mensageiros,
tudo muito evolutivo, darwiniano.

Os que já exploraram o lixo da civilização
podem dizer com segurança: infância
é a indústria da sucata, o ingresso,
pela escória, no reino do dinheiro.

Houvesse ali pintores com algum talento
para registrar o rio, os corpos putrefatos,
a mística e sólida presença dos urubus,
os menos líricos e os mais práticos dos seres,
que se avizinham da matéria gasta
e a recompõem: aliados, enviados, semideuses.


in "Estatura Leviana"

 

   

 

Crepúsculo, William Bouguereau (French, 1825-1905)

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Inez Figueredo

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

Erorci Santana



Santidade


Promontório, promissão. Um barco, ao fundo,
desliza sobre o azul. E quem está a bordo
talvez chore, pois em fuga; talvez ria.
Presta atenção no ladrido, nos beiços
do abismo, tu que vives:
tua cabeça é grande e comporta todos os lugares.
Eu não vim de falar de hecatombes.
Não tens visto outra coisa ao longo do caminho;
nem subtraí-lo do pacífico convívio
com esse renque de diabos, dizer-te
grandes coisas com autoridade de profeta,
verdades impregnadas de tabaco, álcool, cocaína.

Também não sei uma maneira mais suave
de morrer. Mas posso apontar nos heróis e mártires
a falsa pose de nobreza nesse instante,
sublimar o lixo da civilização em que tu vives.
Vou ser solidário contigo no presente imprevisível,
escrever teu epitáfio no lenho incendiado em que tu ardes.

Agora vou te dizer uma boa nova redentora:
eu vejo em tudo a santidade. Soube de santos
a cavalo na guerra de quatorze e na última,
submersos no oceano, estraçalhados nos ares e no solo.
Em sessenta e quatro registramos hordas deles
nos porões do sacro ofício do império.

Santas são as intenções de assassínio
do operário revoltado. Há um santo
dividindo o mangue com crustáceos e anelídeos.
Santíssimos gafanhotos de João no tempo do advento.
Eu, Santana, dileto filho do Senhor,
santificado pela fome e pela agonia do verso,
vim santificar a todos, ave!

Prejuízo de santidade só existe nos anjos,
espécie em extinção de santos decadentes e falidos.
Contrito ao pé da Santa Madre, eu vejo santos
no rio se banhando, nus e belos. Santos de montão
são vistos à noitinha, prensados
nos vagões dos trens, nos corredores dos ônibus,
Franciscos de Assis tiritando pelas madrugadas,
Antônios crivados de chumbo nos baixios e baldios,
kamikazes florais e aureolados da maior grandeza.

Nada da santidade me é estranho;
eu, quando digo, não estou ironizando.
Vivemos numa era onde os santos mandam telegramas,
mensagens eletrônicas, uma era prolixa
de santos de toda casta, jerarquia e natureza.

Eu te odiaria se pensasses que vim, barbudo,
dizer-te heresias, mortificar-te ao pé
de ídolos consagrados, essas coisas
que o brio e o pacto pela paz me impedem.
Eu escrevo para a redenção de toda sorte de pecados.

Por fim, eu vejo santidade nos bandidos de subúrbio,
na comovedora tristeza com que se rendem ao ódio,
nos homossexuais, nos negros, nas minhas irmãs
resignadas e perfeitas na venda do corpo noturno.

O mundo é santo achatado nos pólos
e gira sobre o eixo de sua santidade.
O reino dos céus não é mais um tributo
a mansos, pobres e oprimidos.


in "Estatura Leviana"

 

   

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Cleópatra ante César

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Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

Erorci Santana



Prenunciária


O que vi é quanto basta, Nadja,
essa miséria de muitos e o que,
idealizado, se esboroa aos poucos.
Ao menos isso, a lentidão da queda:
ao percebermos, porém, já estamos embaixo.
Mas o que Nadja, ergue-se
e, sob tanta intempérie, permanece?
Acostumamo-nos sob a égide do fracasso
e nossos filhos vão morrendo
ã míngua de tantas coisas sem rosto.

Eu fui tentado três dias e três noites
a dizer: “Isso sempre foi assim”.
Mas a história desses crimes não pode
ser nosso estigma, nem é irrecusável, se herança.
Para nós, raros honrados, a pujança da vileza
deve existir como incidente de percurso.

Ardência peito adentro, esperança fundada
no gelo caótico, precursor do Tempo.
Não há forma. Defini-la é mais do que
matar um desejado objeto. A fórmula
da felicidade, Nadja, eu te dou
como presente: um pouco mais de hecatombe
para despertar a consciência do monstro.


in "Estatura Leviana"

 

   

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Pipelighter

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Valdir Rocha

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

Erorci Santana



Teresa, a Redentora


O artista tem um nome e se chama desespero.
Saltitei degraus abaixo uns passos bailarinos,
à hora do rush e do alcalóide paulistano;
e subia pela longa escadaria um exército de andróides
(passaram resolutos e eu não perguntei aonde iam)
Uma yonsei surgiu do túnel pilotando a coisa móvel.
Era Teresa? Assim creio, pois seu coração
mais parecia pirilampo ou centopéia de tão vívido.

As rodas trouxeram girassóis esmagados,
aros cobertos de pasta floral e digestiva,
sumo no entretom do verde e do amarelo.
O último vagão estava cheio de livros chamuscados,
telas podres e papiros carcomidos.

Após o embarque, da janela, eu vi uns elefantes compassivos
percutindo com a tromba uma dama com vertigem.
Todos nós choramos, se me lembro.
Teresa, imperturbável, moveu todos os carros.

