Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Renata Pallottini


 

Vila Penteado
(A Antonio Cândido)


Toda a tristeza decepcionada
da velha casa art nouveau

Janelas altas e portas simples
que dão passagem ao que passou

E aquelas árvores que resistiram
à morte com todos os

amores idos , secretos gritos
escadas retas com seus desvãos

Tudo polido por um sentido
de tempo sólido.

Embora vão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

 

 

 

 

 

Renata Pallottini


 

ABC
(Poemas adolescentes)


A
Abraçou uma árvore
e, de repente,
frutificou.

(Outro A)
Ave, alminha de cachorro,
voando rápida
para o repouso.

B
Bananeira : essa mina
cheia de cachos.

C
Virilidade:
compor um tempo curto
de culto
ao centro do corpo.

CH
O chá:
água doce e maternal
que serve para curar
as doenças que não há.

D
Deus e a inocência: diálogo.
Deus tenta provar
que não é diabólico.

E
Eu deveria ser
só uma maneira
de dizer
Você.

F
Forçosa é a fome
de falar
um nome.

(Outro F)
Folhas.
Há uma falha no galho
da árvore velha.

O sabiá ensina a voar
seu filho.

G
Garganta ansiosa
pelo gozo
de uma pausa.
O gratuito, afinal,
da gargalhada.

H
Ah...
Um hálito de hortelã
onde hortelã
não há ...

I
O inútil infinito
pelo qual sou cercada
e, inutilmente assustada ,
me determina e vigia .

Infinito é aquilo
Que dói quando termina.

(Outro I)
Internatos. Infratores
instintivos e indistintos
injustiça e impotência
investidas noturnas
súcubos e íncubos.
Mais crimes e mais polícia
inútil.
Mais infelizes
mais viúvas e mais filhos
mais diretrizes e bases

mais Brasil. Mais eu. Mais triste .

J
Jovem é quando a gente
sofre escondido
e nem sente.

(Outro J)
Um jegue
no jardim
da minha casa.

Quando o vi
irreal, surreal
tão surpreendente

pensei que – gente ! –
Por que não pode ser o unicórnio
um jegue
de repente ?

L
Os lençóis me acordaram
fraternalmente sós
comigo
em seus braços.

(Outro L)
Ser louco: luta
desleal
com Deus.

M
Mãos:
o avesso de
nãos.

N
Um Não : o que é preciso ter
para lutar
até morrer.

O
Ouve: não é o vento.
Sou eu
no teu alento .

P
Petiço, pangaré
preto ou pampa:
cavalo.
Quatro patas
e um halo.

Q
Queimados
de uma falta de razão. Quem foi não sei. Só sei
que perdura
essa paixão.

R
Raramente te vejo
e raramente posso
refletir o teu rosto.

No entanto, o raro é fonte
de tanto encanto !

S
O Sol:
índio
louro.

T
O tempo
como o tampo
de um piano.

(Outro T)
O trem
venha de onde vier
sempre vai prô passado.

U
Uma a uma
enfileiram-se as nuvens
no céu turvo.

É a chuva
e parece um fim de mundo.

Mas não;
é só um susto
e depois, no suspiro de um minuto
o sono enxuto,
justo...

V
Vivendo ao relento
varado
de vinho.

X
Há uma grande flor roxa
uma pedra de enxofre
e um peixe
que se mexem
na água oxidada .

Z
Um zero
e um país
zonas de um muro

Um zunido
e um fez
zonas de tiro

uma tez diferente
em luz escura
uma reza perdida
uma criança que
jaz

uma guerra infeliz
desfaz
a paz.

 

 

 

Crepúsculo, William Bouguereau (French, 1825-1905)

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nirtonvenancio.html

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

 

 

 

 

 

Renata Pallottini


 

Bagdad, 20 de março, 2003


Onde nasceu o mundo
morre o mundo.

O oriente amanhece
no meu quarto.

Soldados nunca falam.
Matam e escrevem cartas.

Correspondentes de guerra
se arriscam por uma imagem.

As mulheres e as crianças
essas
morrem caladas.

