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Mauro Mota


 


Cajus


As mãos da moça
nos cajus
ordenha-os
sem feri-los,
ordenha-os
tão de leve
como se para o Deus Menino retirasse
leite das ovelhinhas do Presepe.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

 

Mauro Mota


 

Romaria na Capela de São Severino do Ramo



O Engenho nasceu no vale,
nasceu no Engenho a Capela.
São Severino do Ramo
(pelos infelizes vela)
do pátio, esta noite, indaga:
-- Que romaria é aquela?
Quando bole a ventania,
os romeiros saem do chão.
Cada um deles se aproxima
com sua vela na mão,
as velas verdes de cana
com a chama no pendão.


 

 

 

Da Vinci, Cabeça de mulher, estudo

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Eleuda Carvalho

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Empire of Flora

 

 

 

 

 

Mauro Mota


 

As Andorinhas


Torre feita de canto e de plumas
ou feitas de argamassa as andorinhas?
A simbiose do pouso nos litúrgicos
beirais e a migração de alvenaria.
Era a torre da igreja ornitológica,
onde a cor da manhã se suspendia.
Era uma ave de bronze na gaiola,
era a língua do sino presa à corda.

Mas quando, no intervalo dessa pena,
no seu repique matinal batia,
era a coletivíssima revoada:

asas de cal e músicas de penas
caindo todas pelo chão da praça
como se a torre se despedaçasse.


 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

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Cida Sepúlveda

 

 

 

 

 

 

 

Theodore Chasseriau, França, 1853, The Tepidarium

 

 

 

 

 

Mauro Mota


 

A Chuva Cai Sobre o Recife


A chuva cai sobre o Recife devagar,
banha o Recife, apaga a lua, lava a noite, molha o rio,
e a madrugada neste bar.
A chuva cai sobre o Recife devagar.
A chuva cai sobre o telhado das casinhas de subúrbio,
canta berceuses a doce chuva. É a voz das mães
que estão no canto de onde a chuva agora veio.
A chuva cai, desce das torres das igrejas do Recife,
corre nas ruas, e nestas ruas, ainda há pouco tão vazias,
agora passam, de capote, transeuntes
do tempo longe, esses fantasmas de mãos frias.


 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

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Ana Peluso

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mauro Mota


 

O Cão
(A Edson Nery da Fonseca)


É um cão negro. É talvez o próprio Cão
assombrado e fazendo assombração.
Estraçalha o silêncio com seus uivos.
A espada ígnea do olhar na escuridão
separa a noite, abre um canal no escuro.
Cão da Constelação do Grande Cão,
tombado no quintal, espreita o pulo:
duendes, fantasmas de ladrão no muro.

O latido ancestral liberta a fome
de tempo, e o cão, presa do faro, come
o medo e a treva. Agita-se, devora

sua ração de cor. Pois, louco e uivante,
lambe os pontos cardeais, morde o levante
e bebe o sangue matinal da aurora.


 

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

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Eloí Elisabeet Bocheco

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mauro Mota


 

Elegia Nº1


Vejo-te morta. As brancas mãos pendentes.
Delas agora, sem querer, libertas
a alma dos gestos e, dos lábios quentes
ainda, as frases pensadas só em certas
tardes perdidas. Sob as entreabertas
pálpebras, sinto, em teu olhar presentes,
mundos de imagens que, às regiões desertas
da morte, levarás, que a morte sentes

fria diante de todos os apelos.
Vejo-te morta. Viva, a cabeleira,
teus cabelos voando! ah! teus cabelos!

Gesto de desespero e despedida,
para ficares de qualquer maneira
pelos fios castanhos presa à vida.


 

 

 

A menina afegã, de Steve McCurry

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Astrid Cabral

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

Mauro Mota


 

Boletim Sentimental da Guerra no Recife


Meninas, tristes meninas,
de mão em mão hoje andais.
Sois autênticas heroínas
da guerra, sem ter rivais.
Lutastes na frente interna
com bravura e destemor.
À vitória aliada destes
o sangue do vosso amor.
Por recônditas feridas,
não ganhastes as medalhas,
terminadas as batalhas
de glórias incompreendidas.
Éreis tão boas pequenas.
Éreis pequenas tão boas!
De várias nuanças morenas,
ó filhas de Pernambuco,
da Paraíba e Alagoas.

Tínheis de quinze a vinte anos,
tipos de colegiais,
diante dos americanos,
dos garbosos oficiais,
do segundo time vasto
dos fuzileiros navais
prontos a entregar a vida
para conseguir a paz,
varrer da face do mundo
regimes ditatoriais
e democratizar todas
as terras continentais
a começar pelo sexo
das meninas nacionais.

