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                  José Saramago 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Poema para Luís de Camões  
             
             
            Meu amigo, meu espanto, meu convívio,  
            Quem pudera dizer-te estas grandezas,  
            Que eu não falo do mar, e o céu é nada  
            Se nos olhos me cabe.  
            A terra basta onde o caminho pára,  
            Na figura do corpo está a escala do mundo.  
            Olho cansado as mãos, o meu trabalho,  
            E sei, se tanto um homem sabe,  
            As veredas mais fundas da palavra  
            E do espaço maior que, por trás dela,  
            São as terras da alma.  
            E também sei da luz e da memória,  
            Das correntes do sangue o desafio  
            Por cima da fronteira e da diferença.  
            E a ardência das pedras, a dura combustão  
            Dos corpos percutidos como sílex,  
            E as grutas do pavor, onde as sombras  
            De peixes irreais entram as portas  
            Da última razão, que se esconde  
            Sob a névoa confusa do discurso.  
            E depois o silêncio, e a gravidade  
            Das estátuas jazentes, repousando,  
            Não mortas, não geladas, devolvidas  
            À vida inesperada, descoberta,  
            E depois, verticais, as labaredas  
            Ateadas nas frontes como espadas,  
            E os corpos levantados, as mãos presas,  
            E o instante dos olhos que se fundem  
            Na lágrima comum. Assim o caos  
            Devagar se ordenou entre as estrelas.  
             
            Eram estas as grandezas que dizia  
            Ou diria o meu espanto, se dizê-las  
            Já não fosse este canto.  
             
             
            (in PROVAVELMENTE ALEGRIA, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1985, 3ª 
            Edição) 
             
             
Remetente:
Alicia - alicevilafabiao@mail.telepac.pt
             
  
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