Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Flora Figueiredo


 

A pedidos


Querem um verso,
mas não sou capaz.
Vejo a palavra fraturar
as entrelinhas,
tento soldá-las,
mas não são minhas.
Rompeu-se o verbo
e me deixou pra trás.


Amor a Céu Aberto, Editora Nova Fronteira, 1992 - Rio de Janeiro, Brasil

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Antonia Zarate, detalhe

 

 

 

 

 

Flora Figueiredo


 

Enlevo


Eu olho você grande e distante
e da sua grandeza me comovo
e da sua distância me revolto.
Olho de novo.
Procuro reter em minhas mãos sua figura
mas ela gesticula, oscila e cresce
e numa inconstância distraída
no instante exato
por trás da vida desaparece.
Um desacato.
Do meu desaponto eu me levanto
pra levar embora outro desencanto
mas você me divisa e então me chama.
Me aguarda, reclama e me convida
e minha vida nessa ansiedade por fim entrego.
E nesse amor feito de espuma colorida
nós flutuamos: você borbulha, eu escorrego,
ensaboados, você explode, eu me desintegro.


Florescência, Editora Nova Fronteira, 1987 - Rio de Janeiro, Brasil

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Grief of the Pasha

Início desta página

Iosito Aguiar

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

 

 

 

 

Flora Figueiredo


 

Flutuações


O sonho aprendeu a pairar bem alto,
lá onde o sobressalto nem sequer nasceu.
Namorou a trôpega ilusão,
até que trêfego e desajeitado,
desprendeu-se de seu reino idealizado,
veio pousar tamborilante em minha mão.
Assim, aquecido e aconchegado,
parece que se esqueceu de ir embora.
Na hora em que ressona distraído,
eu lhe pingo malemolências ao ouvido,
à sua inquietação eu me sujeito.
Eis que o sonho dorme agora aqui comigo,
seu corpo repousa no meu peito.


Amor a Céu Aberto, Editora Nova Fronteira, 1992 - Rio de Janeiro, Brasil.

 

 

 

Ticiano, Salomé

Início desta página

Edmilson Caminha

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

Flora Figueiredo


 




Estou perdidamente emaranhada
em seus fios de delícias e doçuras.
Já não encontro o começo da meada,
não sei nem mesmo
se há uma ponta de saída,
ou se a loucura
vai num ritmo crescente
até subjugar a minha vida.
Não importa.
Quero seus nós de seda
cada vez mais cegos e apertados
a me costurar nas malhas e nos pêlos.
Enquanto você me amarra,
permanece atado
na própria trama redonda do novelo


Amor a Céu Aberto, Editora Nova Fronteira, 1992 - Rio de Janeiro, Brasil

 

 

 

Bernini, Apollo and Dafne, detail

Início desta página

Carlos Nejar

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

 

 

 

 

Flora Figueiredo


 

Retirada


Respeite o silêncio
a omissão,
a ausência.
É meu movimento de deserção.
Abandonei o posto,
rompi a corda,
desacreditei de tudo.
Cansei de esperar que finalmente um dia,
minha fotografia
fizesse jus ao seu criado-mudo.


Calçada de Verão, Editora Nova Fronteira – Rio de Janeiro, 1989

 

 

 

A menina afegã, de Steve McCurry

Início desta página

Antônio Massa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

Flora Figueiredo


 

Vento novo


Estava enrolada
em teias e traças,
debaixo da escada,
lá no subsolo
da casa fechada.
Começava a tomar ares de desgraça.
Manchada do tempo,
fenecia
a esperar que um dia
alguma coisa acontecesse.
Antes que se perdesse completamente,
sentiu passar um vento cor-de-rosa.
Toda prosa, espanou a bruma,
pintou os lábios
e sem vergonha nenhuma
caprichou no recorte do decote.
A felicidade volta à praça
cheia de dengo e de graça,
com perfume novo no cangote.


Amor a Céu Aberto, Editora Nova Fronteira, 1992 - Rio de Janeiro, Brasil

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

Início desta página

Virgílio Maia

 

 

 

22.04.2005