Uma canção distante
Guardo tuas coisas para uma viagem:
(em que tempo)
?

A Fishing Boat Caught In A Squall Off A 
                                    Jetty: Andreas Achenbach - Germany: 1815 - 1910
A Fishing Boat Caught In A Squall Off A Jetty: Andreas Achenbach - Germany: 1815 - 1910

 

Guardo tuas coisas para uma viagem
           (em que tempo?),

em que vagão viajaremos — e as janelas:
abertas pr'uma paisagem verde...?!

Guardo tuas coisas para uma viagem,
           (em que modo?):

no modo presente,
no modo advérbio, passado –
passam, passam coisas,
que os meus dedos aos lábios,
de uma mão perfeitamente trêmula,
cantam uma canção distante:
           silêncio.

Guardo tuas coisas para uma viagem,
           (em que vontades?):

pois se me fugiram os cavalos meus,
arrebentados todos os trens,
mortos os condutores de todos os carros,
naufragadas todas as jangadas,
e o mar,
brutalmente mar,
mesmo assim,
as coisas tuas guardadas, fiel
           – (onde?):

navegar é possível.

 

Fortaleza, tarde leve, 02.08.1996

 

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Este, o 30º capítulo de Poética, um livro vivo, aberto, gratuito, participado e participativo, cheio de comentários que, a rigor — esta, a proposta —, os comentários, mais importantes que o texto comentado: abrir o debate, uma multivisão.

— Livro vivo, como assim?

— Porque em permanente movimento, espaço aberto a quem chegar, tão amplo como o espaço àqueles que aqui estão desde os séculos, todos em absoluta ordem alfabética. Seja bem-vindo!

POÉTICA: Capa, prefácio e índice poemas e poetas comentaristas

 

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Comentários:

OFICINA:
Estava este poemeto em sossego posto, quando o poeta Rodrigo Marques me deu um alô. Nas felicitações de praxe, me pediu para dar uma espiada no Mar, brutalmente mar. Espiei. Disse que nada a ver com o tsunami dos últimos dias de 2004. Ele protestou. Como diz o Discovery: Terra, Planeta Feroz!
Navegar é possível?
Com certeza!
Vieram os comentários, a se somarem àquele do saudoso Junot Silveira. A poeta Maria do Carmo Ferreira refez-lhe a formatação, colocando o quadro de Achenbach bem em cima. Ficou muito melhor.
Como se tudo isto fosse pouco, o mesmo poeta Rodrigo Marques liga de noite para avisar sobre o salmo 46, na tradução da Bíblia de Jerusalém, pedindo ele apenas uma leitura não-religiosa, se possível. Aqui está o fragmento, como se uma epígrafe a posteriori, “leitura” do poeta Rodrigo Marques [2.1.2005]:

“E por isto não tememos se a terra vacila,
se as montanhas se abalam no seio do mar;
se as águas do mar estrondam e fervem,
e com sua fúria estremecem os montes.”

(Salmo 46)

Em tempo a poeta Maria do Carmo Ferreira mandou o trem, aliás, uma ex-linha de trem. Pegou uma foto de SF, recortou e batizou: “Poeta só testa”; colocou-a também na page de Um cronômetro para piscinas. Poeta Carminha, cum Christo. E saudade!

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Em primeiro, o comentário de Junot Silveira, porque anterior ao tsunami de 26.12.2004; os demais, em ordem alfabética.

