Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

Manoel Ricardo de Lima
manoelrl@uol.com.br

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido
 

 

 

 

 

 

 

 

 

Albrecht Dürer, Mãos


 Poesia:


 Crítica, ensaio e comentário:


 Fortuna crítica:


 Uma notícia do poeta: 


  •  

Manoel Ricardo de Lima, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Culpa

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

 

 

 

 

 

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Manoel Ricardo de Lima


 

                                    Quarto

  

1.

A flor

Flor em
beirada de
janela

Bela
alguém
gritou

Falsa
responderam
de lá
 

 

3. 

A geometria

Ano bom
passando
pela porta

da frente,
ano ruim
indo embo-

ra. Janela
ao lado
esquerdo

da casa 

 

2. 

A insígnia

Aprender
o rio Elba

esquecer
a arte da
guerra

andar
nada a
dizer
 

 

4. 

A pedra

Desta casa
vai ficar a
memória

embora seja
assim a
pedra

silêncio e
manhã 

 

Manoel Ricardo de Lima, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Manoel Ricardo de Lima


 

1.

Manhã

Ontem
o canto 
da cotovia

esta manhã
: canto 
de pardal

respingo
verão
porta aberta

boas vindas
a quem custa
chegar

 


 
2.

A ponte de São Carlos

Aprender
o nome
do rio 

Elba

esquecer 
a arte da
guerra

, andar

 

3.

Pedra de cantaria

Desta casa
vai ficar
memória

embora 
seja
assim

a pedra
silêncio 
manhã

 

 

4.

Empiria

Sobre a mesa 
a advertência

água

um copo
guardanapos
o cheiro dela

por fim
adiante
mais nada
.

favor, a
travessa de
arroz

 

 

5.

Umbral

cores que
sonharia 
a porta
da sala –

azul vermelho
algo amarelecido

conversa
após o jantar

:

pratos sujos
mesa
cadeira

nome gravado 
na caneca de
alumínio

pouco se lia

- agora
 fosse manhã

árvores verdes

 

 

6.

O salto

O gato toma
a vibrissa alheia

dirige o pânico
de sua 
generosidade

espia

desorienta a
primavera 

a cidade permite
descansar 
os pés
a negligência 
os saltos

- abatido,
ouve o outono


 

Manoel Ricardo de Lima, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Albrecht Dürer, Mãos

 

 

 

 

 

Manoel Ricardo de Lima

O Povo, Fortaleza, Ceará, Brasil

12.1.1999


 

A literatura e o contemporâneo
 

 

O que dizer da produção literária estabelecida em 1997 para que a partir dela se possa pensar o ano de 1998? Pensar o que, minimamente, tenha ou carregue caraterística própria para receber o nome de literatura; ou seja, originalidade. Mas pensar apenas assim pode ser pouco. Literatura, para a originalidade, vai sempre precisar de história, precisar de referência, precisar, principalmente, de uma dimensão formal do que ficou aparentemente pronto como ‘obra de arte literária’. 

Em literatura - está em Tonio Kroeger, livro curto e um dos mais geniais de Thomas Mann, quando a personagem homônima afirma em uma conversa com sua amiga Lisavieta, e ensina: “A literatura não é profissão alguma, e sim uma maldição.” -, esta maldição maravilhosa, só se pode/deve discutir qualidade, formação de estética, preservação e registro. Literatura de verdade não vende, nunca deixou ninguém nadando em dinheiro e “é muito bom que não venda”, diz Leminski. Este nosso tempo é que quer pensar a literatura como comércio, como necessidade orçamentária, já que tudo ficou fácil, fácil demais até. Mas não pode ser comércio o que é apenas um sutil prazer para o diletante. Mais adiante Kroeger afirma: “Ah! sim, a literatura cansa, Lisavieta.” 

