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Erorci Santana


 

Convite


Que por ventura eu tenho uma alma sensível.
Vem conversar comigo, sem medo, ó tu que vais passando!
Virgem, juiz, pederasta, eu conheço todos os crimes.
Atleta, poeta, mendigo, o meu coração é bom
e o teu crime não é grande.
Tem medo daqueles que esperam muito dos outros, os ávidos,
não de mim! Cessei todo querer; afeições, cartas, sorrisos,
tudo isso para mim é novo, generosa dádiva.
A minha busca e ilusão de gozo é um altar de escombros.

Tu podes celebrar nele o teu culto mais profano,
que tudo é melhor à sensação de estar ilhado.
Tu podes despejar nele a tua mágoa mais profunda.
Há lugar nele para a tua solidão, tua recusa
a um mundo feito de tensão e nervosismo.

Aproxima-te, ombro a ombro, sem gumes e palavras,
sem forjar em mim uma beleza, uma virtude.
Também não quero que ames minha inteligência:
a inteligência impede todo amor e amizade.
Estaremos bem se não reparas as cores do meu trajo.

A fala cálida, a mão na tua perna, familiar, amiga...
Percebo que te espantas comigo, tão à vontade.
Renda-se. Eu te conheço, eu sei de ti a superfície
e o abismo, e não me iludo com um pressuposto distintivo.

O que eles sentiram nós sentimos.
Nós somos um e todos: Deus
me acompanha e tu és o Deus que está comigo,
hora maravilhosa, quando o amor e o sofrimento irmanam tudo.


in "Estatura Leviana"

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

Erorci Santana



Poien


I
Aquela deusa baixou sobre nós
crispando nossos lábios Pelo prisma
de suas ocres carnes vimos
com mais clareza
a foice descendo sobre a hera
as meninas jovens negras
se abatiam sobre a gente no escuro
de seu escuro e as desdenhávamos
morrendo de despeito de fome de dor
Nós nem sabíamos mais que ou quem
amar – tanta vertigem
de sóis bebendo em nossos olhos
A noite vinha e o nosso retraído coração
com latidos nos soterrava opresso pesadíssimo
Abraçávamos qualquer resíduo de felicidade
lá para os lados da infância
nostálgicos e melancólicos de dar dó
em tiranos psicopatas e juizes
o que pior – sem saber por que
andar solitário por entre as gentes
anteparando mal e porcamente
as estratosféricas tristezas. Nosso fígado
órfão de pássaro virou pústula
tanto beber Maria Louca pelas madrugadas
Helas!

II

Num merece reza a cara desse povo?
Foi quati qu’stragou a boca do cachorro?
Era desse tamainho o luís cacheiro?
O ispim del era pontagudassim?
A vaca soverteu no brejo?
Estreitou-se o rio? Sucumbiu a casa?
Os insetos perderam o poder de reciclagem?
Algo se perdeu na paisagem?

III

Nós parindo verbos por necessidade
Pistilo Vulva Androceu tais vocábulos
Pênis Grelo Cópula
latentes virginais em nosso zelo
de inexata expressão Sobre os ombros
vergados uma pedra grandona legitimava
nossa existência morro acima –
liturgia sobre escombros Caímos
na gargalhada ao saber nossa origem
Então foi assim menina!?
O útero da palavra nos gerou
e existimos para seu apelo desesperado
Plumagem Tatua Cacatua – sim LARVA
esta outra vulcânica que o poeta
inventou e dizeu corroendo céu da boca e língua
Jesu Cristo era dos nossos pelo amplexo
Em Cafarnaum ele cerziu
nas dobras de sua túnica
aproximadamente dois mil léxicos
Quem sou eu nesse universo insigne difuso?
Clareia meu caminho ó Averidescência!
Natural da voz dos bêbados! Eu te saúdo.


in "Concertos para Rancor"

 

   

 

Alexander Ivanov. Priam Asking Achilles to Return Hector's Body

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Luís Manoel Paes Siqueira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

Erorci Santana


 

Poeta com Outros Ofícios


Enquanto tece equações de investimento
ou manuseia botões, sempiternas alavancas,
no décimo-quinto andar de um pardacento edifício,
onde
as negras aves do Senhor cessaram pouso
e inapetentes funcionários movimentam
aparatos bélicos para a derrocada do sonho,
num cartaz de magazine à parede,
sem prever que próximo é o fim
e a ruína iminente, espicaça
a libido de viril subjacente
um inequívoco e belo olho de modelo.

