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		Aíla Magalhães 
										
		 
		
		
			
			vinte passos 
			
			
			rumo a nem sei bem onde... 
			
			  
			
			  
			
			1. Partilha 
			 
  
			
			nada a ti pertenço 
			não meus olhos, 
			bandeiras de paz e guerra, 
			ou aquele olhar de horizonte incerto 
			cândido e flama 
			de qualquer hora 
			
			nada a ti dedico 
			não minha voz, 
			sussurro de medo e tédio 
			ou algum cantar de notas mornas 
			melodia e grito 
			de qualquer noite 
			
			nada a ti inspiro 
			não o sonho encadernado, 
			nuvem de azuis puídos 
			asa e semente 
			qualquer que fosse a estação 
			
			deixa-me, deixa-me ainda 
			o corpo não mais de outrora 
			o viço, 
			o gozo, 
			o riso, 
			o ciso que já perdi. 
			estes, agora, 
			e não a qualquer tempo, 
			doarei. 
			
			  
			 
			
			  
			
			   
			
			  
			
			2. Do bom, belo e 
			aparentemente justo. 
			 
			 
			Maria tanto amava que ardia.. 
			Mas até o último suspiro negaria... 
			Era direita, a Maria. 
			Só que todo santo dia numa saída ela pensava 
			Bolava, rebolava, revirava. 
			Nem mais dormia, a Maria. 
			Ainda honesta, 
			enlouquecida, definhava.. 
			(nada bom) 
			
			 
			 
			Foi então que conheceu Teresa. 
			Era bem puta, a vadia. 
			(faria o que o Zé gostava 
			que era também o que queria) 
			(o duplamente bom) 
			 
  
			
			 
			Maria deu ao Zé , de presente, a Teresa 
			E a si própria, deu João e deu ao João... 
			Zé ficou alegre de repente. 
			Cantarolava. Assobiava. Até sorria! 
			Trazia flor pra Maria. 
			Comprava carne de primeira. 
			Vestido novo de chitão... 
			Nem cogitava um João!!! 
			(mas era justo, justíssimo!) 
			 
			Enquanto isso a Maria 
			Agradecida ( e direita ) 
			Trabalhava à tarde 
			E à noite dormia. 
			Cansada e feliz 
			Com o seu Zé, a Teresa 
			E com João., a Maria! 
			(bonito, muito bonito, dona Maria!) 
			 
			"Quem em prol da sua boa reputação, não se sacrificou já uma vez a 
			si 
			próprio?" (Nietzche) 
			 
			
			  
			
			  
			
			  
			
			3. Soul & Side 
			 
			não há mais tempo de esperar pelas bromélias. 
			deixo-te a semente. 
			não é sensato celebrar tristezas. 
			deixo-te o passado. 
			impossível ver crescer frutos do ventre 
			confio-te o futuro. 
			 
			Vai... 
			
			quando for noite, haverá 
			estrelas 
			se não houver, acenderás fogueiras. 
			 
			Vai... 
			
			quando sedento, beberás da 
			fonte 
			sem fonte, beijarás a boca 
			que aplacará tua sede. 
			 
			Vai... 
			
			não há tempo para bilhetes. 
			deixo-te um sorriso e os livros que não li. 
			 
			vai...antes, apenas deixa-me uma canção 
			baixinho, muito baixinho, quase um sussurro... 
			não estaremos sós. 
			 
			se por acaso chegar-te a saudade, 
			planta uma semente, acende uma fogueira, 
			ouça uma canção, sinta o cheiro do mar, 
			inspire o passado, expire o futuro. 
			 
			depois, deixa tudo seguir com o vento. 
  
			 
			
			 
  
			
			  
			
			4. E daí? 
			 
			 
			não me recordo o dia. 
			tinha cara de segunda, 
			corpo de preguiça, olhos de sono, 
			marcas de batom mal disfarçadas pela roupa. 
			 
			sim, bem poderia ser segunda-feira, 
			daquelas quando, qualquer um, 
			sem eira e nem beira 
			poderia adivinhar o grande final. 
			 
			sim, poderia ser qualquer dia, 
			pois são iguais os dias de quem espera 
			sem que dúvidas ou certezas atropelem o calendário. 
			 
			 
			naquela manhã , 
			chovesse ou fizesse sol, 
			estaria ali novamente o vazio 
			exceto por algumas moscas 
			infernizando as orelhas do cão. 
			 
