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Simone Ribeiro

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

 

     
Ensaio, crítica, resenha e comentário:

  1. A gênese árdua da criação, uma entrevista com Philippe Willemart

  2. Audioliteratura, a palavra reinventada

 

 

 

 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

William Blake (British, 1757-1827), The Ancient of Days

 

 

 

 

 

 

 

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Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Albrecht Dürer, Mãos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A menina afegã, de Steve McCurry

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

Simone Ribeiro

A Tarde, Salvador, Bahia, Brasil

04/10/2003

 


A gênese árdua da criação - Philippe Willemart

Espontaneidade e inspiração, mitos que cercam a invenção literária, vêm sendo pacientemente derrubados pelo professor belga Philippe Willemart, radicado no Brasil desde 1983. Na semana passada, o especialista em crítica genética esteve em Salvador, a convite do Colégio de Psicanálise da Bahia, falando a respeito de criação, pesquisa e arte em Marcel Proust. Ele sustenta que o valor de uma obra, um romance, um conto ou um poema, normalmente esconde um trabalho braçal e intelectual, de noites a fio, revelado através dos manuscritos. Rascunhos ou bilhetes, todo e qualquer material que antecede o nascimento de frases, versos e capítulos inteiros valem como indícios. Na entrevista a seguir, o diretor do Laboratório do Manuscrito Literário, ligado ao Núcleo de Apoio à Pesquisa em Crítica Genética (NAPCG) da USP, também explica como a psicanálise se alia ao processo de decifrar e interpretar textos e que a procura de um “grau zero” da escritura, como formulou o teórico francês Roland Barthes, é uma obsessão dos gênios. Willemart já publicou, entre outros, Escritura e Linhas Fantasmáticas (1983), O Manuscrito em Gustave Flaubert (1984), Além da Psicanálise: a Literatura e as Artes (1995), Proust, Poeta e Psicanalista (2000) e Educação Sentimental em Proust (2002).

Simone Ribeiro

Simone Ribeiro - Professor, gostaria de começar perguntando o que é a crítica genética e qual a sua relação com a psicanálise.

Philippe Willemart - A crítica genética tem como objeto o estudo dos manuscritos dos escritores, dos artistas e de qualquer um que comece uma coisa e deixe traços. Com os escritores, é bem mais fácil, principalmente os do século XIX, como Flaubert e Proust, que deixaram vários rascunhos. O problema é decifrar. Demorei um ano para decifrar 100 folhas de um conto de Flaubert, “Heródias”, que representam 10 páginas publicadas. Em seguida, é preciso classificar, dar uma cronologia a esses manuscritos, porque muitas vezes as bibliotecas recebem um pacote da família e deixam lá. Depois, é preciso interpretar.
 
SR - E como objetivamente isso acontece?
PW - Estamos tentando através dos manuscritos detectar os processos de criação dos escritores, como eles passavam de uma frase à outra. Muitos copiam uma página e trabalham à margem, recopiam e fazem um novo texto. E aí chegamos num momento-chave, que é a rasura, para mim, a porta de entrada da criação. A partir dela, alguém ou algo tocou o escritor, e ele rasurou. É lá que entra a psicanálise. A rasura é o momento em que o escritor deixa a sua intenção primitiva de escrever e escuta. Escuta o quê? A tradição literária, cultural, uma música, a mulher dele passando na frente, qualquer coisa. Quando rasura, o escritor se deixa levar tanto pelos terceiros quanto pela linguagem, que é um fator importantíssimo na construção de uma obra.
 
SR - A tarefa de decifrar manuscritos exige especialização?
PW - Exige dedicação e uma prática de memorização do texto publicado, porque muitas vezes é repetição. Repetições que são feitas nos rascunhos. É preciso, portanto, conhecer o texto de cor.
 
SR - Na palestra que veio fazer em Salvador, o Sr. falou sobre a criação em Proust. É possível resumi-la?
PW - Chamei essa palestra de “A Lógica do inexistente na elaboração proustiana”. O inexistente é uma categoria matemática encontrada por Gotlob Frege (1848- 1925), um alemão, que é a base de toda a matemática de hoje. Uso GF tentando encontrar uma fórmula matemática que pode explicar melhor a criação artística. É difícil resumir, mas o fato é que qualquer escritor tem em vista um ideal, uma perfeição, como se fosse um deus. A rasura vem e ele volta à estaca zero. Qualquer avanço significa eliminar o que era e voltar a trabalhar numa outra coisa. É lá que está GF, que diz que o zero passa por qualquer operação nossa (1, 2, 3, 4).
 
