Fernando Mendes Vianna



O migrante


Emigrante e imigrante de mim mesmo,
sem passaporte sigo nos mares e ares.
Não me atrapalha o mundo e seus lindes,
e cruzo qualquer pátria clandestino.

Limites impressos em códigos e mapas
não são fronteiras, não, para um poeta.
Inferno é o mundo máximo. O resto,
pegadas vãs – pó e pó, barro no barro.

Vou e volto dentro do eu-planeta,
ao sopro do poema – vento no velame
do barco da carne. O corpo voa!

Não me detém o mundo: suas alfândegas,
feitas de mofo, o vento as leva
- enquanto chego e parto a qualquer hora.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

 

Fernando Mendes Vianna


 

O marinheiro


Corpo.
O corpo ignoto.
Sempre novo.
O corpo é mar.

Navegante
e cartógrafo
avanço, descubro
e tomo posse
de um corpo
em nome
do meu corpo.

Recorto as costas,
os braços, as baías,
apalpo as praias.
Tudo anseia ver
a vela.

Todo corpo é mar,
é ar, é terra.
Viajá-lo.

Marujo,
viajar o corpo
é ofício,
é recreio.

Vê-lo,
amá-lo,
mapeá-lo
- esse o roteiro.

Corpo:
terramareamr!

Visto, amado, mapeado
o corpo,
levantar âncora!

Prossigo,
perseguindo
nas ondas do corpo
outro corpo,
o corpo.


Traduções de Manuel Moreno Jimeno y Ricardo González Vigil.
Extraídos de Marly de Oliveira – Fernando Mendes Vianna Poemas. Introducción de Ricardo González Vigil. Lima: Centro de Estudos Brasileños, 1979.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

Fernando Mendes Vianna


 

O hipogrifo


Este é o animal da minha sina,
mais que Pégaso minha montaria:
cascos de vento, garras de agonia.

Seu bico recurvo me examina.
Em seu dorso nada me alivia.
Do Alto sua gula me desvia.
Seu galope na terra me alucina.

Este animal é toda a minha sina.
Ele me devora, ele me recria.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravaggio, Êxtase de São Francisco

 

Fernando Mendes Vianna


 

O poeta


Movendo-se em vida submarina,
soletrando palavras submarinas,
o poeta – esqualo e esquadro –
lúcido e feroz, busca o auto-quadro.


Sua meta é o fundo. O mundo
é a morte sob mil formas. Por isso
ele próprio se transforma, insubmisso.

Nas gestações do retrato,
nenhum trato com assombrações,
nem pacto com neblinas.
Turvo por si, o núcleo
-submarino – quer antenas, tato
concreto. Nada de penas. Peixe,
cria barbatana e um corpo em feixe.
Para o mar
não lhe servem asas de voar.

Busca o íntimo fato. O adro claro
ofusca o cego respirar. Seu templo, gruta
segregada como concha, cresce como fruta
em torno da semente do seu faro
sem ar. A superfície é um luxo
e pode ser nefasto, se o bruxo
tardar no mergulho. O repasto geral
- a beleza, o calor e a luz do natural –
assassina, indiferente, seu orgulho.

Lúcido e feroz, seu dente mina
o corpo do que existe. Dói. Insiste.
Sem loucura. Corrói e se corrói
para não ruir:
reconstruir sempre a sua procura.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rinaldo e Armida

 

Fernando Mendes Vianna


 

Cançoneta


Somos o leito de um rio,
somo o leito do Tempo.
Um oceano já fomos?
Um oceano seremos?

Depois da morte, morremos?

Ai! Prefiro não ser mar,
rolar em pedras, chorar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fernando Mendes Vianna


 

Pesadelo


Mugem os bois de salsugem,
fuçando um arenoso estrume.

O vento, velha cadela,
uiva na estepe amarela.

Meu grito se corta no gume
de um ávido e ácido lume.

Como terra-a-dentro: viela,
rosto de um muro sem janela.

Não há socorro neste beco.
Morro semente
                    em solo seco.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Nurture of Bacchus

Fernando Mendes Vianna


 

Paisagem junto ao mar


O salitre se infiltra e medra
na pedra azeda, suada, sitiada
pelo salgado pêndulo do Mar.
Este aríete nunca se esfuma.
Não o abranda nenhuma prece,
nem alvas carícias de seda.

O suor da pedra é sua messe.

Na pedra a onda nidifica,
e o dente puro da espuma
na pedra fica. O tempo
dói sem pressa: eterno rói,
dia após dia, o elemento
humano e sua inútil penedia.

Até que a roca seja só
uma praia indefesa – pó.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

Fernando Mendes Vianna


 

Ofício manual


Percorrer teu corpo com as mãos
como se mãos fossem pés de criança correndo na relva,
como se mãos fossem pés de lavrador percorrendo o campo.

Percorrer teu corpo
como as asas das garças percorrem o céu,
como as nadadeiras dos peixes percorrem a água.

Percorrer teu corpo
com o olhar de uma criança percorrendo um brinquedo
antes de segurá-lo,
com a risada de uma criança segurando o brinquedo.

Percorrer teu corpo
como o olhar percorre o vinho ainda na videira
e apoja de sumo nossa boca.

Percorrer teu corpo
como um pomar carregado e um jardim florido,
colhendo flores e colhendo frutos.

Percorrer teu corpo
como um rio espalhando o humo na terra.


Extraído da antologia Marinheiro no Tempo. Brasília: Thesaurus, 1986. 280 p.


(Biobibliografia e seleção de Maria da Conceição Paranhos)

 

 

 

 

 

 

16.10.2006