Os pelos do braço, os pubianos, das espáduas,
abaixo do solo devem cintilar de modo equânime.
Se entenderes essas coisas, se as adivinhas,
as circunvoluções do cérebro trazem
um vendaval de sonho à libido.

Os pelos? Eu os conheço todos: loiros, negros, ruivos...
A saia era estampada de preto e amarelo
e o preto no corpo dela nunca foi mais lindo;
o riso, mais que falso foi prelúdio
daquele sentimento hediondo: a vontade
de abraçar a tudo e a todos.

Todo artista é também vampiro, pederasta, bandoleiro.
O que se viu da bunda dela, o que se vislumbrara
sob seu vestido parecia catapulta ou ribanceira.
O retrato da libido coseu minha loucura.

O artista, se persiste, é chiste e ditirambo.
Vós estais cansados de saber que o gume é longo
e breve a estatura, não é mesmo? Estais possessos?
Teresa vem no bojo da coisa
cujas rodas esmagam vossos sapatos rotos ou floridos.


in "Estatura Leviana"

 

   

 

Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

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Anísio Lage Neto

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Antonia Zarate, detalhe

Erorci Santana



A Justiça Falha


A justiça farda agora
falha nas mãos do torturador,
esse que afina os instrumentos,
grave mestre-de-cerimônias.
Depois, untuoso, põe-se ao trabalho
(sua mãe aprovaria?)
como um artista, certo de que presta um obséquio.
Nele não há dor ou desespero.
Haveria êxtase na faina?

Os olhos do cirúrgico paciente
avançam na atmosfera,
uma ridente e amarela espiga de milho.
Condenam o mundo mais uma vez
num semicírculo penoso de 180 graus.

Unívoca é a dor e não se alarga
numa dimensão mais coletiva.

“Eu nada quero que confesses” – diz
o torturador. E continua: “Isso
seria minha danação. Fale-me
de sua infância, a vez primeira
que a flor e o fruto te abençoaram”.

Mas quem se atreve amainar
no sangue o doloroso apelo
ou, quando pouco, disparar
a égua da liberdade na aurora?

Riem no tablado as mulheres
(desvairado riso de Artaud)
e não crêem mais
no movimento arquitetônico do ventre.

O lodo tem a boca,
uma morada definida.


in "Estatura Leviana"

 

   

 

Ticiano, Flora

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Donizete Galvão

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

Erorci Santana



Testamento


Eu me recuso a celebrar minha grandeza.
Porém deixo aos meus futuros compatriotas
alguns apontamentos:
Eu estive em todas as coisas pela superfície –
tive medo confesso de penetrá-las e perdê-las.
Assim, a Poesia foi o meu amor. E minha inimiga;
amei a todas as mulheres mas neguei-as
quando me quiseram inconsútil, a primeira
e a última, inclusive. Tive medo extremo
de meus pares. Pares, quando digo, falo
dos maiores de efervescência criadora, o que, malgrada
a hierarquia, pode estar na base
no topo ou no meio. Eu sempre tive bem marcadas,
no íntimo, as fronteiras do rico e do pobre
da essência de Deus, Esse que se impõe por evidência.
A outros... aplaudi entusiástico, alimentei suas vãs ilusões
com devota tolerância, deitei lenha boa em suas vaidades.
Aos homens eu dei minha amizade sem reparos
e falei mal deles a outros homens, tentando redimi-los.
Alguns não entenderam bem o cerne da minha nova ternura
e eu passei por todos eles como passa o ar
na lisa superfície de um molusco; eu me quis obscuro
para não transtornar padres e políticos. A fórmula da fama
nunca foi tão clara e tão fácil. Tristes deles, os sedentos!
Eu sempre soube agradecer a vida, mesmo a mais exígua,
e cantá-la em seus comovedores limites: um insetinho diminuto,
uns pirilampos, umas putas, uns menores infratores e aqueles
répteis gigantescos que a sorte não me deu como contemporâneos.
Minha mãe, meu pai, meus irmãos e aqueles homenzinhos
massacrados pelo indústria do outro lado do Pacífico.
Nunca invejei os filósofos, à exceção de Aristóteles.
Bem se vê, transeunte, as dificuldades de levar-me a sério.
Também porque poetas havia muitos, de lotar caminhões e mandar
para as trincheiras do universo, poetinhas de ego, manuais
de lexicografia e estilística. Travei íntimos diálogos com os outros.
Como vês, não pedi a alegre irrisão das praças.
E te contemplo, absorto, de cima dessa enorme cabeça.


in "Estatura Leviana"

 

   

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Ademir Demarchi

 

 

 

 

 

 

 

 

Tintoretto, Criação dos animais

Erorci Santana



O Rei Morto


Amo. E não distingo mais
no ar o que é flecha, pomba, avião.
O que era pedra se anima:
vira corpo e dança.
Acerco-me das coisas como se fosse tocá-las
e acabo contornando-as. Mas não quero
para mim essa existência bumerangue.
Quero viver! Súbito, o pressente e deplora
Esse aí, vindo do sonho,
guardião-tenaz-reforçado-da-minha-vida.

Avizinham-se os telhados
e exigem teu nome. Querem saber de ti
os pilotos das aeronaves, te querem
bússola, rota, itinerário.

És como a dádiva de um presente
imerecido. A morte fez-se leve
e zomba desse tolo desconcerto,
que os meus passos erram e me desconhecem,
minhas mãos seguram o destino do fogo.

Não há pão, não há casa. Haverá futuro?
Eu passo a morar no mundo, um monge
num imenso trem de alegria.


in "Estatura Leviana"

 

   

 

Titian, Noli me tangere

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Ronaldo Cagiano

 

 

 

08/04/2005