Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Cassiano Ricardo


 

Canção para poder viver


Dou-lhe tudo do que como,
e ela me exige o último gomo.


Dou-lhe a roupa com que me visto
e ela me interroga: só isto?


Se ela se fere num espinho,
O meu sangue é que é o seu vinho.


Se ela tem sede eu é que choro,
no deserto, para lhe dar água:


E ela mata a sua sede,
já no copo de minha mágoa


Dou-lhe o meu canto louco; faço
um pouco mais do que ser louco.


E ela me exige bis, "ao palco"!
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Empire of Flora

 

 

 

 

 

Cassiano Ricardo


 

Relâmpago


A onça pintada saltou tronco acima que nem um relâmpago
de rabo comprido e cabeça amarela:
Zás!
Mas uma flecha ainda mais rápida que o relâmpago fez
rolar ali mesmo
Aquele matinal gatão elétrico e bigodudo
Que ficou estendido no chão feito um fruto de cor
que tivesse caído de uma árvore!
 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Yeda

Início desta página

Andréa Santos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rinaldo e Armida

 

 

 

 

 

Cassiano Ricardo


 

A rua


Bem sei que, muitas vezes,
O único remédio
É adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,
A dívida, o divertimento,
O pedido de emprego, ou a própria alegria.
A esperança é também uma forma
De continuo adiamento.
Sei que é preciso prestigiar a esperança,
Numa sala de espera.
Mas sei também que espera significa luta e não, apenas,
Esperança sentada.
Não abdicação diante da vida.


A esperança
Nunca é a forma burguesa, sentada e tranqüila da espera.
Nunca é figura de mulher
Do quadro antigo.
Sentada, dando milho aos pombos.
 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

Início desta página

Juscelino Vieira Mendes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Filosofia

 

 

 

 

 

Cassiano Ricardo


 

A graça triste


Só me resta agora
Esta graça triste
De te haver esperado
Adormecer primeiro.
Ouço agora o rumor
Das raízes da noite,
Também o das formigas
Imensas, numerosas,
Que estão, todas, corroendo
As rosas e as espigas.


Sou um ramo seco
Onde duas palavras
Gorjeiam. Mais nada.
E sei que já não ouves
Estas vãs palavras.
Um universo espesso
Dói em mim com raízes
De tristeza e alegria.
Mas só lhe vejo a face
Da noite e a do dia.


Não te dei o desgosto
De ter partido antes.
Não te gelei o lábio
Com o frio do meu rosto.
O destino foi sábio:
Entre a dor de quem parte
E a maior — de quem fica —
Deu-me a que, por mais longa,
Eu não quisera dar-te.


Que me importa saber
Se por trás das estrelas
haverá outros mundos
Ou se cada uma delas
É uma luz ou um charco?
O universo, em arco,
Cintila, alto e complexo.
E em meio disso tudo
E de todos os sóis,
Diurnos, ou noturnos,
Só uma coisa existe.


É esta graça triste
De te haver esperado
Adormecer primeiro.


É uma lápide negra
Sobre a qual, dia e noite,
Brilha uma chama verde.
 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata

Início desta página

Raquel Naveira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Biblioteca Cururu

 

 

 

 

 

Cassiano Ricardo


 

O acusado


Quando eu nasci, já as lágrimas que eu havia
De chorar, me vinham de outros olhos.


Já o sangue que caminha em minhas veias pro futuro
Era um rio.


Quando eu nasci já as estrelas estavam em seus lugares
Definitivamente
Sem que eu lhes pudesse, ao menos, pedir que influíssem
Desta ou daquela forma, em meu destino.


Eu era o irmão de tudo: ainda agora sinto a nostalgia
Do azul severo, dramático e unânime.
Sal — parentesco da água do oceano com a dos meus olhos,
Na explicação da minha origem.


Quando eu nasci, já havia o signo do zodíaco.


Só, o meu rosto, este meu frágil rosto é que não
Quando eu nasci.


Este rosto que é meti, mas não por causa dos retratos
Ou dos espelhos.


Este rosto que é meu, porque é nele
Que o destino me dói como uma bofetada.
Porque nele estou nu, originalmente.
Porque tudo o que faço se parece comigo.
Porque é com ele que entro no espetáculo.
Porque os pássaros fogem de mim, se o descubro
Ou vêm pousar em mim quando eu o escondo.
 

 

 

Octavio Paz, Nobel

Início desta página

Sergio Godoy

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

Cassiano Ricardo


 

Desejo


As coisas que não conseguem morrer
Só por isso são chamadas eternas.
As estrelas, dolorosas lanternas
Que não sabem o que é deixar de ser.


Ó força incognoscível que governas
O meu querer, como o meu não-querer.
Quisera estar entre as simples luzernas
Que morrem no primeiro entardecer.


Ser deus — e não as coisas mais ditosas
Quanto mais breves, como são as rosas
É não sonhar, é nada mais obter.


Ó alegria dourada de o não ser
Entre as coisas que são, e as nebulosas,
Que não conseguiu dormir nem morrer.
 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona

Início desta página

Wilson Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

Cassiano Ricardo


 

A outra vida


Não espero outra vida, depois desta.
Se esta é má
Por que não bastará aos deuses, já,
A pena que sofri?
Se é boa a vida, deixará de o ser,
Repetida.
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

Início desta página

Manoel de Barros