JUNOT SILVEIRA: Psi, a penúltima letra. Não a última, como derradeira fosse a sua obra ou nada estivesse por vir... Soares Feitosa, grande autor e poeta retratou em sua obra Psi, a Penúltima o que há de eterno. A essência, as raízes, o retrato poético do homem. Livro que reúne diversas poesias, é, no todo, o verdadeiro poema, autêntico em sua grandiosidade.
Revela, na sua linguagem sertaneja, lírico-sensual, uma multiplicidade de gêneros e tendências tão pouco vistos atualmente. Traz, o livro, em si, o sabor da terra (eis que em seu interior descobre-se um envelope trazendo sementes de umburana como o próprio autor diz: “Do lado de dentro, rapé de umburana, cheiro e talvez os sons, as estrelas (...)”.)
Retrata a sensualidade em seu poema, “Femina”, lembranças e belezas como em “Convite à Flor”. A realidade crítica, hilária e verídica em “No céu, tem Prozac” (Mãe, no céu tem pão?).
Livro surpreendente, atual, de grande profundidade, o de Soares Feitosa. Não traz a coerência dos academicistas, nem um modelo clássico ou pré-moldado. Ao contrário, de maneira incomum (talvez por isso tão verdadeira...) revela modernidade. Não uma modernidade descabida, mas rica em encantamento e ternura. É universal. “(Guardo tuas coisas para uma viagem: em que tempo?)”.
Viajar nas poesias de Soares Feitosa, como ele mesmo diz em “Uma Canção Distante” é, não só uma tarefa perigosa, como prazerosa: arriscamos naufragar no seu mar de lirismo e beleza. Há muito não se falava com tanta sutileza na vida, alma humana: tocá-la compete aos seus grandes, indizíveis conhecedores como o citado autor, que nos surpreende com a emoção inerente à sua condição de homem-poeta.
Soares Feitosa, destinado a brilhar, nasceu com esta estrela: o dom de falar nas coisas simples com destreza, maestria e sedução. Dizer a verdade, sem receios: é certo seguir o exemplo dito na dedicatória que me foi feita – seguir o convite.
Vem, meu irmão/tu és um de nós/o medo é uma loucura breve/nem todos sabem o que fazem/ também é certo:/ se não sabemos/ mesmo assim/ poderíamos/ter feito/ um pouquinho mais/ e melhor. É uma enciclopédia viva da humanidade, o retrato da vida cantada em verso, mas que não é o último, nem tampouco único. É o penúltimo...
Obrigado pelo presente. E pelo convite.
Esta opinião é de Fernanda Carvalho de Matos. Minha neta, com 20 anos de idade, em 98 conclui o curso de Direito na faculdade da Universidade Católica. Apesar de tanto estudar e de trabalhar teve oportunidade de ler o livro de Soares Feitosa que lhe entreguei para apreciar. E sua opinião, já proveitosa e admirada. Escreveu sobre o poeta uma literatura que exalta o autor. Esse autor já foi enaltecido por muitos intelectuais. Dentre outros encontram-se Antônio Massa, João Ribeiro Ramos, Jorge Amado, Hélio Pólvora, Thiago de Mello.
A eles se encontra a jovem Fernanda mostrando-se uma literata que já sabe admirar e elogiar Psi, a Penúltima que realmente merece ser considerado um volume de versos agradáveis. E ela, apesar de tão jovem, faz com justiça e devida consideração ao referido Soares Feitosa. Leu em pouco tempo mas para sempre o que escreveu. Merece o apoio dos leitores.
Junot Silveira [Jornal A TARDE, Salvador, 27.7.1997].

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OFICINA nº 2:
O poeta Luiz Paulo Santana interpela o autor desta Uma canção distante “Feitosa, as pessoas são iguais em toda a parte. É o que as imagens mostram, dispensáveis as palavras. Mas, Poeta, por que você escreveu aqueles versos, em “Uma canção distante”? Arriscaria dizer-nos? Grande abraço, LPSanana”. Um diálogo necessário que, de tão importante, deixo para o final.

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ABILIO TERRA JUNIOR: Poeta Soares Feitosa, “Uma canção distante”, um belo poema que nos fala de uma viagem, uma viagem inatingível, pois sua paisagem poderá ser verde, como em um sonho de amor, e toda uma vida se passa, a só restar o silêncio. Mas esta canção e esta viagem persistem, teimosas, em uma memória perdida em que as coisas da amada continuam guardadas, mesmo que todos os contratempos surjam, tempestuosos, destruidores, em que até as jangadas naufragam, e o mar transforma-se, brutal. Navegar é possível para o poeta, pois ele navega nas asas do seu sonho e da sua imaginação.

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ANA PELUSO: Naveguemos. Até mesmo por ser possível. Tudo é possível nesses dias de fim. Ou temos dúvida em relação ao fim? Eu não tenho. E nem acredito que ele seja geográfico. É o fim do homem, mesmo, como homem, “experimento”. Aguardar que aconteça mais do que tudo o que já aconteceu, seguir avançando na velocidade da luz, vai dar na descoberta que nos vampirizamos de outra forma. Nos fazemos mal. Esquecemos quem somos em função do que somos... Aí a terra geme e dá nisso. O Feitor imagina que eu soube que a terra tem alma?!! Filgueras! Como não havia pensado nisso antes! Se até planta tem, porque ela – a nave mãe – não teria? Deve estar cansada, a pobre... Naveguemos. As lágrimas da terra são muitas. Cabem barcos à mancheia. Só não sei se aguentam o insustentável PESO DE SER. Mas também não tenho a mínima certeza de que um dia entenderei porque a terra deve chorar, fazer água pra homem navegar e descobrir mais terra, e matar outro homem por causa da terra, e a terra chorar e jogar homem longe, e ele atravessar a lágrima à barco, à nado, e começar tudo de novo... Só que tem uma coisa nesse sistema de navegação, que não confere nem a bombordo, nem a estibordo: a dor é no meio. Bem no centro, que é a própria embarcação. Deviam abolir a dor do calendário, como quem apaga a porta e fecha a luz. Feitor, sinto saudades.Enviei vários e-mails, quis dar apoio à Biblioteca Cururu, mas senti o silêncio e o (a)guardei. Também ando cansada dessa outra terra navegável.Mas por hoje é meu abraço santificado, abençoado, ungido, bento, iluminado no amor fraterno; aquele que ama porque ama, pelo amor, que é bom de sentir Abraço, então, bem grandão! Ana

