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Anderson de Araújo Horta


 

A verdade está na terra


A VERDADE está na terra
ouço o germinar da fruta
e o estalar das raízes

Não preciso de tempo
de sem-tempo ou não-tempo
pois a verdade é já

Para trás ou para diante
não importa — hoje hoje
permanentemente hoje

A nossa imensa concha
ou apenas a concha
desafia os sentidos

Eis aqui o caramujo
fecha-se guardando sons
gritos e protestos — só

É o laboratório
a equação dos séculos
ainda está na pipeta

Mas não há nada só
fácil difícil vão
nem mistério mistério

Dia virá em que
a solução será
tão banal tão banal

a ponto de a humanidade
recusar-se a acreditar
em suas jamais fronteiras

E ninguém rirá
ou chorará mas
correrão parelhas

até finalmente
se anularem a
vergonha e o espanto

E o endereço talvez seja
afinal um condomínio
na coordenada dos deuses.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

 

 

 

 

Anderson de Araújo Horta


 

Sol com chuva


Quando você nasceu, eu tive um choque imenso,
pois não podia pensar
que você fosse fazer
um berreiro daqueles!

Eu estava no quarto esperando você,
como se espera, paradoxalmente,
um desconhecido querido.

Eu era moço. Não tinha experiência alguma.
E, por isso, pensei que você fosse nascer
como menino bem comportado...

Mas agora já sei que os homens nascem
gritando e reclamando,
com pressa de viver.
(Porque têm pressa de tudo...)

O fato é que quando vi e ouvi você
tomar posse do mundo,
não pude me furtar às lágrimas.

E desde então aprendi que as grandes,
as extraordinárias alegrias
são como sol com chuva...

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

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Aricy Curvello

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Exposition of Moses

 

 

 

 

 

Anderson de Araújo Horta


 

Descoberta


Neste lar, nosso amor, pobre de arneses,
foi prenúncio feliz de um grande dia.
E refletia-se em nós dois, às vezes,
calmo porto a que Deus nos conduzia.

Você nasceu nos meios montanheses,
tendo o brasão apenas da Poesia...
sem lanças, sem broquéis e sem paveses,
mas tendo o grande amor dos pais por guia!

Quando você nasceu, nasceu gritando,
como quem toma posse, de repente,
de uma terra inda há pouco conquistada...

De modo que eu me vi também chorando,
sem saber traduzir corretamente
a sua primeiríssima balada!

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

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Gustavo Dourado

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Venus Presenting  Arms to Aeneas

 

 

 

 

 

Anderson de Araújo Horta


 

Meu caderno de versos


O rio imenso, barrento,
ululante, ameaçador,
não vale o fio da fonte
que costura, paciente,
pelos sulcos da montanha,
o mapa do seu destino.

(Para mim o homem forte
faz de conta que é menino.)

O pintor está deitado.
(Talvez já seja barão.)
O mistério está no quadro
que vale mais de um milhão.
Mas quanto o pintor daria
talvez por um simples beijo!

(Para mim a sua vida
faz de conta que é o bosquejo.)

O meu caderno de versos
todo mundo pode ler.
É festival sem ingresso,
castelo sem fortaleza.
Está na ordem direta
como qualquer namorado.

O meu coração, porém,
está muito bem guardado.

Se você pudesse ver
os rabiscos e os rascunhos
de onde meus versos nasceram,
poderia compreender
por que não troco dez dias
por uma só madrugada.

O meu caderno de versos...
esse sim: não vale nada!

 

 

 

Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

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Cyro de Mattos

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Anderson de Araújo Horta


 

Variações sobre o amor


Se o teu amor é terra,
o meu amor é estrela.
Se o teu amor é sombra,
o meu amor é vida.
Se o teu amor é chuva,
o meu é arco-íris.
(O teu amor às vezes
são folhas coloridas
lambidas pelas chamas.)
Se o teu amor é noite,
o meu amor é dia.
Se o teu amor é dia,
o meu é madrugada.
O meu amor é tudo.
O teu é quase nada.