Absorve-o, triste mas fugaz, um pensamento:
alguém deve estar sentado
em pose de retrato para álbum de família,
despe-se às pressas um casal em algum motel de luxo
e nas academias, retesados bíceps quase alçando vôo,
tombam taludos narcisos inebriados.

Adivinhando o deprimente espetáculo das multidões
estioladas que vêm e vão e vão e vem,
nas ruas nos escritórios nas fábricas, propõe,
para tão promíscuo mal, eutanásias, sórdidos venenos.

Depois lembra a condição de poeta e arrepende-se:
a poesia e seu manifesto
dilui naturalmente o mais utilitário gesto.


in "Concertos para Rancor"

 

   

 

Henry J. Hudson, Neaera Reading a Letter From Catallus

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Laeticia Jensen Eble

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

Erorci Santana



Poesia


Vem com o silêncio vertical do homem,
ínfera, subterrânea, cruel que não tem nome.
Reconheço-a quando vou pela tarde
e a luz crepuscular derrama
sobre o outro seu vermelho alquímico.
Esplendor seu rosto, transfiguração;
algo em mim a desejou para contemplação,
difusa e transitória. Desisti de ser feliz.

Confrangem-me o coração os seus abismos,
inferno adrede a irromper
nos túneis de nossa precária condição.

Luz que nos sevicia para a morte,
insetos éticos, miméticos.
Lá é o pórtico da danação.
Dando de topo com seu destino,
ali foi onde Eros se perdeu.


in "Concertos para Rancor"

 

   

 

Caravagio, Extase de São Francisco

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Maria Georgina Albuquerque

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

Erorci Santana



Lenço de Distâncias


Batem contra o solo os cascos dos alazões.
Impacientes, querem retesar mais uma vez
as cordas do corpo desse alferes,
o tal de Tiradentes. Amanheceu.
O verdeprimo pio do nambu madureceu
sob o ronco aterrador do trovão.
Choveu e estiou na estação. Qual?
Alguém lavrou e plantou. Nada se colheu?
Há tempo e não há tempo em teus átrios,
tua rude canção, tua faina nas auroras,
tua indizível, absconsa inquietação.
Uma casa, um pode de água fresca,
um coração. Eu te mando este cartão postal
e te aceno com meu lenço de distâncias,
branco de adeus e resignação.
Eu parto e permaneço. Estás e estiveste.
É na marra que me desvencilho
de tuas saúvas, de tuas cigarras,
de tuas lavras, de teu gado nubente,
de tuas águas trancadas, de tuas coivaras de milho.

Pátena e cálix, diamante, melro, arrozal.
Estão submersos os teus homens,
as dadivosas, graciosas e florais mulheres,
os prestos meninos e as pudicas meninas.
Emersos, para teu uso exclusivo, só os adjetivos.

Nas águas abissais desse teu mar
inda florescem oiro e cafezais; há séculos
um estigma de dor rui e rói o teu futuro.
Entanto, tu te ofertas à eternidade, condenada
a ficar cifrada em teu próprio ato de inquisição.

Milenar, vetusta, defesa à invasão
e à morada, ó minha Minas sitiada!
São Paulo, Boston, Lisboa, Tóquio,
aí vão os teus filhos evadidos.
De tuas vidas, de teus óbitos,
não existe assento nos tabeliães.
Tuas possessões atestam que em ti
ninguém morre e nada medra.

