Trata-se de uma alegoria como o
são A Jangada de Pedra e Todos os Nomes, aquele sobre o iberismo
e este acerca do projeto de busca ontológica. O livro em estudo
também constitui um romance dissertativo, conforme o próprio
título o indica e, portanto, um romance de aprendizagem como
Nome de Guerra, de Almada Negreiros, e vários de Raul Brandão,
Vergílio Ferreira, Augusto Abelaira e Clarice Lispector. O sopro
do existencialismo ontológico, que ilumina atitudes do
Modernismo e do Pós-modernismo, sente-se no Ensaio sobre a
Cegueira,1 que é uma narrativa pós-modernista pelo assunto, por
muitas técnicas usadas, notadamente o caótico
conteudístico-formal, coincidentes com as do nouveau-roman.
Ainda quanto à caracterização estética, verifica-se que essa
narrativa apresenta alguns traços da tensão maneirista ("Cegos
que vêem, Cegos que, vendo, não vêem" – p. 310) e certa atitude
do Barroco não só pelo detalhismo algo conceptista mas ainda por
privilegiar a visão. Além disso, há no texto uma intensa marca
neo-realista que, pelas aberrações retratadas, descamba, às
vezes, para um flagrante Neo-naturalismo. A ironia e o poético
alternam-se, por vários passos, o que ocorre em toda a obra de
José Saramago.
Pode-se indicar este tema ou
síntese de trans-modelo2 para a narrativa: A exemplaridade
trágica da cegueira como situação extrema de uma realidade
adversa, que obriga o homem a ver melhor a sua essência, e como
apelo à responsabilidade dos que enxergam. Focaliza-se no livro
a gravidade e a confusão do mundo atual, em que a cegueira
aparece muito bem empregada como o desvario da humanidade,
portanto como metáfora da falta da razão nos homens. Os vários
acontecimentos ficcionais em torno dessa cegueira "representam
uma coisa para dar idéia de outra" segundo a estrutura da
alegoria. Constata-se que, ao lado de uma narração rigorosa em
seus detalhes, em que se descreve a ocorrência e as
conseqüências desastrosas de uma epidemia inusitada e
inexplicável, a de uma cegueira "branca" e não escura, vai-se
insinuando o implícito de uma cegueira moral, verdadeiro
objetivo da mensagem do livro. O autor apresenta um quadro
horripilante de como o mundo ficaria com o agravamento dessa
cegueira. Por suas próprias palavras, Saramago, numa entrevista,
falando sobre o livro em causa, diz que nos dá uma "imagem do
mundo em que vivemos; um mundo de intolerância, de exploração,
de crueldade, de indiferença, de cinismo."3
Não se pode deixar de fazer
aproximações intertextuais entre o texto de José Saramago e
alguns outros, diante da generalidade da cegueira no romance do
escritor português. Também genérica é a senectude que há nos
habitantes da vila do "anti-romance" Húmus, do simbolista Raul
Brandão. Genérica, outrossim, é a loucura da população que Simão
Bacamarte encerra na sua casa de orates, a Casa Verde, do conto
"O Alienista", de Machado de Assis, sendo significante que, no
Ensaio sobre a Cegueira, o lugar da quarentena dos cegos fosse
um antigo manicômio: isso tanto lembra o conto machadiano como a
implicitude da sem-razão das pessoas cegas. Quase genérica,
ainda, é, a nosso ver, a "anormalidade" sexual de muitos textos
da segunda fase da ficção machadiana, nos quais descobrimos uma
latência sensual consciente,4 que constituiria uma camada
ficcional, que se assemelha, embora concebida sob um intuito
mais lúdico (delectare) e não tanto doutrinário (docere), como o
de Saramago, ao alegórico da narrativa deste.
É digna de sublinhar-se a força de
convencimento da linguagem do ficcionista luso, que torna
verossímil o absurdo que propõe, construindo um texto com
minudência de descrições, sutileza de detalhes, rigor de
informações, equilíbrio de imaginação, só destilando, de raro em
raro, sugestões da alegoria.