			
			  
			
			  
			
			5. Variável 
			 
			não, não desejo abrir mão de minhas dúvidas, 
			não quero sol todos os dias 
			nem chocolate todas as noites.ou sexo. 
			 
			erra, redondamente, quem me esperar doçura apenas. 
			trago um pé de tamarindo bem plantado no peito, 
			regado pela chuva e por marés que como eu, vão e voltam. 
			gosto de voltar e, para tanto, preciso ir. 
			 
			claro que tenho convicções, algumas até bem fortes. 
			sou contra pena de morte,desprezo a inveja 
			abomino armas. 
			acredito no amor. 
			todos carregam em si o bem e o mal . 
			 
			meu forte, contudo, são as dúvidas. 
			haverá vida após a morte? 
			quem sou eu? 
			prosa ou verso? 
			outono ou primavera? 
			azul-turquesa ou verde-água? 
			agora ou nunca? 
			 
			choro fácil. rio fácil. 
			dificilmente esqueço, mas sou capaz de perdoar. 
			sou gentil, mas viro bicho vez por outra. 
			sou meio bicho, na verdade, mas só meio. 
			 
			tenho muitos sonhos, 
			gosto de gente e também de estar só 
			prefiro mar e campo,  
			gosto de árvores e estrelas, mas abduzida, ia querer  voltar. 
			 
			não sei se sou feliz, mas não acho que seja infeliz 
			então sigo cutucando a onça com vara curta, mas não muito. 
			deu pra entender? 
			
			  
			 
			
			  
			
			6. Transmutante 
			 
			quero um poema amoroso,  
			mas são palavras esquálidas, 
			
			desidratadas, 
			um tanto pálidas, 
			que me aparecem recostadas à velha e tosca cerca de lenha e arame 
			farpado. 
			(confesso que não sabia dos espelhos). 
			
			 
			ainda assim, desejo ardentemente um poema apaixonante, 
			de arrepio pela nuca, calor nas partes, secura pela boca. 
			distraem-me as tangerinas sobre a mesa 
			de cheiro cítrico, 
			tão limpas quanto não pode ser esse poema. 
			contento-me então com um poema enganador 
			e escuto sinos de vento no meio da madrugada, 
			já se inundam os lençóis do cheiro morno de teu corpo  
			e um sussurro tomando corpo 
			
			preenche qualquer vazio. 
			- chega! 
  
			 
			  
			
			  
			
			  
			
			7. Inter vivos 
			 
			ai de mim, que não sei dizer 
			palavra-favo, 
			puro mel escorrendo sobre a língua 
			 
			ai de mim, que não sei calar 
			palavra-fel, 
			espinha de peixe entalada na garganta 
			 
			ai de mim, que não sei conter 
			o bem-te-quer, 
			primavera sob chuvas de verão 
			 
			ai de mim, cansada de nadar 
			rio intermitente 
			não chega ao mar... 
			 
			
			  
			
			  
			
			  
			
			 8. Devota 
			 
			pouco rezava 
			namorando atrás da igreja, 
			compensava. 
			 
			sem ser santo, 
			era divino a cada beijo 
			e o “ai, meu deus!”, já corriqueiro 
			 
			menino bom, aquele 
			gostinho doce 
			na boca da noite 
			 
			como fosse penitência, 
			mal tocava o sino, a ladainha começava 
			e o padre não sabia da missa um terço... 
			 
			
			  
			
			 
			9. Jazz, melancias e algum propósito 
			 
			é possível (creio nisso) 
			fazer do espaço uma dimensão diversa daquela que lhe atribuem a 
			maioria dos terrenos, 
			aqueles seres normais, seres super-normais, 
			do tipo que adora melancia e odeia jazz...(ou vice-versa). 
			 
			é também possível fazer do tempo objeto de pouca valia,  
			
			coisa impensável para os 
			tais terrenos 
			
			- time is money, honey... 
			afinal, tais seres,  
			seres super-normais e pouco etéreos, 
			estão repletos de passados e presentes 
			do tipo que dorme cedo para então cedo acordar num futuro que não 
			sabe se virá 
			ou se verá. 
			(vi_verei? vi_verá?) 
			 
			ai, que enfadonho 
			esse modus peripatetikos 
			de embrenhar-me pelas veredas 
			e, descuidada, perder-me por trilhas cheirosas 
			de florinhas quase azuis, frutinhas e mel... 
			
			  
			
			(mencionei frutinhas, para 
			excluir as melancias). 
			 
			perdoa, pois, essa rasa metafísica 
			que tanto busca, mas afrouxa o passo 
			logo que encontra uma resposta breve 
			na simples sombra de um vago olhar 
			(reflexo?) 
			 
			estarei por acaso 
			feito um narciso disfarçado, 
			receosa das águas do lago 
			que no final das contas, poderia por tudo a perder? 
			 
			e em assim sendo, 
			o que fazer das coisas por fazer, 
			da manhã sonolenta, 
			do desgosto terreno 
			do terrível vazio, 
			do propósito não descoberto? 
			 