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CLAUDIO PORTELLA: Soares, li o seu belo poema sobre a viagem, a ida interior, para depois emergir, feito uma onda sim, mas de calor humano, de solidariedade. Foi o que eu senti ao ler seu poema, sua mão passeando sobre nossas cabeças, em afago e carinho. Sensível! Fui mais adiante e li a interrogação do Floriano, acerca da poesia querer contar a vida. Pound disse que os poetas são as “antenas da raça”. Talvez seja por isso, não podemos dicotomizar, não podemos deixar de cantar, nosso canto interior que ressoa com a história de nossa aldeia. Devassada por uma enorme onda, ou banhada de sol. Carinhos!

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DANIEL GLAYDSON: Prezado Soares, “Uma Canção Distante” – fiquei abismado com a última estrofe, e lembrei do que Fabrício (o Carpinejar) me disse num dos nossos diálogos virtuais: “poesia é enxergar o que pode ter acontecido”. Ou o que poderá acontecer, acrescento. A poesia é tanta coisa, por que não poderá ser profética também? Não diria “coincidência”. E não importa se o autor acha que “nada a ver”. O importante é o leitor e será difícil daqui em diante ler tais versos sem sentir aquelas ondas, sem ouvir aqueles gritos, sem enxergar aquela multidão de mortos:

Guardo tuas coisas para uma viagem,
(em que vontades?):
pois se me fugiram os cavalos meus,
arrebentados todos os trens,
mortos os condutores de todos os carros,
naufragadas todas as jangadas,
e o mar,
brutalmente mar,
mesmo assim,
as coisas tuas guardadas, fiel:
(onde?):
navegar é possível.


Até as possibilidades que restavam ao poeta foram exterminadas... Carpe diem! Daniel

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EDNA OLIVEIRA SANT'ANA: Poeta Soares Feitosa! Como todo bom poema, “Uma canção distante” também me seduziu! Talvez eu não tenha percebido a essência da mensagem nele contida mas desculpo-me dizendo: ah! isso é intransferível, pertence ao poeta! A bem da verdade, o que há de mais fascinante em um poema, e o seu não é uma exceção, é a capacidade de nos transportar, numa fração de tempo, por terra, mar e ar e de nos fazer sonhar, experimentar sensações nunca antes sentidas, ir à procura de amores perdidos, confessar verdades escondidas, lidar com desejos reprimidos, expurgar os medos, antever catástrofes, enfim... O que mais dizer? Não sei, não sou muito boa com as palavras, mas eu fico a imaginá-lo em: “Salvador, tarde leve, 2.8.1996, no Ondina Apart Hotel, um dos lugares mais lindos do Brasil. Do mundo!” (palavras suas), com o olhar fixo no mar a observar o movimento das ondas e a ouvir “uma canção distante” a lhe advertir com antecipação um oceano em fúria! Ah! desculpe o meu jeito irreverente de ser! (rs) Um dia, quem sabe, poderei assinar assim: Da colega, Edna Oliveira de Sant’Ana. Salvador, Bahia

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ELÍDIA MARIA FRANZIM: Querido poeta, “Uma Canção Distante” (com os comentários, as torres gêmeas, a linha de trem/foto) pegaram-me pelos cabelos e me sacudiram pra valer. Acordei de mim mesma, egoísta imbecil neste casulo de seda. Acordei e estou pasma diante de seu Poema x Ásia x Salmo 46 x o acertado que lhe diz Nilton Maciel “... desde a catástrofe eu te vejo sobre as ondas mais altas e mais rebeldes, cabelos soltos, quase heras, a gritar como só os poetas sabem gritar”. Mesmo! é impossível ler “Uma Canção Distante” e não entrever os últimos dias de dezembro. Sob impacto, noite alta, li e reli o que me remeteu. Chorei. Sua Poesia, além de apocalipse, profecias e salmos, é Evangelho. Redime. Humilhada te agradeço e amo. Beijo. Elídia

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FLORIANO MARTINS: Homi: Mas por que a arte quer tanto ser identificada com a realidade? Por que o artista se interessa tanto por ser um cronista, ainda que de acontecimentos futuros? E por que mil diabos tamanha dificuldade em prever o presente? Tinhas razão e logo te desfizeste da medonha: o poema nada tem a ver com o tsunami. O poema é mais amplo e não se esgota em uma tragédia localizada. Mas por que cargas d’água o artista quer sempre ser identificado com alguma tragédia? Qual a metragem, o diâmetro do balaio de culpas que leva pregado na corcunda? E o poema, puxa vida, tão bonito! Abraxas, Floriano Martins

