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Carlos Felipe Moisés


 

Devolução


A noite veio, dispersou meu corpo,
e os ventos me passearam pelo campo.
Ah minha carne misturada à terra,
meus ossos desmanchando-se no frio
secular dos rios que me despejam
envolto em musgo e lama contra as pedras.
Meus olhos desmoronam-se no verde
e a paisagem traspassa-me as retinas.
Meus dedos carcomidos se desfazem
pelos vãos das folhas, de volta ao pó.
De minha boca inútil nascem rosas
brancas, Eu chovo, eu vicejo, eu me planto,
e um dia eu vou brotar por entre as pedras
frias, mais puro, transformado em verde.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés


 

Retrato


Ah quem viu? Quem vê?
Onde se esconde a pátina invisível
que cobrindo está
eu sei
estas palavras
estas mãos
o sono
e quando olho é brisa?
O mundo exíguo aumenta
no soluço reticente.
Ponte rio estrada
o céu a casa
e o corpo descontente.
Mulher? Criança? Não foi.
É o sol
que lentamente se levanta
e grava a solitária imagem
em pálpebras reclusas.
Absurdo, o amor desliza.
Oferta sonho recusa
repto sudário:
o amor é vário
e as vozes obtusas.
Foi? Não foi?
Palácio ou cornamusa
o mundo nítido é fatal ausência.
O céu — destino
a intenção — certeza
e a incerteza se desnuda
na moldura breve do meu riso.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés


 

As formas do branco


Caminho pela neve
e o mundo principia neste branco.
Tenho a verdade, sonho breve,
branco retido no branco.
 


Girassol amanhecido longe,
a verdade apareceu-me nesse branco.
Tempo devorado como carne, corpo ferido,
vermelho sobre o branco.
 


Os pássaros nascem nas nuvens,
azul distante.
Tinha a verdade, perdi-a:
branco escondido no branco.
 


(Urna diurna, in Poemas Reunidos, São Paulo, Cultrix, 1974)
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés


 

Liberdade

 

para Luís Amaro, em Lisboa, um ano
depois da Revolução dos Cravos



Aqui sonhei a liberdade
         saudade
cantei a cantiga
         mendiga
bebi o clarão da lua
         na rua
vi o mar cheio de medo
         segredo
apascentar caravelas
         estrelas
vi a noite azul de espanto
         encanto
agasalhar Madragoa
         Lisboa
e com dedos de fada
         amada
plantar no vão do meu peito
         desfeito
a rubra flor da liberdade
         saudade.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Tributos

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés


 

Folha sobre folha


Folha sobre folha
verde sobre cinza sobre folha
vento sobre folha
lento pobre manto cobre tanta
folha sobre folha.


O tempo se acumula,
quando sobre nunca,
até que o passado ressurja inteiro,
coberto de folhas,
memória liberta de si mesma.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés


 

Carrego as estações


Carrego as estações comigo
e tenho as mãos cansadas.
(No bolso esquerdo um riacho murmura.)
Ali, onde pequenas pedras se acumulam,
uma canção exala seu vapor,
depois se perde.


Jardins de primavera circulam no meu corpo,
um céu de ouro verte seu perfume
e um vento ignorado agita suas asas.
Pasto de segredos,
mescla de memória e desejo,
meu corpo caminha com a chuva
(carrego as estações comigo),
à procura do sonho de uma nuvem fria.


Tantas folhas trago nos braços
que um pássaro, solidário, se oferece
para carregar as estações comigo.
Do peito aberto os meus jardins se vão
e o pássaro me ajuda (memória
e desejo) a semear meu corpo.


Ali planto meus braços,
debaixo daquelas árvores meus olhos ficam,
os pés, roídos pela terra, penduro numa árvore
e o tronco multiplico em cem pedaços –
lá vai, junto com as pedras,
no bojo do riacho antigo.


E pois que carrego as estações comigo,
os lábios deixo além, no descampado,
e peço ao pássaro que pelos cabelos atire
o que sobrou de mim
àquele mar onde me espera a memória
(e o desejo) do tempo em que não soube
carregar as estações comigo.
 

 

 

 

 

 

 

26.23.2017