O fato é que, cansada, a literatura tornou-se apenas mais uma entre tantas manifestações culturais. Perdeu a sua hegemonia, virou princípio participativo e foi aboca hando outra fatia deste pequeno bolo qualitativo através de um diálogo maior.Ponto normal se pensarmos isso diante da abertura pós-moderna, ou como queiram nomear essa reviravolta normativa. O outro ponto, anormal, seria pensar a literatura como resistência para a descompostura estética que vive a contemporaneidade. 

A suposta abertura para o heterogêneo, chamada de pós-modernidade, não significa abastardamento. Logo, a verdadeira literatura não pode ser resistência. Esta abertura apenas permite que o diálogo intercontextual seja intensificado e estabeleça novas regras de andamento para qualquer predisposição de arte. A literatura, senhora de si, essencialmente, tenta manter os seus velhos leitores e trazer o anti-leitor - este, natural deste tempo, que é empiricamente fascinado pelo som e pela imagem -, para perto. Tudo muito tranqüilamente. 

A narrativa que se pretende contemporânea, com total garantia do caráter literário, é feita sob a égide desse vulto heterogêneo que é a grande cidade. “O mundo é, hoje, todo, este oxímoro: uma ampliação reduzida: uma grande cidade.” Daí ficar impossibilitada qualquer pretensão criativa que traduza esta época e seja ao mesmo tempo voltada apenas para o regional, para uma literatura nacional, presa dentro de pequenas fronteiras, daqui ou de qualquer lugar. Pensar a literatura hoje, seria pensá-la de uma forma pós-nacional para que não seja tomada como entidade inexistente. 

Outro fato é: por mais incalculável que seja a quantidade de livros que pipocam por aí sem contribuição nenhuma, sem valor de classificação, o que de melhor se produz em arte neste país ainda é no plano literário. Temos uma produção de poesia - que é qualitativamente muito boa - e uma outra de narrativas - menor, mas também interessante - que buscam exatamente o conceito estabelecido por Bhabha: “De muitos, um.” Do heterogêneo, a essencialidade. E hoje, é neste conceito de essencialidade múltipla que sustenta-se a literatura, na desleitura. E não dialogando com o que ainda quer ser nacional, cheio de penduricalhos tradicionais.  

 

 

REEDIÇÕES NECESSÁRIAS E OUTROS

1997 foi principalmente um ano de reedições, sempre devidamente necessárias: os gênios. Depois, títulos inéditos de autores consagrados. Por fim, uma ou outra novidade. Os bons livros de Calvino, alguma coisa de Shakespeare, uma bonita reedição da obra de Franz Kafka por Modesto Carone, uma mais bonita ainda da de João Cabral, a lira de Álvares de Azevedo, algumas crônicas do genial Rubem Braga, o inédito livro de poemas de Guimarães Rosa - Magma - que tem uma boa qualidade e surpreendeu quem pensava que Rosa era só prosa etc. 

Ainda reedições, as editoras Paz e Terra, Ediouro e L&PM deram um banho com suas pequenas, de bolso. Títulos que trazem assinaturas de Baudelaire, Rimbaud, Shakespeare, Manuel Bandeira, Moliére, Dostoievski, Jane Austen, Kafka etc. Depois outros como Bukovski e Luís Fernando Veríssimo. Tudo isso com um preço possível, bom. 

A narrativa, pretensa novidade, veio à tona e trouxe qualidade extremada em João Gilberto Noll, Sérgio Santanna, Gisela Campos, Ademir Assunção, Guilherme Scalzilli e mais alguns. Essa narrativa comporta-se de forma exemplar para a manutenção de um parâmetro rigidamente literário e está divinamente preocupada em ler e traduzir o seu tempo. 