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FRANCISCO PERNA FILHO: Caro Amigo Feitosa, o MAR, simplesmente o MAR, envolto de homens tão prenhes de si mesmos, confortáveis nos seus assentos, nas suas calamidades imperceptíveis, no olhar por cima que singra o sem-sentido, o invisível ocaso dos objetos. Somos todos náufragos, pálidos senhores do AGORA. Só a ARTE nos tira DA CALAMIDADE DE SERMOS TÃO HUMANOS e BRUTOS, brocados como as velhas tabocas, abandonados nas barrocas da nossa imaginação. Caro amigo, navegar será sempre possível, mesmo que nos tirem as rédeas, porquanto o nosso norte está para lá dos oceanos, dos angicos, dos pau d’arcos, das sarãs. O nosso NORTE será sempre a palavra. Com admiração, Chico Perna

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GIVALDO AMARAL SANTOS: Amigo, só hoje consegui abrir a página que enviou para mim. O poema é de uma beleza lancinante e a imagem veio sob medida. Ambos formam um conjunto que nos toca profundamente. Obrigado por este momento de beleza, mesmo sendo uma beleza que nos remete a um acontecimento tão triste. Um abraço. Givaldo

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LUCIANO LANZILLOTTI: Uma canção distante é primoroso. Acho que preciso aprender contigo a escrever tão bonito, caro amigo.

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LUCIANO MAIA: Poeta, às vezes ocorre um fato e logo o relacionamos com algo que escrevemos, sonhamos, imaginamos, ou simplesmente desejamos ou tememos. Em 1982, quando do lançamento do meu primeiro livro, “Um Canto Tempestado”, vivi essa sensação, com o desastre de Aratanha (ver poema “Poema para a vida”, p. 78) e, depois, com a Guerra das Malvinas (ver poema “Cósmica paixão de estrela”, p. 97). Com a chegada da água do Jaguaribe às torneiras da Praia de Iracema, senti também que havia escrito ou sentido isso... (ver última estrofe da “Dedicatória” do livro “Jaguaribe – Memória das águas”. O teu poema nos remete à tragédia da Ásia, não sei se foi ou não premonição, se você agiu aqui como poeta-vate. Quem o dirá? Seja como for, há que reconhecer-se uma relação (coincidente ou não) entre o seu texto e o fato medonho. Abraços do Luciano Maia

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MARCO AQUEIVA: Uma canção não tão distante. Sabe, Poeta, tenho uma tendência a desconfiar que a Poesia só penetra em nós por qualquer coisa que não possuímos. A despeito do esforço por controlar e ordenar a palavra, somos sempre aquela tormenta que, por um indescritível transtorno psicósmico, volta-se chuva fertilizante. Malgrado seja a torre uma iniciativa para vencer nossas limitações – ainda mais uma que se apruma sobre o mar, como o entorno terrífico (?) que envolveu o Poeta lá em Salvador –, erguemos artefatos de concreto como não mais que tiras de papel – blocagem de versos, qual frágeis e artificiais rochedos, contra o profundo poço central do esquecimento, poesia&mar-adentro-de-nós-mesmos. Imagem que talvez transcenda a condição de mera metáfora e seja mesmo uma completa tradução de nossa condição psicósmica. O estar no hotel, sei, era circunstancial; não certamente a forte impressão que restou. E estou me detendo no que está ausente, absoluto-nada de uma confluência pela qual não sigo mais por desconfiar de um fio d’água particularmente desimportante. Mas nem os lagos choram demais que os olhos desenrolem um sol, mesmo tímido, nas águas feras, brutas e sem margens do Mar-Oceano. Pouco sei da força das águas, mas compreendo um pouco da concha de um apartamento, da realidade sensível da água contida em um copo de água, desta-ainda-de-ontem que se mantém represada na bolsa dos olhos que magicam a existência de uma conspiração ou programa misterioso. Tudo é muito próprio dos homens. Sempre o foi. E de sobejo, nem a poesia restará nos escritos do ar, da terra, do fogo e da ferágua. Por que o fazemos se é tudo ralo? Ralo-me porque pouco-e-tudo importa. Desviamos o sentido da DES-GRAÇA para o que seja a GRAÇA, eis a poesia como um quinto elemento da natureza, só incompreendido pela “des-natureza” do homem amesquinhado. Perdoe este tom frio e seco. É que é terça-feira de carnaval e, contra-toda-PRÉ-VISÃO-do-tempo-e-expectativa-na-passarela-deste-dia-alegre-e-triste, faz frio e meu coração anda terra e fogo. Amanhã seriam outras as cinzas se já não fosse quarta-feira de... Como é mesmo? Uma canção distante: Pobre velha música. “Recordo outro ouvir-te”. Tudo e nada soa. Pessoa. Abraços-de-um-folião-mal-arrependido! Marco Aqueiva P.S.: Embora irrelevante, foi mesmo em Salvador que tudo se deu? Ou será a notação do lugar “Salvador” recurso ficcional? Não é necessário responder. “Poesia, Salvador”. Quando se evidencia a epifania.