 

 

 

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

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Florisvaldo Mattos

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Anderson de Araújo Horta


 

Ladrão de verdade


V
Quinze anéis
Dezoito colares
Trinta e cinco pulseiras

X
Nuvens empanam o sol
Plantas definham dentro de casa

W
O poeta adivinha tudo
Pegou numa corda de luz
Torceu torceu esticou
Sua amada caiu nuazinha
na rede de versos

Y
Ladrões roubam seda
Mendigos disputam pelo chão
estrelas de falso brilho

Z
O poeta olhou com desprezo
Deitou-se na rede

§
(É ladrão de verdade)

 

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

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Beatriz Alcântara

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Anderson de Araújo Horta


 

Sonho


Há muito tempo que eu venho
tentando forçar o sonho.
Como carne, bebo vinho,
mas apenas sinto sono.

Hoje, entretanto, acordado,
lembrei-me dos tempos idos.
Pus a preguiça de lado
e sentei de qualquer modo.

Desde então pude notar
que tudo é fácil fazer.
Basta só querer mentir
um pouquinho, por favor.

De modo que vou contar
esse sonho de mentira.
Fico no mesmo lugar
e nem preciso de lira.

Era uma vez um poeta
— menestrel da idade média.
Tanto cantava na rua,
como na feira ou na mata.

Eu era moço, era velho,
segundo o tempo corresse.
Minha vida era um baralho,
conforme a cigana disse.

Só uma coisa podia
me curar — ela dizia:
Vestir ao menos um dia
as vestes da poesia.

Vesti, então, a roupagem
que o tal poeta me deu.
E logo a formosa imagem
de uma deusa apareceu.

Então parece que Píndaro
falou pela minha voz.
(Embora morresse Píndaro
há dois mil anos, talvez.)

— Escuta, formosa imagem
(não sei se deusa ou mulher,
pois sendo assim como és
qualquer mulher será deusa):

Eu quero que tu me ensines
o segredo da composição.

— Não há segredo nenhum
para quem sabe sonhar.
Mas até no sonho existem
os motivos de escolher.
E detrás de qualquer sonho
tem imagem de mulher.

— Não me avexo em confessar,
não me fiz compreender.
O que é que você prefere:
métrica tradicional
ou o tal ritmo livre?
Assonância, verso branco
ou rima parnasiana?

— Eu não prefiro nem nada.
Pois quem prefere é você.
Entretanto, meu poeta,
uma coisa eu vou dizer:
Você pode cozinhar
consoantes com vogais.
Pode até nasalizar
muito pouco ou muito mais.
Porque isso, naturalmente,
é lá com o seu paladar.

Na boa composição
do soneto ou redondilha,
seja uma simples canção
ou seja coisa que o valha,
seja fresco como o linho
ou quente como fornalha,
eu lhe digo: — Não faz mal.
Precisa muito cuidado
é com a música verbal.

— Só com a música verbal?

— Qual o quê, senhor Mistral!
A coisa está no talento.
Porque se não há talento...
também música não há!...

 

 

 

Hélio Rola

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Clauder Arcanjo

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

 

 

 

 

 

Anderson de Araújo Horta


 

Ser poeta


Ser poeta é ter sublime, é ter sentida
Uma ilusão que nos consome e encanta.
É palpitar em luta desabrida,
Para a conquista do ouro de Atalanta.

Ser poeta é ser embarcação perdida
Pelos mares. É ser um Deus que canta.
É ter milhões de vida numa vida,
E um mundo de ilusões, que se alevanta.

Ser poeta é procurar pelos espaços,
Na contorção nervosa dos abraços,
Todos os sóis e todos os planetas...

É viajar pela amplidão dos ares,
Até chegar aos fogos estelares
Que se perdem na cauda dos cometas!

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

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Miguel Carneiro

 

 

19.11.2004