 

 

 

Leonardo da Vinci,  Study of hands

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Braulio Tavares

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), A Classical Beauty

 

 

 

 

 

Renata Pallottini


 

Hei de morrer em ti


Hei de morrer em ti, nesse teu corpo estranho
Num espanto feroz, feito de febre e fúria ,
Feliz pelo que tive, amante enquanto dure
A alta fonte do amor e seu limpo rebanho.

A tua alma assassina assistirá, contente,
A um sonho agonizante e por si só perdido
E, sonho do meu sonho, esse fim terá sido
Nada de verdadeiro, o falso de quem sente.

Morrerei nos teus olhos, morrerei nas memórias
Do teu mundo cabal, cadafalso de histórias ,
Rupturas, padrões , fábulas, ossos, chifres .

Sentirás o meu peso, isso que não sentiste
Senão como um olhar, talvez mau, talvez triste.
Serei por fim em ti, para que me decifres .

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Grief of the Pasha

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Alceu Brito Correa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

 

 

 

 

Renata Pallottini


 

Monta em pêlo essa besta


Monta em pêlo essa besta
Talvez que te derrube

Não dói mais que ver crianças
Derrubadas no entulho

Não dói mais que as sandálias
Lambuzadas de estrume

Não dói mais do que a dor
que não se torna música

Não dói mais que o amor
que dói mais do que tudo.

Monta em pêlo essa besta
ou te derruba o mundo.

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

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William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

 

 

 

 

Renata Pallottini


 

O diamante


Para que o diamante
no oco do ouro
no longo do dedo ?

Ultrapassa o diamante
a beleza do copo
de estanho ?

Traz alegria ao homem
(ou à mulher amante)
mais que somente o amor
sem ornamentos ?

Come-se
o diamante ?
(- Sim, do que ele compra,
perdizes, ameixas,
queijos gordos, rãs...)

Porem ele próprio
escava no homem
minas de sangue...

O diamante amarga
o que era a criança

enquanto ilumina
a miséria humana.

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Cleópatra ante César

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Mario Cezar

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

Renata Pallottini


 

Quem nunca andou de bonde


Quem nunca andou de bonde
não sabe essa alegria elétrica do passeio
não virou a rua Direita em frente à Amarante
nem nunca tentou descer com o bonde andando
mesmo sendo menina

Também não andou nunca
equilibrando-se nos trilhos
sonhando que eles levavam a algum lugar
misterioso
e que tudo seria diferente
quando se chegasse ao fim (que não havia)
dos trilhos do bonde

Quem nunca andou de bonde
não sabe que descer do lado errado
é perigo de vida
e que descer do lado certo não garante nada

Quem nunca andou de bonde é jovem
e bonito
Mas não ouviu cantar o bonde
quando o seu motorneiro
batia o pé com força atrás do bloco de Aristéia
oh Carnavais , oh suco
dos canaviais...

No bonde o vento atravessava
as penas
todas

Mamãe pedia para eu ir no colo
Eram tempos difíceis
Vivê-los era fácil
(era infância)

O meu bonde cantava quando descia a Glória
Parecia uma avó quando pensa na gente
Era como ter pai
como não ser (ou ser) pingente

Era a glória
Mesmo quando ia pela Liberdade

Ou
talvez
por isso.

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Pipelighter

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Ruy Camara

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Renata Pallottini


 

Senhor Imperador
(de Renata Pallottini, inspirado em Boris Vian)


Senhor Imperador :
escrevo-lhe estas linhas
em nome das mulheres
- as pobres e as rainhas.

Em nome das manhãs
que nascerão sem paz;
em nome das crianças
que nascerão sem pais.

Senhor Imperador :
se é bom fazer a guerra
por que não vai você
o homem que não erra ?

Se a pátria pede sangue
por que não dá o seu ?
Por que matar o moço
que ainda não viveu?

Um Deus que não o seu
louvando a vida humana
virá pra nos salvar
da garra dos tiranos

dos amantes da morte,
dos senhores da Dor .
Terá fim o seu crime,
Senhor Imperador !

 

 

 

Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

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Majela Colares