Iniciou-se então a fase
de convocação e treino
todos os dias na Base.
Ah! com que pressa aprendíeis,
só pela conversa quase!
Dentro de menos de um mês
sabíeis falar inglês.

E os presentes? Os presentes
eram vossa tentação.
Coisas que causavam aqui
inveja e admiração:
bolsas plásticas, a blusa
de alvas rendas do Havaí,
bicicletas "made in USA",
verdes óculos "Ray Ban".
Era um presente de noite
e outro dado de manhã,
verdadeiras maravilhas
da indústria de Tio Sam.

E as promessas? As promessas
eram vossa sedução.
acreditáveis que elas
não eram mentira, não.
Um "Frazer" no aniversário,
passeios de "Constellation",
num pulo alcançar Miami,
almoçar na Casa Branca,
descer a Quinta Avenida,
fazer "piquet" pela Broadway
ver a "première" no Cine
junto dos artistas, com
eles todos na platéia.
Ouvir na "Opera House",
numa noite Toscanini,
na outra noite Lili Pons.

Com tanto "it" e juventude
podíeis testes ganhar,
ser estrelas de Hollywood,
ciúmes de Hedy Lamarr.

Ah! bom tempo em que corríeis,
"pés descalços, braços nus,
atrás das asas ligeiras
das borboletas azuis".
Ó prematuras mulheres,
fostes, na velocidade
dos "jeeps", às "garconières"
da Praia da Piedade.

Quase que se rebentavam
vossos úteros infantis
quando veio o telegrama
da tomada de Paris.

Ingênuas meninas grávidas,
o que é que fostes fazer?
Apertai bem os vestidos
pra família não saber.
Que os indiscretos vizinhos
vos percam também de vista.
Saístes do pediatra
para o ginecologista.

"Babies" saxonizados,
que só mamam vitaminas,
são vossos "babies", meninas,
em vários cantos gerados,
mas "mapples" dos automóveis,
no interior das cantinas,
da praia na branca areia,
em noites sem lua cheia.

Meninas, tristes meninas,
vossos dramas recordai,
quando eles no armistício,
vos disseram "Good bye".
Ouvireis a vida toda
a ressonância do choro
dos vossos filhos sem pai.


 

 

 

Um cronômetro para piscinas

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Circe Vidigal

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

Mauro Mota


 

Chuva de vento


De que distância
chega essa chuva
de asas, tangida
pela ventania?

Vem de que tempo?
Noturna agora
a chuva morta
bate na porta.

(As biqueiras da infância, as lavadeiras
correm, tiram as roupas do varal,
relinchos do cavalo na campina,
tangerinas e banhos no quintal,
potes gorgolejando, tanajuras,
os gansos, a lagoa, o milharal.)

De onde vem essa
chuva trazida
na ventania?

Que rosas fez abrir?
Que cabelos molhou?

Estendo-lhe a mão: a chuva fria.


 

 

 

Albrecht Dürer, Germany, Study of praying hands

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Renata Palottini

 

 

 

 

 

 

 

Jacques-Louis David (França, 1748-1825), A morte de Sócrates

 

 

 

 

 

Mauro Mota


 

Valsinha da banda de música municipal


Música da
Banda Euterpina
Juvenil de
Nazaré da Mata
tocando ao
luar de prata.
(O seresteiro
achando a rima
da serenata.)
Música pelo
Natal; na festa
da padroeira.
(A procissão,
Nossa Senhora
da Conceição.)
Música nos bailes
de carnaval
e em funeral.

Seu Miguel ensaiava de noite, na Rua
da Palha, para as tocatas coletivas.
Nunca mais deixei de ouvir
as suas noturnas melodias na janela.
Sinto que ele acorda e volta de longe nesta madrugada.
Limpa a farda de tempo e areia,
vem do cemitério de São Sebastião,
vem com a sua valsa de antigamente,
vem com o seu clarinete na mão.

 

 

 

Da Vinci, Homem vitruviano

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Vera Queiroz

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mauro Mota


 

Instantâneo


No pátio da igreja de São Sebastião,
depois da missa cantada e da comunhão,
Dona Santinha, em perfeito estado de graça,
com o véu, o livro e o terço na mão,
murmurava a um grupinho que Padre João
estava, na sacristia, se derretendo
para a filha mais nova do sacristão.


 

 

 

Bernini_The_Rape_of_Proserpina_detail

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Maria de Lourdes Hortas

 

 

02/08/2006