Passamos a anotar espécies de
chaves de tal alegoria nestas doze passagens: Parece uma
parábola, falou a voz desconhecida, se queres ser cego,
sê-lo-ás. (p. 129) O medo cega, disse a rapariga dos óculos
escuros. São palavras certas, já éramos cegos no momento em que
cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos. (p.
131) Lutar foi sempre, mais ou menos, uma forma de cegueira, (p.
135) levei a minha vida a olhar para dentro dos olhos das
pessoas, é o único lugar do corpo onde talvez ainda exista uma
alma, e se eles se perderam, (p. 135) Talvez eu seja a mais cega
de todos, já matei, e tornarei a matar se for preciso. (p. 188)
Mortos porque cegos, cegos porque mortos. (p. 241) [...] tudo o
que pudesse servir para limpar um pouco, ao menos um pouco, esta
sujidade insuportável da alma. Do corpo, disse, como para
corrigir o metafísico pensamento, depois acrescentou, É o mesmo.
(p. 265) Não se perca, não se deixe perder, disse, e eram
palavras inesperadas, enigmáticas, não parecia que viessem a
propósito. (p. 279) ao menos devíamos não ser cegos, disse a
mulher do médico, Como, se esta cegueira é concreta e real,
disse o médico, Não tenho a certeza, disse a mulher, Nem eu,
disse a rapariga dos ósculos escuros. (p. 282) É uma grande
verdade a que diz que o pior cego foi aquele que não quis ver,
(p. 283) mais necessidade teriam os que estão vivos de ressurgir
de si mesmos, e não o fazem, Já estamos meio mortos, disse o
médico, Ainda estamos meio vivos, respondeu a mulher. (p. 288)
Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem,
Cegos que, vendo, não vêem. (p. 310)
A primeira passagem insinua, como
as demais, que a cegueira do romance é metafórica, espiritual e
depende de uma acomodação ou uma anuência da vontade. A segunda
sugere ser um processo a cegueira, culminando com a instalação
definitiva da doença, e responsabiliza o medo, que é sintoma de
nossa época, pelo aparecimento de tal moléstia. A terceira
suscita a cegueira como embotamento da razão, por ver a luta
como idéia fixa de apaixonado, caso em que se retrata o egoísmo.
O quarto passo, uma fala do médico oftalmologista,
intertextualiza a afirmação de Vieira de que os "olhos são as
janelas da alma" e sugere que, se eles se perderam, a alma
sumiu, ou seja, a essência do humano extinguiu-se. A quinta
passagem citada, voz da mulher do médico, a personagem que, por
sua responsabilidade, por seu espírito solidário, de serviço ao
semelhante, não cegou, reconhece a culpa do homicídio, ainda que
este fosse por humana vingança, ainda que por justa defesa do
coletivo. A sexta passagem coincide com a concepção do vivo
morto, que anula o fantástico das Memórias Póstumas de Brás
Cubas. Acrescente-se a essas reflexões esta complexa afirmativa
confirmatória da alegoria do livro na voz do velho da venda
preta: "Quem vai morrer, está já morto e não o sabe". (p. 196)
No sétimo trecho, o pensamento da mulher do médico, captado pela
onisciência subjetiva do narrador, confunde a alma com o corpo,
mostrando que na limpeza exterior aproveita o interior, e
fazendo ressaltar-se o metafísico da alegoria. O conselho do
oitavo passo é emitido pelo escritor, personagem que se
identifica com o narrador, e adverte a mulher do médico a
continuar firme em sua bondade e em sua missão de ajuda, pois
isso é que significa não se deixar perder. As palavras dele,
ditas "inesperadas, enigmáticas", parecendo sem "propósito"
apontam para o sentido implícito da alegoria. O nono passo põe
em dúvida a concretude e realidade da cegueira. O décimo
corrobora o sentido do primeiro. O décimo primeiro aponta para a
necessidade da recuperação, da cura, que é uma ressurreição
metafórica e, na contestação da mulher do médico, há o aceno da
esperança do ressurgir. O último trecho citado insinua que a
cegueira de que se trata, não é definitiva nem real, mas
alegoricamente um estado e, nos paradoxos maneiristas,
encontra-se a confirmação mais cabal de que existe um sentido
sotoposto para a cegueira no romance.Muito significante da falta
de identidade das pessoas é a técnica do anonimato das
personagens, que são conhecidas por profissões, por algum sinal
exterior ou por alguma ocorrência existencial. O incêndio,
descrito com exemplar coerência, significa baliza entre duas
situações, mudança de estrutura ou recomeço, e pode lembrar,
intertextualmente, desde incêndios famosos como os de Sodoma e
Gomorra e o de Tróia até os mais modestos, porém significantes,
como o de A Selva, por Ferreira de Castro, o de O Barão, por
Branquinho da Fonseca, ou o de A Paixão, por Almeida Faria.