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MARIA DA PAZ R. DANTAS: Soares: Li seu belo poema “Uma canção distante”, cuja última estrofe ecoou em mim aquele silêncio das “coisas passadas”. Para mim, a grandeza do poema pode ser medida no fato de que foi escrito “numa tarde leve”, mas concentra uma força que o remete à tragédia apocalíptica que acaba de acontecer no extremo do mundo. Uma tragédia que é real e ao mesmo tempo simbólica de nossas impossibilidades interiores e exteriores. A arte que me toca mais fundo é a que diz o real, o concreto visível, transcendendo-o em significações mais vastas. Dizer o real, sim, mas não parar no simples localismo, “no modo presente”, na circunstância imediata. “Viajar em que modo?”. Sentir “no modo pretérito” ou no modo futuro (que o poema alcançou), que as coisas emitem radiações e são essas radiações que o poeta registra e são captadas pelo leitor sensível Um abraço e que 2005 lhe seja favorável. Maria da Paz Ribeiro Dantas

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NILTO MACIEL: Poeta Soares Feitosa, não o vejo desde o último maremoto, mas desde a catástrofe eu te vejo sobre as ondas mais altas e mais rebeldes, cabelos soltos, quase heras, a gritar como só os poetas sabem gritar. Este poema de águas, de rebeldias, de desastres, de morte é um arrebatamento dos deuses, aqueles que te acompanham nas noites e nos dias de tua insânia indomada. Este poema me levou de volta aos primórdios e não é coincidência nada, foi premonição, porque os poetas como tu são premonitórios e, portanto, eternos, como o mar, as ondas, as águas, a vida, o sem-fim. Nilto Maciel

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VIVALDO LIMA DE MAGALHÃES: Fantástico! Seu poema ilustra com perfeição e propriedade o quadro de Andreas Achenbach. Acredito que as imagens retratadas pelo artista nada têm a ver com as tsunamis asiáticas. No entanto, o conteúdo profético e atemporal de “Uma canção distante” são marcantes, e possibilita a interpretação de que o poeta, naquele instante, foi induzido a uma visão premonitória. Há quem afirme que o acaso não existe. Há controvérsias e o questionamento é inevitável. Nem tudo é o que parece. Abraços, Vivaldo

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Da interpelação do poeta:

LUIZ PAULO SANTANA:Feitosa, as pessoas são iguais em toda a parte. É o que as imagens mostram, dispensáveis as palavras. Mas, Poeta, por que você escreveu aqueles versos, em “Uma canção distante”? Arriscaria dizer-nos? Grande abraço, LPSantana

RESPOSTA DE SF: Meu caro LPS: Realmente de assombrar o nascimento de “Uma Canção Distante”: fogo, muito antes da fumaça. A gente nunca sabe. Ou sabe?
Conto-lhe que a primeira vez que vi o quadro de Andreas Achenbach, bem uns cinco depois de ter escrito “Uma Canção Distante”, disse aos meus botões:
– Já vi!
Mas, de verdade, jamais vira aquele quadro. A ligação com o “Mar, brutalmente mar”, do poema, veio-me imediata. E agora, também imediato, chega-nos o maremoto.
Luiz, nunca vi um maremoto. Ou já vi? Não sei porque, desconfio que sim. Anote aí, por favor: Já vi. Todos nós vimo-lo. E escapamos!
Sabe, Luiz, a gente traz conosco a tal memória ancestral. Você, em Minas, muito longe do mar, sei que sempre sonhou (todos sonhamos) com o mar. Claro que sempre “viu” o mar, tudo por conta daquilo que, indelével, nos tem sido passado de terror e sofrimento, milênios e séculos. Todos nós, ainda que da cidade, temos medo de cobras e bichos; sonhamos com eles, “inimigos”, ainda que jamais os tenhamos enfrentado. Sonha-se muito mais com a tormenta (feras, águas e abismos) do que com carros, trens e aviões, cuja memória, tão recente, ainda não deu tempo de “envelhecer” no quengo de cada um de nós.
Veja, poeta, raramente sonhamos com o fogo. Só mui recentemente o homem descobriu o fogo. Antes eram as feras, as águas bruscas (a seca também) e os abismos.
Parece que nos poetas essa tal memória ancestral, meio a la Platão, está mais à flor. Acho que é isso. Deve ser.
Com o grande abraço do Soares Feitosa.