Mas o que de melhor apareceu como novidade estética foi em poesia. Alguns exemplos: o livro de Cláudia Roquette Pinto, Zona de Sombra (ed. Sette Letras) é o melhor do ano. Nele, trabalha toda uma estrutura de linguagem a partir do vocabulário, uma outraRégis Bonvicino formal e mais uma de desconstrução sintática, além de substantivar ao máximo a metáfora e os deslocamentos de metonímia, reduzindo-os. Depois o livro de Angela de Campos, Feixe de Lontras (ed. Sette Letras) e, por fim, as traduções que Régis Bonvicino nos apresentou de Robert Creeley (Ateliê Editorial) em A UM; ambos1 (sic), poetas verdadeiramente importantes. Dessa literatura se pode esperar muito ainda, principalmente dessa poesia.     

 

 

LITERATURA CEARENSE, O TERMO

Uma premissa muito conhecida, atribuída a Nikolai Gogol, autor de Almas Mortas, diz que um escritor deve falar sobre sua aldeia para ser universal. Mas esta premissa perde de vista todo o emaranhado de cultura atual que nega a hegemonia da literatura. E uma literatura, por mais digna que seja, que carregue o conceito fixo de lugar está fadada a desaparecer. 

O Ceará tem dessas coisas. Primeiro, a impressão de que aqui se faz tudo que há de melhor no mundo, não precisa ser mais testado. Depois, um localismo arraigado, triste, cansativo, com uma linguagem que cada vez mais nos enterra. Ainda uma preocupação em se escrever literatura de cearenses para cearenses; para que o amigo da esquina leia, veja, opine etc. Publicações sempre caseiras demais. Dentro da fronteira. E o mundo? José Albano, poeta que esta terra realmente teve, partiu, sem saudades. E foi Manuel Bandeira quem tratou de resgatá-lo para que pudesse ser lido país a fora.

Nada mais cearense do que o universal encontrado na tranqüila obra de Moreira Campos. Nada mais cearense do que se pensar as coisas daqui e levá-las, com um novo tratamento de linguagem, para mais longe. O poema “Dia do namorados na praça Clóvis Beviláqua”, de Ruy Vasconcelos, é um pequeno exemplo disso. Foi publicado em uma edição bilíngüe, numa antologia de poetas brasileiros para a América. Falar de sua aldeia para ser universal quer dizer falar de uma forma universal, estruturalmente. 

Depois, até quando este dilema defensivo para cearensidade? Até quando estes termos cansados: cearensidade, literatura cearense, da terra? A cor local foi defesa básica de Machado de Assis em seu ensaio sobre a nacionalidade, século passado, depois os modernistas, que evidenciaram-se muito mais quando, na década de 30, deixaram de lado esta obsessão, especialmente Drummond e Bandeira. Por que fechá-la ainda mais, plano estadual, em um tempo que não a permite? 

Adriano Espínola com o seu Beira-Sol, pode ser exemplo também. Poemas que falam de Fortaleza, o tema da ‘cidade’, eAdriano Espinola universais enquanto versificam o Pirambu, o Mucuripe, a Praça José de Alencar etc: ``Um peixe abocanha a manhã’’. Além, preferiu publicar por uma editora que o livrasse do estigma da fronteira. Seu livro saiu pela Top Books, uma editora carioca. 

Bom, temos coleções sendo lançadas aqui com alguma qualidade. Mas fica-se nisso, são sempre os mesmos que lêem, os mesmos que ficam sabendo. E ainda existem os que aparecem poetas e escritores da noite para o dia. E o Ceará, maioria, aplaude. Nada como pelo menos discutir, repensar. Questões são levantadas para isto, não para respostas absolutas.