A dessacralização, própria da obra
de Saramago, encontra-se, no livro em estudo, sob dois aspectos,
o da concepção de que os humanos é que criam a divindade ("as
imagens vêem com os olhos que as vêem") (p. 302) e o da
insinuante suposição de uma impiedade e improvidência divinas
("esse padre deve ter sido o maior sacrílego de todos os tempos
e de todas as religiões, o mais justo, o mais radicalmente
humano, o que veio aqui para declarar finalmente que Deus não
merece ver.") (Ibidem)Ocorrências dignas de nota no romance são
a violência dos cegos "malvados", quadrilheiros; o flagrante da
cópula do médico com a rapariga dos óculos escuros, ao serem os
dois observados pela mulher dele; abnegadas reações de
compreensão dessa mulher diante do que observa entre os amantes;
o ato comovente do cão das lágrimas, que solidariamente as
enxuga com a língua, ao descerem pela face da mulher do médico;
e as confissões amorosas, recíprocas, do velho da venda preta e
da rapariga dos óculos escuros.
O valor existencial-ontológico do
livro é muito forte e coordena-se com o sentido da alegoria,
pois se insere bem no âmago do ensinamento da mensagem. A falta
de liberdade como aquela a que se submeteram os cegos na
quarentena das camaratas, impedindo-os de se realizarem como
pessoas, alia-se à força das circunstâncias, como a fome e as
necessidades sexuais, levando muitos a atos escabrosos, a
aberrações, a crimes. A falta de identidade humana é
conseqüência daquela cegueira coletiva, que leva a esta
reflexão: "uma pessoa se habitua a tudo, sobretudo se já deixou
de ser pessoa, e mesmo se não chegou a tanto". (p. 218) Quanto
ao poder do circunstancial, que se incorpora à essência humana,
não esquecer a ponderação de Ortega y Gasset: "Eu sou eu e minha
circunstância e, se não a salvo a ela, não me salvo a mim."
É de admirar-se que a rapariga dos
óculos escuros, "que não passou por estudos adiantados", tivesse
a intuição do ontológico, a essência ou o espírito, que o médico
se propõe ver nos olhos das pessoas, caso volte a enxergar:
"Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que
somos." (p. 262) Mas é a mulher do médico que, na sua
responsabilidade e na sua ajuda aos semelhantes, cumpre a missão
de testemunha e de exercer o Mitsein heideggeriano5 (Ser-com-alguém,
por extensão Ser-com-os-outros), porque ela é "a que nasceu para
ver o horror, vocês sentem-no, eu sinto-o e vejo-o." (p. 262)
A noção de que a linguagem funda o
Ser6 insinua-se em alguns passos. A figura de um escritor como
personagem, a registrar os acontecimentos do mundo da cegueira e
a refletir sobre aspectos de linguagem, sugere essa noção. Tal
personagem confunde-se com o narrador no registro desse mundo,
sendo ainda significante o fato de, em vários pontos da
narrativa, a terceira pessoa heterodiegética misturar-se com uma
primeira pessoa do plural homodiegética ou mesmo autodiegética,7
processo algo caótico, pós-moderno, pelo qual o autor se insere,
numa espécie de lirismo comunitário,8 na problemática diegética
e ontológica da efabulação do romance. Este diálogo entre o
escritor e a mulher do médico sobre a inutilidade do adjetivo
faz-nos concluir que o poder expressivo da linguagem funda o
Ser: "Quer dizer que temos palavras a mais, Quero dizer que
temos sentimentos a menos, Ou temo-los, mas deixámos de usar as
palavras que os expressam, E portanto perdemo-los". (p. 277)
Por outro lado, questiona-se a
própria Literatura por meio da força da circunstância. O
princípio da imortalidade da obra desaparece, se a cegueira
geral elimina a possibilidade de consumidores da arte literária
("Mas escreveu livros, e esses livros levam o seu nome, disse a
mulher do médico, Agora ninguém os pode ler, portanto é como se
não existissem.") (p. 275) E as diferentes pregações na praça
são uma babélica manifestação, que representam o caos. Isso e o
fato de faltar o discurso da organização, que havia entre os
cegos comandados pela mulher do médico, constituem uma
contribuição da alegoria em termos de linguagem.