Na pedra que tu és a vida se anulou
com medo.
Esse o teu único segredo.


in "Concertos para Rancor"

 

   

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion

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Deise Assumpção

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

Erorci Santana



Nênia


Claro que nunca fomos fel
lizes e os matizes dos dias
os ciclos lunares tornavam-na
suportável, embora ninguém
soubesse para que nem onde
desaguariam os 70% líquidos e febris
de nossas saturações pre
visíveis
de nossa paixão sonâmbula: ilusão
na qual os acessórios iam aderindo
A resposta andava com peixes

Fez-se tarde
Logo, é cedo para dizer-vos
reside a )id(entidade
na língua na volúpia do sal
no frenesi dos troncos na folhagem
na cultura de vermes. No sol

nesse ensaio espiritual, coivara
amada seara de cacos, miragem
de que nos privam pela pilhagem
Depois ainda perguntam
por que os jovens índios tombam


in "Concertos para Rancor"

 

   

 

Rafael, Escola de Atenas, detalhes

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Rubenio Marcelo

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

Erorci Santana



Doida
para Lilica


Esta mulher só precisa de compreensão,
um zelo pelo seu anelo de expressão,
alguém que ouça sua fala e a releve,
algo que se abra com concha sazonada
para o nada dessa lenta e solitária voz
fantasma, um Messias que suporte
esse solilóquio monocórdico na penumbra
da sala de sua vida; arde para os vivos
a voz dessa mulher, como uma vela
ela bruxuleia num abismo – que o desejo
humano ainda é o mesmo, hermano,
é muita conhecida a nossa aspiração,
daqueles ternos do paleolítico até nós,
bestas contemporâneas imprestáveis para
o riso, imersos na dor pequena, inaptos para
o carinho, náufragos do álcool e da heroína.
Esta mulher noctivaga dilatando o olho
nos escombros, nos pequenos e grandes
nichos de lixo; com certeza, viu
os coletores envergando coletes fluorescentes
para despertar do sonambulismo os assassinos
do trânsito e chorou pelos mortos de hoje,
sem saber estar carpindo os mortos antigos –
acha que a dor nasceu no jardim desta manhã
e, pressurosa, irá medrando dia afora com as rosas.
Assim vai lamentando o peso do seu fardo
e lembra as dunas de sal ou esse hiato
que criamos quando pensamos no bem e no mal.
Esta mulher computa ganhos exíguos
e disfarça de esperança perdas fabulosas.

Você não ouve sua voz, caríssimo, rotundo,
potentado cidadão do mundo?


in "Concertos para Rancor"

 

   

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Mignon Pensive

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Maria do Socorro Cardoso Xavier

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

Erorci Santana



Apontamentos para a Redenção do Homem


Se ele fosse mau,
o pardal não elegeria
os beirais de sua casa
para assentar seu ninho;
canoras cordas vocais
de Sísifo emplumadinho
na árdua tarefa de substituir
o galo no deserto urbano.
E acordá-lo.

A Eva bem amada
que ele leva a tiracolo
não lhe ofertaria o mais
sagrado e sumarento pomo –

persignando-se, ajoelharia
clamando pela sua excomunhão,
se ele fosse mau.
Esse Adão rousseauniano.


in "Concertos para Rancor"

 

   

 

John William Godward (British, 1861-1922),  A Classical Beauty

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Lauro Marques

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

Erorci Santana



Short Story
para Solange


Fugíamos de um bêbado
ou louco com vocação para assassino
e, como manda o figurino,
eu segurava a tua mão.
Mas tu não eras pálida e frágil
como nos filmes de terror e eu
bem poderia deter nosso perseguidor
com um potente jab de esquerda.

Essa ameaça fosse pouco crível;
como nos filmes de terror, fugíamos
de tudo que era hostil ao nosso amor.

Enveredamos pelas ruínas de um vilarejo
e, num casebre cuja porta rangia nos gonzos
fechamo-nos com ferrolhos e o ludibriamos.
Eu, ofegante e viril, sustendo-a nos ombros,
e tu, musa lividíssima entre escombros.

O horroroso inimigo do idílio,
o símbolo do nosso medo,
passou a rugir de raiva ao desabrigo.

Havia uma fresta numa tábua podre
e dela assomou com estrépito a descarnada
mão do monstro, ingênua ameaça
que tu mordeste com tanto dolo e dano.

Depois me disse: “Estes dentes de cristal
brilhantes e ferozes que passas a adorar
quase fazem a revolução em tempos idos;
mas puseram a perder meus camaradas.”

Soluçou, rompeu em pranto de súbito.
Eu vasculhava a tua alma acetinada
à procura do cerne daquela mágoa.