Resposta nº 2: Prezado LPS. Não fiquei satisfeito com a resposta que acabo de lhe mandar. Desconfio que me perguntou sobre o poema, os “comos” e os “porquês”. Ah, meu caro Luiz, se assim é, assim foi, conto-lhe, por seu favor, dois pontos:
Cidade da Bahia, ano de 1996. Morava eu no Ondina Apart Hotel, uma das mais belas vistas de Salvador, do Brasil e do mundo: desde que do lado do mar, naquele hotel, que a banda da rua é de cortinas fechadas, de sol, poeiras e barulho. O Ondina não é em “frente ao mar”, como normalmente entendemos prédios de frente para o mar, com uma avenida entre o prédio e o mar. Não, meu caro Luiz, aquele hotel põe-se à beira do mar, afrontoso, sem rua alguma. Se descer uns quatro batentes, já estará “dentro do mar”, molhando os pés — pronto, é o mar!
O pior é que o prédio, como se fossem as tenazes do caranguejo, faz um côncavo para dentro do mar, cercando-o, ensacando-o, engolfando-o, açambarcando-o. E o mar, como quem não refuga um insulto, vem de lá, com a moléstia dos cachorros doidos!
Luiz, eu morava no 10º andar, no 1003, ou seria no 1004, do lado do mar, no centro do côncavo da mão. Lá embaixo, ele, o Mar, estalando, rugindo, estrugindo, batendo noite e dia, até acostumar, que nunca acostuma, que a gente sabe que lá embaixo é escuro.
Estava sozinho em casa. Deixe-me conferir a data neste computador: 2.8.1996, sexta-feira, de tardinha. Num dos quartos onde instalara minha “oficina”, fazia eu um trabalho da repartição ou montava uns panfletos como este, que sempre gostei de fazê-los, mas isto, exatamente o que, por favor não insista: faz muito tempo, estou velho.
Era-me o costume, ainda é, recostar-me à janela. Sim, uma irrefreável paixão por janelas. No intervalo entre um cálice e outro, que nem os bebo tantos, um telefonema, coisa assim, os olhos pregados lá embaixo, recapitulando a briga de sempre: eu e o mar. Desculpe-me, não era exatamente este seu amigo quem brigava contra o mar. Era um par de rochedos bem embaixo de minha janela.
Entre um rochedo e outro, eu dizia, mas nunca disse a ninguém, que ali, naquele vão por entre as pedras, era a Garagem do Mar. É que havia dias, ele, o Mar, igual a esses amantes violentos que sabem, raros, encherem-se de ternuras, deixava aquela passagem, entre um rochedo e outro – a “Garagem” – bem limpinha, a areia espelhando de nova, brilhante, vazando águas em pequenos filetes, e ele, o mar, lá longe, tomando-se de calmas, como se não fosse o senhor dos ódios, mas só do amor. Se assim fosse, de calmas a manhã, Mar e Rochedos, pegava eu os carros, alguns de osso, outros de boi, e também os de verdade, o chevrolet de então e o primeiro fusquinha; pegava-os e descia, e os estacionava na Garagem do Mar. Sem despregar da janela, é claro.
Contudo, meu caro Luiz, tanta calma e ócio eram raros, porque, no geral, ele, o dono da garagem, Mar, passava noite e dia querendo, por tudo no mundo, espatifar com aqueles rochedos. Implicava com eles, o mar. Nem me pergunte por quê.
Vi, da janela: ele, o mar, de pura fúria, tentava estragar aquela passagem que, na véspera tão chã, de entre os rochedos. Sim, agora em pura ruína, só buracos, pedregulhos, abismos, espumas.
Estalantes – todos os chicotes do mundo – ele, o dono da garagem, mar, brandia-os no lombo dos rochedos. Pegava-os, rochedos, primeiro um, depois o outro, em seguida a ambos, e metia-lhes a tranca!
– Tomem, seus rochedos de uma figa! Eu sou o Mar-Oceano!
Sim, Luiz, ele mesmo, desde as Colunas de Hércules, donde também viemos, o Atlântico, este colosso. Eu, lá em cima. Súbito, reparei na mão que estava junto aos lábios. Tremia. Tremiam. Tremíamos.
Ainda que fosse cabal o estrupício, havia instantes de calma, insuficientes porém para um respiro. É que ele, o mar, afastava-se ao leito do mar como um carneiro se afasta em briga, e, aríete de ferro e brita, com idêntico trombetear da brita no traço do cimento e da areia, tomava carreira, mar, contra a cidade, contra o mundo. Atacaria ele o prédio? Pô-lo-ia a pique? Então, plaft! Quebrava-se. Esmigalhava-se. Espumas e berros. Recompunha-se bem rápido, mar, tomando velocidade outra vez, a se arremessar muito mais cruel.
Luiz, tal como meus “amigos lá de baixo”, rochedos, atravessava eu uma situação nada aprazível. A empresa da família, Recife, quebrada. Problemas no trabalho, agravados com a preocupação sobre os filhos. Dias havia que me restavam aos olhos tão-só aqueles “dois amigos”, os rochedos lá debaixo e sua areia bem plana, architectura divina, quando o mar aceitava deixá-la plana e limpa, num leve rampado, perfeito para subir e descer com os carros de boi e o trem de ferro, mas o normal, já disse, a fúria do mar, a devastação a cada açoite.
Sim, indaguei-me, naquela tarde de violência máxima, como haveria de ficar “minha garagem” que não era do mar coisa nenhuma, era “minha”, retifique aí por favor: minha!
Reparei atento, lá embaixo, no fragor da contenda. Sob as espumas e gritarias do mar, vi que havia água. Uma água turva, mas aparentemente calma, no lugar das areias da rampa (garagem) que o mar escavacava ao osso. Tudo destruído. Ainda assim, recomposto pelas águas. Os rochedos resistiam, cada vez mais agudos. Reparei por entre as espumas. Vi que havia um pequeno espaço para um bracejo, questão apenas de desviar. Não faria mal algum ralar o bucho e os joelhos. Só isto: a perícia de desviar. (Navegar é possível). Saltei.
Fechei a janela. Bebi alguma coisa, um café, que sou viciado em café; água ou teria sido uma lapada de quentes. Sei não, Luiz, o que bebi, mas bebi. O computador aceso. Pedi-me que escrevesse. Dias depois, escutei os gritos da Musa, em “Salomão”:
– A onda é alta, Coronel!
Desconfio que todo o bracejo de mar, de Salomão, fez-se naquela janela, naquela tarde ou noutras muitas em que briguei com o mar, em meu nome e em nome dos nossos ancestrais, desde o mar e antes do mar.
Confirmo, meu caro Luiz: a onda é alta. A vida é alta. Tudo o que você vê, seus pais, desde os tempos, já viram e lho “passaram”. Está no seu quengo impregnado, uma leitura de decifrações – assim a Arte.
Nada há de novo sobre o mar.
Não creio na tabula rasa. Rasa coisa nenhuma! É apenas uma questão de leituras. Arte!
O abraço do Soares Feitosa