Manoel Ricardo de Lima, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

 

 

 

 

 

Fabrício Carpinejar


 

UMA POESIA 

COM ENDEREÇO FIXO NA PROSA

 


Sabe aquele mormaço que não permite nem sair de casa nem ficar à vontade entre quatro paredes? Essa é a atmosfera da novela As Mãos, lançamento da coleção Rocinante (7 letras, 46 páginas), de Manoel Ricardo de Lima. O livro relata o gradual desaparecimento externo, da rua e da cidade, para um casal internado em sua residência. Oferece a construção laboriosa e arquitetônica de uma prosa que se interroga doFabrício Carpinejar, 2002 início ao fim, sem se permitir a trégua de uma resposta. Intimista? Pode ser, mas não é hermético, não apresenta uma teia vocabular difícil e metáforas inacessíveis. Ocorre um desfalque da realidade, uma simplicidade característica da carência. A pequena narrativa evoca os diálogos interrompidos do pernambucano Osman Lins (Avalovara), onde pensamento fala mais alto do que a voz e ninguém quase se escuta.

A primeira frase do livro - "vivo no confinamento do tempo, tudo é dentro de casa" - remete em uma cadeia rítmica à última - "é que Lá fora, custa-me dizer, não existe mais". O dentro residencial é o passeio mais desgastante. O espaço descritivo se passa, antes mesmo de uma casa, na miudeza das mãos, entre o que se pode pegar e o que se é necessário. Tanto que as seções sinalizam a contagem dos dedos ("Um", Dois", "Três", "Quatro" e novamente "Um"). O casamento funciona como uma cidade sitiada, roupas e objetos postos em módulos e lados estanques. Cada um na sua, desconhecendo até que ponto se desconhecem. A convivência apagou as próprias distrações da intimidade. O livro é um ato de recuperação da liberdade, ainda que destrutiva, perante o choque dos costumes.

É curioso como Manoel Ricardo de Lima, em sua primeira incursão na prosa, amplia perplexidades de sua poesia. Em Embrulho (7 Letras, 2000), delicado catálogo de observações, já enfatizava a importância de uma contemplação espacial, pictórica, analisando os mesmos arquétipos que agora prossegue a deslindar como os aposentos, os corredores, as figuras do pátio e os quartos. Há, portanto, uma unidade de pensamento autoral, que não se encerra em uma obra, mas se propõe a se refazer progressivamente. No poema Olear, antecipava: "Não saber o/ quê/ dentro/ da janela/ dói". A poesia aqui não contamina e complica a prosa, porém cura a ausência de enredo. A linguagem funciona como um personagem onisciente, que não parte dos protagonistas, mas de fora para dentro, como que orquestrando os medos e as fobias recalcadas.

A primeira pedra no caminho é definir se a mulher está diante dele ou se ele reconstitui minuciosamente uma ausência e busca entender (absorver) a separação. À deriva de cinco concentrados capítulos, o amante se enclausura em seu apartamento e vai tornando real o que é irreal e alucinatório. Em elipses e inversões, o excesso de consciência do lugar abstrai o peso da cadeira, da mesa, dos móveis. Percebe-se um escoamento da consciência, uma hemorragia das palavras sem que uma ação a estanque. Manoel isola devaneios, que deslocados do mundo, viram ilusões. O movimento segue uma flutuação involuntária, como os casos espíritas de quem levita e flagra seu corpo de cima. A única conversa possível é com as paredes e com o esquadro da janela. "Lá fora" é mais do que uma expressão coloquial, acentuada em maiúscula torna-se o mito da socialização definitivamente abandonado pelo sujeito.

Nada mais interessa a aquele que vê, a não ser colecionar e zelar pelo seu fantasma e abrir as moradas de uma carne memorizada, se isso é possível. O monólogo, a princípio explicativo, assume unicamente a forma musical, levado mais pela correnteza sonora do que pelo seu sentido. A fala é de uma umidade seca, como um mormaço. Talvez o divórcio não tenha acontecido com a mulher, mas com a realidade dela. E não há chuva para desafogar o tempo cheio.

*Fabrício Carpinejar é jornalista e poeta, autor de Caixa de sapatos (Companhia das letras, 2003), entre outros.