“Darling, never more!”, balbuciavas,
secando com o dorso das mãos
as pálpebras molhadas. E eu
rebatia: “É possível! É possível!”

Enlacei teu corpo e precipitei meus lábios
nos teus. Mas sacaste,
rápida como relâmpago, um pudor de virgem.
Passei de temerário a temeroso e afrouxei
meu desejo, órfão tomado de vertigem.

Que a ternura apascentasse o teu instinto
maternal, dispersasse o sal da piedade.
Súbito, deste uma risada cheia de perfídia
e, acarinhando a minha bunda,
sugaste meu pescoço com lascívia.

Os galos cantaram naquele alvorecer.
O orvalho tragou nosso inimigo.


in "Concertos para Rancor"

 

   

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona

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Secchin

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

Erorci Santana



La Decadense


Deixa-me ponderá-la
(o chão é tosco
a lua, baça
o ser árido):

tua estatura e a minha
         se não precisaremos de banquinho

teu signo e o meu
        vai ver sou rato e és cascavel

se antes de ter nascido
fui eleito para seu marido

se és vereda líquida por onde eu ande
esquecendo meus sonhos frígidos

se és capaz de revelar
teu mais íntimo segredo
para eu depor meu arcano de medo


in "Concertos para Rancor"

 

   

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), girl

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R Roldan-Roldan

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

Erorci Santana



O Rasto de Luzia


A voz dela no silêncio
foi numa manhã
com pardais e penitências.
Havia uma bulha de crianças,
um carro de polícia rondando as cercanias.
Veio do sonho pôr termo ao sono;
em vigília, os mártires sangravam no horizonte,
feito constelação em junho.
Algo nela supliciava uma antiga chaga,
disfarçava uma vocação para espantalho;
o batom muito doido que ela usava
ou seu perfume desviava
minha inclinação para lides de padres.

Um treco inefável nela me fazia grande,
chamava-me para a vida possível com seus andrajos
e suas belezas, a voz de Deus e seus desafios,
o trem de carga, o combate, a fuligem,
a mesa com moscas e bibelôs orientais.

Era bonita como fogo de obus,
bela como as intenções do alferes.
Foi nácar para os olhos moribundos,
sândalo nas narinas dos desesperados.

Numa esquina, melhorou os acordes
que um diabo dedilhava numa viola velha.
Para estar apta para gozo como ela
uma menina verteu. Talvez fosse Marisa,
sua presença ameaçasse a verdade
da morte e do ódio com poderes
de fada, fogo, furor, brisa.

Segui seu rasto por nove trilhas;
nove vezes chamei seu nome. Perdi-a
Sua presença aqui veste-se de dor.
Faz sentido.


in "Concertos para Rancor"

 

   

 

Michelangelo, Pietá

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Raquel Naveira

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), A Classical Beauty

Erorci Santana



História Íntima


Com certeza já vi esta mulher
numa manhã de muito sol e desespero
onde só restava a fúria erótica e criadora;
metida em um uniforme azul e branco,
os cabelos presos por um reluzente diadema.
Aos ombros, a mochila armazenava seu futuro
e talvez ela sonhasse com um príncipe difuso.
Não a caminho da escola, de si mesma,
seu corpinho ia lépido e sucinto
e seu nome cifrava no ar um pentagrama.

Na dificuldade plena de encontrar-se,
o seu sexo não era esse desenho tão perfeito
e sim um esboceto rude e tímido.
Eu quis que o seu sangue fluísse em minhas veias,
eu pensasse: “Teria ela um pai, uma família?”

“Que antevisões ou que desígnios tivera
sua sonolenta mãe quando a gestava pelas ruas?”
Iludindo a inclinação para o incesto,
quis ser seu irmão e assim pensando,
afastei-me, perdendo-a na quimera.

E eis que súbito retorna e não a reconheço
agora que estou velho e Eros me abandona;
florescendo em minha. História íntima, imagem
cintilante que o desvio e a distância em mim queimaram
e reeditam nesse espanto o acaso e a memória.


in "Concertos para Rancor"

 

   

 

Maura Barros de Carvalhos, Tentativa de retrato da alma do poeta

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Rodrigo Garcia Lopes

 

 

 

08/04/2005