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            Carlos Augusto Viana 
   Jorge Tuffic
 
 I
 O tempo, bem o sabes, escorre das mãos,
 e todas as horas são abissais.
 Em qualquer cidade, as ruas,
 assim como o grande rio,
 desembocam sobre o imponderável.
 Por isso, teus pés aprenderam, muito cedo,
 a desembrulhar os caminhos.
 Tua passagem,
 o espanto da abstrata carne.
 Tua palavra,
 o desespero das traças. Teu olho
 sobre a mulher que flutuava à janela.
 Tuas mãos
 doadas aos jarros de flores murchas.
 Teu peito,
 um cais soçobrado na madrugada.
 Muitas terras percorreste,
 e hoje, cada uma delas,
 dentro de ti, é inefável lavoura.
 
 II
 O teu país, hoje, veste-se de líquidos tecidos
 e deixa em estilhaços os vidros do sol.
 Da praia de Iracema, contemplas o mar,
 a brancura extenuada de suas espumas,
 onde gaivotas bicam a pele de sombras esbraseadas.
 
 Além desse mar, por certo, estende-se o rio,
 — a tua primeira cartilha de espantos.
 Por certo, é sobre ele que lanças o teu olhar
 quando te enches de longos fragmentos de silêncio.
 Navegas na concha negra de suas lendas
 e, náufrago, agarras-te à fúria silenciosa de suas margens.
 
 III
 Entre ti e o grande rio,
 um secreto dicionário.
 Com suas palavras-árvore,
 com suas palavras-pássaro,
 com suas palavras-pórtico,
 com suas palavras-lótus.
 
 Entre ti e o grande rio,
 as léguas de um estuário.
 Onde florescem os álamos,
 onde adormecem os pântanos,
 onde se tecem os cânticos,
 onde fenecem as pátinas.
 
 Entre ti e o grande rio,
 Há um secreto calendário.
 As horas de tuas lágrimas,
 as horas enchendo cântaros,
 as horas colhendo lâminas
 as horas de teus átrios.
 
 Entre ti e o grande rio,
 há um tecido visionário.
 Com que se cosem as túnicas
 para os mais secretos ritos:
 raízes das noites únicas,
 húmus que alimentam mitos.
 
 IV
 Ainda hoje, conservas contigo
 os trôpegos relâmpagos,
 uma floresta de vozes,
 o cristal da mais límpida estrela.
 
 Ainda hoje, conservas contigo
 o claro augúrio de Vésper
 soletrando o silêncio dos mortos
 que vencem o lodo da memória.
 
 Ainda hoje, conservas contigo
 a solidão e o diamante de seus gumes,
 o barro e a insônia de sua herança,
 o verbo e o labirinto de suas fábulas.
 
 Mas, dentre todos os abismos,
 — aquele que se esgarça
 entre o rio e o mar,
 é o que mais te alucina.
 
 V
 Estendeste — e ainda estendes — tuas mãos
 para as flores crestadas, a cinza em vôo dos pássaros,
 o cromo das esperas, o gesso da insônia,
 a lâmina inexorável dos espelhos. Estendidas,
 tuas mãos nos oferecem a Varanda de Pássaros,
 o Chão sem Mácula, a Faturação do ócio,
 a terra e o sangue cravados na Lâmina Agreste.
 
 Cúmplices dos minerais e dos jardins,
 das ruas ladrilhadas de silêncio,
 dos gritos que tombam dos espelhos,
 do sono geométrico dos peixes,
 — tuas mãos estendidas para o que,
 na carne, é flor e tortura.
 
 Estendidas, tuas mãos não te pertencem,
 mas ao que te olha desde que nasceste,
 ao que te suga e ao que, realejo,
 desfolha-se em música. Tuas mãos
 — se estendidas — libertam-nos da ferrugem
 e, água clara, banham a fadiga dos frutos.
 
 VI
 A poesia
 (como descobriste?)
 é um ser sem origem.
 
 A poesia,
 se há desertos,
 abriga-se
 em sua própria sombra.
 
 A poesia,
 ave solitária,
 recusa
 o ofertório das palmeiras.
 
 A poesia,
 lobo enrodilhado,
 oferece a noite
 a cada uma de suas presas.
 
 A poesia tem rugas
 como a pele de um rio.
 Adormecem flautas
 sob rochas antiquíssimas.
 
 VII
 Os pássaros, mais que as árvores,
 deram-te lições de raízes. Os silêncios,
 mais que as palavras, apontaram-te
 a fragilidade. Teus olhos,
 mais que os pés, sangraram
 aos espinhos da pátria. A cítara,
 mais que a lâmina, os dedos dilacerados.
 A pétala, mais que a rosa,
 o aroma irremediável. A pedra,
 mais que a água, o musgo do efêmero.
 A noite, mais que o dia,
 a chama dos minutos.
 
 o pó, mais que a carne,
 à casa regressa.
 
 
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