As Mãos, de Manoel Ricardo de Lima. 7 Letras, Rio de Janeiro, 2003, tel. (21) 2540-0037, 46 p., formato 13 x 20cm. (Texto publicado no site Weblivros, novembro 2003)



 

Manoel Ricardo de Lima, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

 

Manoel Ricado de Lima

Jornal do Brasil

11.7.2009

Poesia e prosa de Joaquim Cardozo

Edição do volume que reúne a poesia completa e a prosa do autor pernambucano peca por não trazer a identificação dos organizadores.

Foi publicado recentemente pela Nova Aguilar, numa parceria com a editora Massangana, na conhecida Série Brasileira da Biblioteca Luso-Brasileira, o volume intitulado Poesia completa e prosa de Joaquim Cardozo.

Um volume que aparece cercado por algumas discussões acerca dos créditos de organização, e que devem ser estendidas até o que aparece e não aparece no livro como indicação e lacuna, como serviço e falta etc. É fato que este volume cumpre um bom lugar de acesso, principalmente para a poesia e alguns textos esparsos sobre arte e arquitetura de Joaquim Cardozo, mas é fato também que, ao mesmo tempo, abre motivos de alerta para outras questões ausentes do seu trabalho aberto e amplo.

O começo da conversa toda está numa carta de João Cabral de Melo Neto para Clarice Lispector, datada de 08/12/1948, quando pede a ela que lhe ceda seu Coro de anjos para edição na Livro Inconsútil (aqueles pequenos livros que Cabral fazia em prensa manual). E avisa que vai enviar a ela a Antologia pernambucana que fez com poemas de Joaquim Cardozo. Diz: "Conhece V. a poesia de Cardozo? Soube que publicaram há pouco, no Rio, suas poesias completas, arrancadas do autor, que nunca publicara livro, e baseadas em textos ‘fixados e estabelecidos’ pelo poeta e por mim, quando estava no Rio (o poeta não tinha cópia de nenhum poema; e assim, meu trabalho foi: pedir aos amigos as versões que possuíam e submetê-las à memória do poeta que as corrigisse). Pois desses textos, num momento de añoranza da luz recifense, escolhi os mais diretamente pernambucanos e organizei-os numa antologia que tenho estado imprimindo. O próprio Cardozo não sabe de nada, nem da estrutura que dei ao livro (um tanto especial) nem do próprio livro. A ver se lhe agradará".

O desejo de João Cabral em editar a poesia e todo o trabalho do também pernambucano Joaquim Cardozo tem a ver, diretamente, primeiro com a importância que atribuía a ele e depois como pauta do pensamento sofisticado e silencioso deste engenheiro calculista, poeta, dramaturgo, crítico de arte, de poesia e de arquitetura. Pensamento marcado por uma linha de variantes intensa que pode fazer o caráter institucionalizado e hierárquico das leituras já cumpridas do modernismo brasileiro se mover para outro lugar, mais longe e mais pantanoso, como o do esquecimento e o do deserto.

Num desvio de propósito, uma espécie de baixa sedução (seguindo Bataille), Joaquim Cardozo ajustava sua postura política a um gesto radical entre modesto e lúcido, como disse dele Oscar Niemeyer na Módulo, de 1961: "... o trato ameno e simples do homem inteligente – Cardozo é o brasileiro mais culto que conheço – incapaz de impor uma opinião com a intransigência das coisas irrefutáveis, apresentando-as sempre como sugestões pessoais, que julga justas e convenientes". E acrescenta: "O homem simples que se situa, modesto e lúcido, diante do mundo transitório em que vivemos (...)". Cabral sabia disso, por isso também manteve o desejo de publicação de uma espécie de obra completa de Cardozo até bem perto de morrer.

Este livro agora é, um pouco, o resultado disso. Os desdobramentos da preparação, do resultado e do projeto que ele parece traçar é que vêm carregados de alguns problemas. Tanto é que no dia 17 de junho deste ano, no Diário de Pernambuco, em matéria assinada por Thiago Correa, dá-se a ver uma teia conflituosa acerca da edição do livro, da organização e, principalmente, de algumas coisas que parecem muito localizadas.