SR - Foi a matemática que o levou a a esse resultado?
PW - Não só a matemática. Eu também estudei uma Bíblia transcrita do século XV, que encontrei na biblioteca de José Mindlin, em São Paulo, onde se vê a construção do mundo, a mão de deus, em dois, três, quatro ciclos, cada dia correspondendo a um ciclo da criação. Deus começou a criar quando entrou na dimensão do tempo. É só a partir daí que ele encontra a imperfeição, quando se submete a uma certa anulação do que é. É lá que eu vejo a semelhança entre escritor e deus.
 
SR - A união da psicanálise à crítica genética passa por que teorias?
PW - Freud e Lacan, sobretudo, no sentido de que o escritor esquece o seu eu imaginário, mas eu nunca, nunca, me atrevo a estudar a vida do autor. Isso não faz parte. É impossível fazer psicanálise em alguém que não está.
 
SR - Que descobertas mais importantes de Proust já fez?
PW - É difícil resumir, mas Proust diz coisas que nenhum psicanalista falou. Os artistas, às vezes, dizem muito mais do que os psicanalistas. Aliás, foi Freud quem falou isso. Só que muitos esqueceram. Até os anos 70, 80, se tentava psicanalizar o autor através de seus escritos. O que eu estou achando é que não se precisa de manuscritos para estudar os processos de criação. Lendo os textos de Proust você já os reconhece. Lá eu me oponho aos estudiosos franceses.
 
SR - E a ditadura da informática? Não põe em risco o estudo de manuscritos?
PW - Os escritores americanos, espertos, sabem que os manuscritos não existem mais. Eles escrevem uma versão no computador, guardam as versões diferentes e depois vendem. Não é a mesma coisa que um manuscrito rasurado, é verdade, mas é uma possibilidade de se manter...
 
SR - Que dificuldades enfrentou para rastrear textos tão antigos?
PW - Em geral os escritores escondem os seus manuscritos. Victor Hugo é um deles. Por quê? Porque é mostrar que ele estava inspirado quando escrevia, não quer mostrar o trabalho que dá (risos).
 
SR - É o caso da prosa, mas haveria algum exemplo a citar na poesia?
PW - Eu não conheço muito... Salvo (Paul) Valéry, que deixou uns cadernos. Mas ele, também, mostrou que a sua poesia era resultado de um trabalho intenso, de construção. É possível medir o valor de um escritor pelo número de manuscritos que deixou, e não pela espontaneidade.
 
SR - Era comum, no passado, escritores cederem seus escritos aos copistas. Que atenção o Sr. dá a essa figura intermediária?
PW - É, os copistas às vezes cometiam erros que eram passados à posteridade. É lá que entra, mais uma vez, a presença do terceiro. Prova que o escritor não é o único compositor na obra. O editor também compõe, assim como o revisor, o copista, todos colaboram na criação. (Jean-Paul) Sartre, por exemplo, tinha uma novela, Le Mur (O Muro), que o editor publicou com um monte de erros. Só que o público já havia aceito essa versão. Não tinha jeito mais de corrigir.
 
SR - O Sr. começou com Flaubert. Poderia relatar esse início?
PW - O Flaubert foi o primeiro com quem eu tive contato. Eu estava fazendo um pós-doutorado, em 82, em Paris, e o professor que me convidou disse “olha, aí está um manuscrito que ninguém viu ainda, fica à vontade, decifra e se vira”. E assim fiquei um ano decifrando capítulo por capítulo, participei de várias atividades, estive em contato com museus e entrei na crítica genética.
 
SR - O que pensa sobre essa tendência do mercado editorial de publicar livros de correspondências? Não acha um excesso comercial?
PW - Não, não. Mário de Andrade, por exemplo, se achava dono da literatura, como se vê a partir da sua correspondência, ensinava como escrever, a fazer poesia. Penso que é bom e serve muito a nós, da crítica genética.
 
SR - Na crítica genética, tudo interessa? Desde um manuscrito a um pedacinho de papel ou guardanapo? A propósito, teria algum fato curioso a revelar?
PW - Tudo que antecede o texto. Nada é descartado. Nathalie Mauriac, que é tetraneta do Proust, descobriu em suas gavetas uma coisa totalmente nova do que fôra publicado, uma parte inteira do romance A Fugitiva. Foi à editora, a Gallimard, e eles recusaram. Ela teve que publicar por fora. Isso quer dizer que Proust trabalhou nessa obra até o final da sua vida. Colocou a palavra FIM num certo momento, mas continuou escrevendo-a. Obras Completas, para mim, não existem.