Resposta nº 3: Amigo Luiz, só agora, depois do segundo e-mail, dou-me conta do título do poema: Uma Canção Distante. Por que, meu caro Luiz, houvera de ser distante se ali tão próximos o mar, os rochedos; e eu lá em cima sob aflições?
Vem-me esta outra pergunta de fim de noite: o que em comum, entre aqueles que presenciaram maremotos (desde a descida das árvores), o salmista (Sl 46, que exatidão de linguagem!), o pintor alemão, a canção distante deste seu criado, e os acontecimentos de 26.12.2004?
Comum a todos: sobreviveram, sobrevivemos. Contam à posteridade o que viram e o que seus pais têm visto há milênios. Puseram mãos sobre mãos, recapitulando uma mesma e inesgotável história. Desde! Aliás, meu caro Luiz, já falei isto no Primeiro Panfleto (“Estudos & Catálogos – Mãos”): Poeta Virgílio, creia-me, o catálogo das mãos é inesgotável porque as mãos dos novos hão de garantir as nossas mãos. Por sobre, sempre por sobre, que assim tem sido.
Veja, poeta Luiz, em “Uma Canção Distante” pede-se uma paisagem verde, quando o normal é pedi-la azul, que nunca vi os poetas gostarem de azul, como se o mundo fosse só-azul, que não é. Por que o verde, ali?
Luiz, o verde do poema implica milhares de anos de secas, aqui, sertões do Ceará, Rio Macacos, desde os índios. Implica também a aspereza do tempo, de nossa herança milenar, Sael, terras d’África. Poeta, nós “estamos” lá! Este seu amigo é branco como um queijo de coalho, mas o cabelo é “ruim”, um pé n’África, outro na senzala. Nalgumas vezes, as mãos sob o jugo tumbeiro; noutras, negreiro, de chicote em punho, no tráfico, estalando-o. Sobreviemos, sobrevivemos. Não podemos fugir: de terror ou júbilo, indiferentes.
Nestas horas, meu caro poeta, é que “detesto o azul”, um céu sem nuvens, azul-azul, de chuva nenhuma. Verde, Luiz, minha janela há de ser verde, clamam-me os sangues secos.
E águas, poeta, onde as águas? Sempre tenho sede, muita sede. Onde o São Francisco que aqui não chega?!
Creia-me, tenho que a Arte é fazer repercutir no traço – linguagens – o trom dos deuses. Escrevi “trom”. Pelo bem e pelo mal, tanto faz. Terror e júbilo, assim mesmo, deuses. A história dos sobreviventes, que os mortos não têm história para contar. Ou têm? Contemo-la por eles, a história deles, a nossa história – é a nossa vez.
A Arte há de manter navegável um córrego entre o atual e o ancestre, seja de júbilo, seja de trágico – os deuses, de dentro.
Linguagens? Sim, meu caro poeta! Poesia, escultura, oratória, romance e narrativa; música e pintura e dentre todas, o corpo. Também o corpo. Repare no Carnaval, a propósito deste sábado de carnaval.
– Já vi! – você bem que pode dizer, e deve, apenas para ficar em coisa mais recente, livros, a partir da invenção da escrita, Êxodo, 23, 16, a Festa das Tendas, sete dias enfiados de festas:
“O povo ficava nas cabanas durante sete dias de festa. Na primeira noite da festa a área do templo era profusamente iluminada por lâmpadas e tochas; danças rituais eram realizadas à esta luz. [...] Chifres e trombetas soavam nos momentos importantes da festa”. Confira em John L. Mackenzie, “Dicionário Bíblico”, Paulus, pág. 921.
Repare agora na exatidão científica do salmo 46: qual o cientista que, com toda a modernidade, descreveria melhor um maremoto?
[...] E por isto não tememos se a terra vacila,/ se as montanhas se abalam no seio do mar;/se as águas do mar estrondam e fervem,/ e com sua fúria estremecem os montes. [...]
Instrumentos? Para quê?! Basta o gesto, basta o silêncio (selá, a palavra hebraica que traduz a pausa do texto, neste salmo, o 46, repleto de selás. Seria tanto mais verdadeiro o poema quanto mais selás ele contenha? Desconfio! Sobretudo quando da selá, sem referencial algum, de ponto ou ponto e vírgula, mas implique, “selá”, a pausa absoluta..., parar, respirar fundo, voltear no jardim, ainda que sem mover um músculo. Você vai lendo e... esbarra. Ponto!
[...]
Nossas mãos, poeta, são muito mais velhas do que nós. O falar das mãos. E seus silêncios. Fazer. Faber, o homofaber.
Finalmente, poeta, mas isto seria matéria de um outro panfleto, o modo advérbio do poema: a negação do tempo, vide “Salomão”, “Segundo Movimento”, “Os Cantares de Pulso”: Desliguei todos os relógios,/ entortei-lhes os ponteiros,/ lancei-os no mar.
Com este abraço nada silencioso. Soares Feitosa
(Fortaleza, 5.2.2005, noite muito alta)