Mas o dado é que em 2005, quando estive em Recife para recolher material de pesquisa sobre Joaquim Cardozo, encontrei Maria da Paz Ribeiro Dantas (pesquisadora e autora de três livros sobre o trabalho dele como poeta) e Everardo Norões (poeta que, naquele momento, concentrava esforços na organização deste volume). Morto João Cabral, a tarefa de organizar uma espécie de obra completa de Joaquim Cardozo caberia, num primeiro plano de ação, a Maria da Paz, tendo em vista a sua tarefa crítica cumprida até agora. Mas, ao mesmo tempo, a partir do esmero com que Everardo Norões cuidava do material recolhido entre várias pessoas, de Geraldo Santana a Paulo Brusky, da própria Maria da Paz a César Leal entre outros, a edição estava em boas mãos.

A questão é que o livro saiu como se não houvesse um organizador. O mínimo que se pode fazer como compromisso é, quando há um, dar-lhe o devido crédito. Ainda mais quando dentro do livro há um texto que lembra que há organizador: "Como podemos constatar neste livro, organizado pelo poeta e crítico Everardo Norões.", diz Marco Lucchesi na apresentação da poesia de Joaquim Cardozo.

Depois, toda a parte do teatro de Joaquim Cardozo (seis peças) foi retirada do volume – porque constava dele antes – descolando uma importância fundamental à construção de seu pensamento e de sua poética (que é por onde arma o seu procedimento, dos poemas às peças, da crítica ao relato etc). Isto também terminou por reorientar o título do livro e o livro, não mais obra completa, mas poesia. Com isso perdeu-se também o rigor minucioso do texto de João Denys Araújo feito para este volume.

João Denys que já apresentara o teatro de Joaquim na pequena e charmosa edição de 2001 feita pela Fundação de Cultura Cidade do Recife em cinco volumes. Ainda, a parte relativa aos contos, ou relatos (textos muito mais próximos do testemunho, do comentário ou da anotação íntima e que não foram publicados em livro, mesmo que Joaquim idealizasse um conjunto), fixos assim apenas como contos podem incorrer no desajuste com a imprecisão ou com a necessidade conservadora de institucionalizar o impreciso ou de facilitar a linha mais tensa de um procedimento. Isto comparece numa solicitação, a de dar um lugar ao trabalho de Joaquim Cardozo. Lugar que ele mesmo preferiu marcar como "participação ausente", para lembrar a expressão precisa que Carlos Drummond de Andrade usa no prefácio ao primeiro livro de poemas de Joaquim, em 1947. Tanto é que o primeiro texto de Joaquim Cardozo, "Astronomia Alegre", publicado em 1913, um relato inacabado e fundamental para a compreensão de sua "luta cósmica" também não consta do volume.

Assim, do índice econômico até o desenho solicitante que atravessa alguns textos do livro, como o de "integrar" Joaquim Cardozo ao cânone do modernismo brasileiro, como o de reclamar uma atenção crítica que até então lhe foi ingrata ou um parentesco antecipador do concretismo etc, parecem remeter a um sintoma da necessidade de construção de um monumento. E Robert Musil nos lembra o descabido dessa condição, ao dizer que "não há nada no mundo tão invisível quanto os monumentos". O trabalho de Joaquim Cardozo é um móbil incessante, tanto que ao lê-lo nessa clave comum de solicitação para o monumento se pode perder de vista alguma saída possível, alguma disposição para sair dessa mediocridade imperativa que tem assolado este tempo agora, este "tempo de alarme". Ele mesmo disse: "Ninguém se lembrou que o silêncio pode ser uma energia ainda desconhecida e que sua concentração pode, ou se abafar inteiramente, ou explodir; (...). Ou mesmo, quem sabe, fora a própria materialização do silêncio. Se não a explosão, a implosão do silêncio."

 

   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

16/8/2009