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Izacyl Guimarães Ferreira


 

Primavera do cacto


Nenhuma flor. Nenhuma aparência
de flor, por mais noturna e secreta.
Apenas e duramente um cacto,
primavera sem alarde, canto
surdo, de ternura insubornável.
 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Pipelighter

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R Roldan-Roldan

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

Izacyl Guimarães Ferreira


 

Intervalo


Que alguém me traga
sua ternura remota,
sua alegria preservada
em anos de ausência.


Que alguém me fale
de amor sem consolo,
mas sem revolta,
e ria triste em meus olhos:


quero a linguagem
de após o beijo,
quando a boca reassume
a sua forma de lábios;


a linguagem dos passos
na penumbra das coisas
- esse momento incerto
entre vida e lembrança.


Eu quero um hálito
de céu, para encher
o vazio do divino
em minha nudez de homem.


Desça alguém sua mão
sobre o meu rosto
e diga sem lamento: sou eu,
nasci contigo e sei tudo.
 

 

 

Aurora, William Bouguereau (French, 1825-1905)

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Lauro Marques

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

Izacyl Guimarães Ferreira


 

Aproximações


Numa curva de encontro
buscam-se duas, três
ruas, por entre massas
claras de altura, prumo
iluminando as águas
desses rios que vão
crescendo para o mar
com seus barcos e margens,
suas sombras e peixes,
como ruas procuram
praças, revelam parques.
Há um sonho de cidade
Em todos os caminhos,
um calor e uma sede
nos corpos abraçados,
promessas de vergel
entre a semente e o fruto,
entre os lábios e o beijo.
E há uma ânsia de olhar
e transpor esse mar,
essa praça, esse beijo,
a grande flor que nasce
entre os dedos de um deus.
 

 

 

Um cronômetro para piscinas

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Antonio Mariano de Lima

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tintoretto, Criação dos animais

Izacyl Guimarães Ferreira


 

Semelhanças


Se não pertence ao mar
o que em seu dorso esplende
brasas de água, se do ar
não vem o que entre as mãos
acorda pombas, trêmula
plumagem sob um céu
cativo de pomares,
acaso envolvo leves
semelhanças evadidas:
ombro, seio, lábios, alma.
 

 

 

Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

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Rubenio Marcelo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Filosofia

 

Izacyl Guimarães Ferreira


 

Microfilme


Mais uma vez desperto para o erro.
Não será meu esse dia.
Teu sorriso às nove horas,
essa brisa soprando pelo pátio,
essas montanhas que amo
e explodi numa antiga madrugada
abrindo outro caminho para o mar
e para a velha planície,
não me pertencem. Mais tarde,
sôfrego, sorverei esse passado


Fiel à corrente do tráfego,
corretamente vestido vou de novo
ao encontro de minha angústia.
Minuciosa, limpa, microfilmada
amostra fortuita de mil institutos.
Classe A, quarenta mil anos.
Classe dirigente, ar condicionado.
Classe dominante, à beira do abismo.
Classe à parte vou repartido e
chego pontualmente ao encontro.
 

 

 

Hélio Rola

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Cida Sepúlveda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

Izacyl Guimarães Ferreira


 

Terapia


Esse passado é meu. Posso mudá-lo.
Posso esconder um corpo e duas lágrimas,
posso fechar os olhos e esperar de novo.
Posso até mudar de nome.
Posso deixar no escuro uma cidade,
secar o mar em meu lenço,
apagar palavras do pensamento.


( Ia escrevendo a seguir:


Esse presente hoje ainda, amanhã ontem,
posso inventá-lo.
O que me aflige é que é só isso o que eu
posso fazer.


Mas não era isso o que eu queria dizer.)


Esse passado é meu. Posso salvar
um sonho ou dois
enquanto a amiga enxuga os olhos.
Posso gravar meu nome numa pedra,
posso dizer perdão, amor,
posso deixar
que um tempo morra sem morrer por ele.


Esse passado é meu. Posso adiá-lo.
 

 

 

Valdir Rocha, Fui eu

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Gerardo Mello Mourão