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Zemaria Pinto


 

Vereda de pássaros

(para Carol, Paloma e Amanda, pássaros)


paisagem de luz e harmonia
de sonho e éter construída
assombro da dor, fantasia
paixão, muito mais que amor: vida


um viajante de alva plumagem
vai deslizando no azul
e na seda infinita do espaço
melodias, notas raras
explodem num canto de amor
revelando a rota da viagem:
    uma chegada sem ida
    um adeus sem despedida
    sorrisos pra quem se vai
    canções, gorjeios, sinais


araras e jaburus
juritis e japiins
patativas, bentivis
rouxinóis e jacamins
bacuraus, uirapurus
inhambus e colibris
palomas brancas, morenas
amandas e carolinas


cantos de dor, de alegria
quadros de encanto e magia
o poema revela o mito:
     a procura do destino
     é feito o vôo dos pássaros
     - o caminho é o infinito...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

Zemaria Pinto


 

Noturno, Opus 1


tua sombra salta do chão
e vai além da minha cabeça


teu olho majestoso e nu
clareia o espaço em minha volta


estás nua e todo teu corpo brilha
indiferente à incandescência dos faróis
e ao gemer dos edifícios em chamas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

Zemaria Pinto


 

Da natureza das coisas
(haicais)


o sapo, num salto
cresce ao lume do crepúsculo
buscando a manhã


o pouso silente
da borboleta de seda
celebra a manhã


dissolve-se a tarde
no alarido das araras
e em flocos de chumbo


densa e violenta
a barata inunda a sala
de entranhas e horror


caminhos cumpridos
repousam sobre meu peito
teus pés minerais


colho de meus olhos
girassóis incendiados
e tos ofereço


flor que se arquiteta
na tessitura da noite
orquídea lunar


cavalos noturnos
galopam noites de febre
- delírios de anis


sobre a mesa posta
o olhar do peixe descansa
fitando o infinito


decifrando códigos
o barco atravessa a tarde
na pele do tempo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

Zemaria Pinto


 

Cenas da vida banal


I

rito da simples manhã:
entre o mijo e o dentifrício
a noite evola-se amarga
na overdose de hortelã


II

depois de afogar as mágoas
em alcalóides diversos
dispostos em vário grau
exorcizo a depressão
tomando guaranamel
com hóstias de sonrisal


III

a secretária passeia
sua bundinha de louça
entre fones, faxs, ais.
num transe de transamor
fecho os olhos e contemplo
por baixo da pele jeans
a carne dura da moça
manga, manguita, mangaba
delírios frutropicais.


IV

(para o Engels Medeiros)


mais que a calva insinuante
mais que a barriga disforme
o que mais me mete medo
na voraz fome do tempo
vem sob a forma inocente
de um branco fio de cabelo
florescendo entre os pentelhos


V

cabeça baixa, caminho
na multidão em desordem.
o que procuro, não sei
a quem busco, desconheço.
recomeço a cada esquina
a soturna travessia
na contramão dos silêncios
desatinado, fugindo
do banal cotidiano
que me impõe o pôr-da-tarde:
voltar pra casa sozinho.


VI

beija-flor, no ar suspenso,
suga a papoula amarela.
lembra o amante apressado
que na ânsia de ir embora
esquece do gozo dela.


VII

garçom, traga-me uma navalha
e um chope espumando nuvens

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Antonia Zarate, detalhe

 

Zemaria Pinto


 

Ceia de Natal, ano 1997


Em volta desta mesa, reunidos
pelo mistério que a paz encerra
eu vos convido, um a um,
nesta noite iluminada
à partilha do milagre
da boa vontade entre os homens.


Eu te convido, homem comum,
mulher comum, que entulhas as calçadas
na pressa cotidiana
do desemprego, da doença e da fome.
Mulher sem rosto, homem sem face,
símbolos da miséria urbana.


Eu te convido, prostituta,
herdeira maldita
da Madalena a quem amei.


E o aidético que definha
nos corredores da morte,
em ti vejo um novo Lázaro,
e te convido:
levanta-te e caminha a este banquete farto.


O índio, fica à vontade,
a casa é tua e a mesa é larga.
Mas estejas sempre acordado.