Luiz Paulo Santana responde:
Querido Poeta Soares Feitosa, cá estou, de volta à casa. Chegamos nesta segunda-feira, eu estava lá, beira-mar capixaba, águas salgadas desse mar misterioso, belo, vasto, indomável.
E que bela surpresa você me proporcionou. A “Resposta nº. 2” inundou-me de emoção. Por tudo, pela história viva que você narrou, pela narração em si, seu verbo, sua literatura, seu estilo inconfundível, forte, vibrante. Que bela representação literária de uma história viva, que prosa fantástica! Eu estava sob os efeitos da primeira leitura e minha filha, professorinha começando carreira, passava, chamei-a, desculpe-me filha, olha aqui esta história, fiz preâmbulo, contei-lhe da pergunta que originou essas mensagens e reli, ela ao meu lado, e ambos assistíamos a cena até o grande susto – “Saltei.” – sim, saltou-lhe a alma, segurou-a pelas penas talvez (se almas têm penas – e muitas as têm) de volta ao peito, ao corpo, à salvação pela poesia, à vida. Homem agônico envolve-se em luta do mar contra os rochedos. Você – o personagem ali representante, navegou a grande onda.
De fato, a Resposta nº. 1 não me satisfez. Não insistiria na pergunta, mas buscava uma resposta visceral, e ela veio. Queria mesmo saber os comos e os porquês, o que fosse inteligível para o autor, que outras tantas respostas nem mesmo o autor poderá garantir, levantará hipóteses, construirá uma teoria.
Contudo, relendo o poema senti ainda um abismo entre ele, poema, e a história viva da Resposta nº. 2. A Resposta nº. 2 configura um transe em progressão, no auge o personagem sentiu-se atraído para uma luta que não poderia vencer, exceto pela sublimação, pela tradução algo mediúnica de sensações e sentimentos que talvez lhe deem alguma razão na Resposta nº. 3. Aumentou-me a profundidade misteriosa do poema. Sua observação — oportuníssima — quanto à palavra distante do título é, no mínimo, curiosa. O eco desta canção distante está várias vezes expresso no poema, tanto que perfazem-se dúvidas: “...viagem (em que tempo?... em que modo?.... em que vontades? Em que vagão viajaremos? As janelas estarão abertas para uma paisagem verde?”. A evocação ao modo, presente e passado, coisas passadas que passam num presente e assustam.
“Guardo tuas coisas para uma viagem...”. Diz o poeta Antonio Cícero in “Guardar” (livro e poema publicados em 1996): “Guardar uma coisa” é olhá-la, fitá-la, mirá-la por/ admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado./Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por/ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela. “Guardo tuas coisas...” enseja um encontro revestido do mais pleno e atemporal mistério. A quantas histórias o poema se propõe? Não sabe o autor? É muito provável que não. Ele mesmo o diz na Resposta nº. 2: “Sei não, Luiz, o que bebi, mas bebi. Pedi-me que escrevesse”. Tinha acabado de saltar, embebera-se. Ora, quem, quantos eram, afinal?
Sim, navegar é possível. Ainda que, e sobretudo, nas águas trêmulas da poesia.
Grande abraço,
Luiz Paulo Santana
BH/MG, 18.2.2005

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