Soares Feitosa 

O  Menino  do  Balde
 
 

As crianças,
os moleques, 
os pivetes 
(chamem-nas como quiserem),
eles, os infantes, corriam,
e, entre eles, o menor deles
levava um balde:
limpadores de pára-brisas. 
 

Ao velho Ford, 
a Taylor e aos outros,
da administração científica,
da racionalidade,
da linha de montagem, 
os meninos, 
gênios da raça, teriam parecido:
 

trabalho cooperativo,
alguns com os rodos de espuma,
o outro, o menor, o mais ligeiro,
um balde com a água!
Perfeito, perfeito:
a tropa de choque lavando;
o moleque aguadeiro apoiando. 
 
 
Os carros se aproximavam do farol,
os meninos corriam,
emaranhavam-se por entre os carros,
avançavam aos pára-brisas;
mal os carros paravam,
eles alimpavam,
quase à força,
vap-vap,
cloche, cloche...
E ao humor de cada dia,
ao humor de cada qual:
reclamações de alguns,
trocados de alguns
(das mesmas pessoas,
a máscara do dia,
ora de-bem, ora de-mal).
 
 
É a guerra, é a vida,
guerreiros, eu conto,
guerreiros, eu vi: 
uma sala quebrada,
uma aula vazia.
E aquele menorzinho de todos,
o do balde,
também, ligeirinho corria. 
 

O balde não tinha  água...
 

 —— Ele não era o abastecedor?
o aguadeiro, 
o moleque apoiador? 
 
 

Não.
Estava vazio o balde. 
Cheio, 
cheeeio de coragem, porém.


Ao primeiro carro, o menorzinho
(guerreiros, eu conto,
guerreiros, eu vi),
o menorzinho emborcou o balde no asfalto,
subiu em cima do balde,
pra riba do balde...
para poder alcançar 
e alcançou,
fecundou, fecundou, 
com a glória do macho,
que não se rende,
nunca se rendeu,
menino macho,
fecundou o balde,
fecundou a Morte;
forjas do equador que lhe forjaram as forças,
cinco séculos de sol e de fome,
criou-se uma raça nova,
uma super-raça,
dos meninos machos,
filhos do balde:
 

pires,
migalha, 
debalde lutam...!

 

... Para salvar nossa alma, capitão!
 

Foi assim mesmo que respondi,
há mais de cem anos,
eu, menino, 
mais dous homens feitos,
mais um velho:
 

——— para salvar nossa alma, capitão!


E salvamos, 
a tua também,
e fundamos a Nação!
 

O menino do balde
não cresceu nas pernas,
não cresceu na letra, 
mesmo porque não havia letra;
cresceu na macheza,
o menino do balde,
em cima do balde;
e tu,  grandalhão,
de tuas grandes pernas, 
ajoelha-te,
pede emprestado
o balde de tinta,
desses que têm uma argola,
e verás e saberás: 
o herói nordestino,
doze anos,
tamanho de oito,
coragem de dezoito,
macho para qualquer função,
da nova raça,
dos guabirus,
que estão formando,
pequenos e machos,
que comem pouco,
que gastam pouco,
que cabem em pouco,
que pedem pouco,
que exigem pouco,
que reclamam pouco
e,
aos poucos,
vão-se acabando,
pois as fábricas já não produzem tantos baldes.
 
 

Os baldes estão secos,
os peitos estão secos,
os olhos estão secos,
os corações também secaram,
só os cojones não estão secos
para trepar e fecundar:
—————  Coragem tenho, coronel! 
Quando precisares de um macho,
macho de fêmeas,
macho de fé,
macho de pântanos 
       — Paraguai —,
macho de Montes e de Mortes
       — Castelos, Pistóias —, 
manda-me chamar,
sou mais ágil,
mais corajoso,
mais audaz, 
macho ligeiro!
 
 
Uma nova gente,
gente miúda,
gente raçuda, 
gens, gentium:
        

       g e n o c í d i o. 


  

Recife, Av. Agamenon  Magalhães, manhã de sol quente, 31.03.1994

 

Notas:

1. Henry Ford e Frederick  W. Taylor:  indústria automobilística e engenharia, respectivamente, fundadores da administração científica.

2. Guerreiros, eu conto, guerreiros, eu vi: Gonçalves Dias.

3. Subiu em cima do balde: pleonasmo, com vistas ao duplo sentido de subir fisicamente e de ascender em glória e em coragem.

4.  Nunca se rendeu:

Canudos não se rendeu. 

 

Exemplo único em  toda a História, 
resistiu até o esgotamento completo. 

Expugnado palmo a palmo, 

na precisão integral do termo, caiu 

no dia 5, ao entardecer, 

quando caíram seus últimos defensores, 

que todos morreram.

Eram apenas quatro: um velho, 

dous homens feitos e uma  criança,
na frente dos quais rugiam 

raivosamente cinco mil soldados"

(Euclides da Cunha, Os Sertões,  Liv. Fco. Alves, 28ª ed., pág. 407)

 

5. Guabiru: menino-guabiru, homem-guabiru — cientistas comprovaram que a fome, a verminose  e outras  pragas estão reduzindo a estatura  média do homem nordestino, com o surgimento de uma sub-raça, os tais homens-guabirus. O assunto tem sido objeto de várias teses acadêmicas, exaustivamente abordado pela imprensa brasileira, Folha de São Paulo  e  revista Veja.

6. Fábricas já não produzem: crise do desemprego, em especial Pernambuco, cenário da  tragédia — lamentavelmente não restrita só ao Recife —  cuja  atividade principal, agroindústria açucareira, é decadente.   SUDENE e outros engodos.

7. Cojones: cena final de Érico Veríssimo, in Senhor Embaixador.

8. Macho de fêmeas: o lamentável descontrole de natalidade, no Nordeste em especial e também nas grandes cidades.

9. Macho de fé: (Canudos e Caldeirão, BA e CE, respectivamente) nos dias atuais, os santuários são Juazeiro do Norte (Padre Cícero) e Canindé (São Francisco das Chagas), ambos no Ceará.

10. Pântanos: Guerra do Paraguai, General Antônio Sampaio, entre outros nordestinos.

11. Montes e Mortes: Monte Castelo, Montese e outras batalhas, Segunda Guerra Mundial, campanha do Brasil na Itália, grande contingente de nordestinos, que se destacaram pela coragem.

12. Gens, gentium: (latim, pronuncia-se gens, gêncium) gente das gentes. No Direito Romano, diz-se Jus Gentium, o direito das gentes, como sendo o direito  dos  povos não contemplados com a cidadania romana, os bárbaros, contra quem..., como se fossem os meninos do balde, daquele tempo.

Jean L้on G้r๔me (French, 1824-1904), Slave market

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Jean L้on G้r๔me (French, 1824-1904), Slave market