Mas, como toda navegação e todo
descobrimento devem ter o seu escrivão da frota para dar
significação ao ato, toda epidemia e toda catástrofe devem
possuir o seu comunicador, a lavrar, com linguagem fundadora, a
escritura dos fatos. Daí que, assim como se concebeu, no Ensaio
sobre a Cegueira, um quadro horripilante da falta de razão dos
homens do mundo atual, imagina-se a recuperação coletiva da
visão num visionarismo feito de louca esperança, uma utopia
poética que coroa a alegoria desse monumental romance, a indicar
aos homens como é doce e pacífica a lucidez de quem sabe
enxergar, para que se salve o mundo. Esse visionarismo acena
para a possibilidade, embora tênue, de uma reconstrução do
universo, anulando os efeitos da assertiva da própria voz do
narrador: "a cegueira também é isto, viver num mundo onde se
tenha acabado a esperança". (p. 204) Desse modo, o último verbo
da epígrafe, oriunda do Livro dos Conselhos – "Se podes olhar,
vê. Se podes ver, repara" – deve de ser lido com
plurissignificação: fixa a atenção, observa; corrige, remedeia
e, sobretudo, recupera.Trata-se, pois, de um dos mais
impressionantes e bem construídos romances de José Saramago, em
que técnicas narrativas pós-modernas se colocam a serviço de uma
mensagem humanística de primeira plana e atual, iluminada por
uma atitude existencial-ontológica e veiculada por um narrar
alegórico, em que o extraordinário se equilibra artisticamente
com o verossímil.
Referências Bibliográficas
1. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira:
romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Utilizaremos
essa edição para referências no corpo do trabalho, indicando-se
a página competente.
2. Cf. PORTELLA, Eduardo. Fundamento da
investigação literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974.
Trata-se do modelo aberto do entre-texto, que é a tensão entre
texto e pré-texto ou entre língua e linguagem, noções expostas e
discutidas nesse livro.
3. SARAMAGO, José. In: BERRINI, Beatriz.
Ler Saramago: o romance. 2. ed. Lisboa: Caminho, 1998. p. 135
4. Cf. LINHARES FILHO. A metáfora do mar no
Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. Cf. Idem.
Ironia, humor e latência nas Memórias Póstumas: Fortaleza:
Imprensa Universitária da UFC, 1992. Nesses livros o autor expõe
e discute esse conceito.
5. Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo.
Tradução Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes, 1988. p.
164 e segs.
6 ______. Introdução à metafísica.
Introdução, tradução e notas Emmanuel Carneiro Leão. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969. p. 168
7. Cf. GENETTE, G. In: REIS, Carlos, LOPES,
Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo:
Ática, 1988. p. 118 e segs.
8. Noção equivalente ao que Cassirer
define: lirismo como "situação humana prototípica." Cf.
CASSIRER, Ernst. In: RICARDO, Cassiano. Algumas reflexões sobre
poética de vanguarda. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1964.