Que venha o operário,
mas que venha o executivo,
e se sentem frente a frente,
e que este não se envergonhe
porque é também um homem.


Achegue-se a professora
com o aluno pela mão
e discutam em alta voz
a construção do amanhã.


Que venha o político
com todo o seu poder
efêmero
e dê lugar ao seu lado
ao eleitor enganado.
Seja bem-vindo o injustiçado
porque a justiça será feita
um dia.


Que venham o sem-terra e o sem-teto
e o latifundiário e o empresário
porque o perdão não escolhe
posição social.


Que venham a mãe barriguda
e a criança abandonada
partilhar da mesma mesa
onde não se serve o aborto.


E ainda há lugar
ao policial e ao criminoso
frutos da mesma árvore
apodrecida.


Eu vos convido, enfim, vinde, vinde:
que a vida multiplicada


sem pudor e sem censura
se renove nesta noite
onde a palavra hipocrisia
há de ser por instantes esquecida
até que um dia - ah um dia,
possa ser, definitivamente,
banida
do coração do Homem.


Tomai vossos lugares, meus irmãos,
e tenhais uma noite feliz, uma noite de paz.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

Zemaria Pinto


 

Advertência


I

O meu poema não guarda
relação com a realidade.

Quando muito, escrevo sonhos
que ando sonhando acordado.

São sonhos pré-fabricados,
tecidos de forma vária:

sonho poemas escritos
por poetas que não li

e os escrevo com a certeza
de que a mim não me pertencem.

Mas os escrevo em sonhos:
tinta de ar, papel de espuma.

Serpentes e labirintos,
anjos, panteras, centauros,

pássaros, peixes e vacas,
cães, borboletas, carneiros,

além de abismos e rios:
são recorrências de sonhos.

Sonhar voando é brinquedo,
recorrência de prazer.


II

Já sonhei com o Paraíso,
onde busquei Beatriz

num círculo espiralado
de areia e vento e desejo.

Mas já sonhei com o Demônio.
Aliás, lhe sonho sempre,

desde quando um grito negro
despertou-me do delírio,

entre a repulsa e a libido,
do meu corpo submetido.

Sonho com o céu se abrindo
em nuvens revolucionadas.

Sonho com a Terra explodindo,
ilhas de gente arrancadas,

explosões multiplicadas,
lava de fogo e poeira.

Em meio a tudo caminho
com a calma dos culpados,

e talvez até sorria
da beleza do espetáculo.


III

Para o poema transponho
não os sonhos como os vi:

passo ao papel a tristeza
que toma conta de mim

ou então a alegria
esporrada no lençol.

Pois se os escrevo sonhando,
transcrevo-os na sordidez

das lentas salas de espera,
nas filas dos hospitais,

nas toscas mesas dos bares
que envergonhado freqüento

ou nas mesas apressadas
dos restaurantes de quilo.

O poema não reclama,
não requer assepsia.

Apenas pede passagem
como um quisto que supura:

a urgência do poema
não condiz com a escritura.


IV

Deve o poema ser lento
gerado célula a célula,

como um corpo que se forma,
um bicho que se transforma

ou como fosse a laranja
que se faz de casca e gomos;

em cada gomo milhares
de pequenas bolsas-lágrimas;

e somem-se ainda os átomos
do líquido que a enforma,

até a conclusão óbvia:
toda laranja é um poema.

Toda vida é um poema?
Toda coisa é um não-poema?

Mas uma coisa se muda
em poema: se transmuda.

Poemacoisa: poesia;
poemobjeto é outra coisa.

Um poema é um poema,
apenas e tão-somente.


V

A medida do poema
nasce na palma da mão,

galopando até a língua
no ritmo desejado.

Mas a música do poema
é o ouvido do leitor.

Alguns poemas têm cheiro;
outros há que têm sabor;

outros buscam harmonizar
os sons, perfumes e as cores.

O meu poema procura
a ordem fora da ordem.

Mas não resiste o poema
que não reflete uma imagem,

ainda que distorcida
em figura de linguagem.

Pois assim é o meu poema:
lúcido, lúdico, meu.

De outra forma, valeria
transformar sonho em poesia?

 

 

 

 

 

 

20.10.2005