 

 

 
Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797  

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 


 

 

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Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Simone Ribeiro

A Tarde, Salvador, Bahia, Brasil

11.8.2001

 

Audioliteratura - A palavra reinventada 

 

 

Promover a obra em poesia ou prosa de grandes escritores da língua portuguesa usando suportes pouco convencionais sempre foi um desafio no Brasil. Há três anos, o baiano de Itabuna Paulo Lima Pereira passou por cima das convenções e criou o selo fonográfico Luz da Cidade. Morando no Rio desde a década de 60, o compositor e ex-empresário de música - trabalhou com artistas como Gal Costa, Marina, Ritchie e Ângela Rô Rô - cansou dos condicionamentos da indústria cultural e resolveu apostar num projeto alternativo, que resultou em 23 CDs de literatura: dez de poesias, dois de crônicas, seis de contos, quatro infanto-juvenis e um misto.

  O primeiro “rebento” foi Gregório de Mattos, gravado por Nilda Spencer, e com trilha sonora de Nico Rezende. Na seqüência, vieram Antonio Cicero por Antonio Cicero; Affonso Romano de Sant’Anna por Tônia Carrero; Vinícius de Moraes por Odete Lara; Fernando Pessoa por Paulo Autran e Augusto dos Anjos por Othon Bastos, dentre outros. À coleção de discos de poesia, seguiram-se os títulos em prosa, duplos, de contos e crônicas. Rachel de Queiroz por Arlete Salles, Clarice Lispector por Aracy Balabanian, Lima Barreto por Pedro Paulo Rangel e Rubem Braga por Edson Celulari são alguns. Cada CD traz uma apresentação, uma breve biografia do autor e do ator que interpreta os textos.

  A parceria com atores experientes tem sido um dos trunfos da Luz da Cidade. O resultado são discos de qualidade, de força dramática, que permitem ao leigo e ao leitor de longa estrada o contato com textos consagrados reinventados. A escolha do intérprete, justifica Paulo Lima, leva em conta aspectos como ter formação teatral, saber usar a voz, a respiração, e sentir-se à vontade com o que transmite. “Dizer poesia é muito difícil. A maioria dos atores não sabe. Tento chamar as pessoas certas, que simpatizam com o projeto, e aceitam fazê-lo espontaneamente”, revela o ex-aluno da Escola de Teatro da Ufba. Chico Anysio, Zezé Polessa e Leonardo Vieira também já encararam o microfone.

  As gravações, normalmente, são no EG Estúdio, no Rio. Paulo Lima costuma eleger o material. Outras vezes, delega a tarefa a quem conhece a fundo o autor. Foi o que aconteceu com Poesias e Crônicas Grapiúnas, organizado pelo escritor Cyro de Mattos. Nele, a atriz Nevolanda Pinheiro interpreta Jorge Amado, Telmo Padilha, ValdeliceHélio Pólvora Soares Pinheiro, Euclides Neto, Hélio Pólvora e Florisvaldo Mattos, dentre outros. O mesmo ocorrerá com o CD comemorativo do centenário de Sosígenes Costa, a ser lançado este ano, e cuja seleção está a cargo do escritor Hélio Pólvora. Ainda em 2001, a Luz da Cidade homenageia a obra da poeta mineira Henriqueta Lisboa e do poeta do Pantanal Manoel de Barros.

  Marketing agressivo não é com a Luz da Cidade, uma gravadora pequena, cujo dono é quem atende o telefone, e que conta com dois representantes apenas, em São Paulo e no Rio Grande do Sul. “Não tenho pressa para nada. Não corro atrás de ninguém. Eu mesmo produzo, faço tudo e vendo. Também acho que se não fosse assim, teria parado no meio do caminho”, confessa Paulo Lima. Nesse estilo, fez do seu Fernando Pessoa o CD de maior sucesso, com 10 mil cópias vendidas. Foi o disco mais rápido de ser concluído e o mais barato. “Às 10 horas, peguei o Paulo Autran; às 10 e meia chegamos no estúdio; e ao meio-dia estávamos indo embora. Quando ouvi em casa, vi que o material era extraordinário”. Segundo o empresário, metade dos 23 CDs do catálogo sustenta os restantes. Em média, são vendidas mil cópias por disco. Machado de Assis, Clarice Lispector, Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes também estão entre os mais procurados. 

  Paulo Lima festeja agora a parceria com a Secretaria de Educação de São Paulo, que vai adotar os CDs da Luz da Cidade em 2500 escolas de 2º grau. Num gesto de grande efeito, o Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty, destinou a coleção para 96 diferentes lugares do mundo que possuem centros de estudos brasileiros. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, discos e cassetes de literatura são uma tradição. O Brasil começa a avançar o passo no negócio. Nas livrarias, já existem estandes reservados para o produto. Deficientes visuais, motoristas que enfrentam tráfego pesado, estudantes, escolas e amantes da literatura formam o público consumidor. Em Salvador, os CDs da Luz da Cidade são encontrados apenas na Fundação Casa de Jorge Amado. Os pedidos também podem ser feitos pela Internet: www.luzdacidade.com.br

 

 
John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott  

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Cleópatra ante César