			
			  
			
			  
			
			 10. Do avesso 
			 
			desconstruir a poesia 
			torná-la hoje, simples rotina. 
			 
			temperar bifes escarlates 
			tenros feito folhas jovens de alcachofra 
			(nem tão rotineiro assim) 
			 
			desenhar riachos de azeite 
			no fundo da caçarola 
			interromper o curso vez por outra 
			com a ponta do dedo indicador 
			 
			adocicar perigosamente a boca 
			na lata semiaberta de leite condensado 
			sorver cada caloria como se fosse a última... 
			 
			aproveitar a chuva  
			e desfilar em meias e camiseta 
			( cabelos molhados da bica do quintal). 
			 
			fazer amor às quatro da tarde 
			deixar o banco pro dia seguinte 
			ganhar desconto no ingresso do cinema 
			encontrar a blusa azul, sumida há uns quatro meses... 
			 
			depois, nada demais... 
			um entardecer sem chuva 
			de céu laranja, de mar calminho, 
			de lua cheia, de abraço forte, 
			e beijo com sabor de até amanhã. 
  
			 
			
			 
  
			
			  
			
			  
			
			11. De que me vale o 
			poema? 
			 
			A parede branca se estende à minha frente e se espicha,  
			
			qual espigão tombado, sem 
			portas sem janelas,  
			
			onde não se entra, de onde 
			não se sai. 
			
			 
			Parede, que se chama muro. 
			Penso sobre o muro e salto. 
			Qual poesia sobreviveria neste vazio preenchido de concreto? 
			 
			Muro 
			Murro 
			Morro 
			 
			Examino o muro com meus olhos de poeta: aparentemente branco, 
			apenas. 
			A cal guarda o cheiro da terra respingada pelo suor dos homens. 
			Aqui e ali, vejo sonhos rabiscados no nome da mulher amada, 
			Aqui e ali, adivinho revoltas expressas no tijolo mal assentado, 
			Vez por outra, uma porta semi-aberta no reboco que racha solidário à 
			liberdade. 
			 
			Quem dera uma janela... 
			 
			A muralha da China pode ser vista da lua 
			O muro de Berlim tombou de portas fechadas 
			A fronteira do México parece segura 
			Judeus e muçulmanos lamentam por Israel. 
			 
			Quem dera um machado... 
			 
			“Trabalhadores do mundo inteiro, divirtam-se”... 
			Longe dos muros de Paris, 
			minha pequena Guernica não tem as cores de Picasso, 
			apenas mestres sobre os quais cuspiria Waters 
			aqueles mesmos que assombraram Munch 
			e fritaram a orelha de Van Gogh no óleo de girassol 
			 
			Quem dera um pincel... 
			 
			Sem janela, sem machado, sem pincel, 
			restam-me poucas certezas, 
			um muro branco, aparentemente, apenas, 
			e um velho disco do Pink Floyd 
			 
			Quem dera agora um poema. 
			
			  
			 
			
			  
			
			  
			
			12. Memória cache...  
			 
			memória cache, ou, 
			receita para um amor interminável... 
			 
			comece pela nuca 
			e com a ponta dos dedos, 
			delineie-me os lábios... 
			 
			do prato de jantar, 
			recolha-me folha, carne, flor, 
			lubrificada em azeites virgens 
			 
			experimente cada pedaço, 
			como se fosse o único, 
			mesmo que seja o último... 
			 
			depois de tudo, o canto das cigarras, 
			executado em sinfonia, 
			eterno enquanto dure... 
			 
			 
			nota: 
			Tradicionalmente, em outubro ou novembro, a cigarra sai do solo. O 
			macho vai para as árvores, canta e atrai a fêmea para o ritual do 
			acasalamento. Logo depois, ele morre e as fêmeas saltam para as 
			árvores, colocam seus ovos que viram larvas, caem no solo, penetram 
			na terra e ficam sugando a seiva da árvore durante três a quatro 
			anos, até recomecem seu ciclo. 
			 
			
			  
			
			  
			
			 13. Ritual 
			 
			o lume da madrugada 
			acolhe corações ardentes 
			em dialeto que se traduz, 
			em meio ao grande silêncio 
			 
			tempos em tempos... 
			 
			vertentes pelas ruas, passarelas, 
			tão vermelhas quanto outrora, 
			ainda tingem a terra, rosicler 
			escoam pelo rio, corredeira 
			ainda fazem turva cada aurora... 
			 
			liberdade, liberdade! 
			 
			desperto, 
			o dia revela cicatrizes encarnadas 
			mapas de dores tatuadas sobre a carne, 
			silêncios costurados pelos caminhos d´alma. 
			 
			aos quatro ventos, o rufar dos tambores abre passagens. 
			
			  
			 
			
			  
			
			14. Poema para ninguém 
			
			  
			
			Persiste-me o segredo 
			
			de um feito antigo. 
			
			- verdade ou mito? 
			
			(nem sei ao certo, admito) 
			
			  
			
			Pelo sim e pelo não, 
			
			mantenho um nome 
			
			bem guardado, envolvido 
			
			em papel celofane 
			
			de um encarnado esmaecido, 
			
			embora vivo, ainda vivo. 
			
			  
			
			Pelo não, pelo talvez, 
			
			repasso lençóis de seda 
			
			e a ferro quente, 
			
			marco a ponta de um momento, 
			
			dobrando no peito uma 
			saudade incerta 
			
			  
			
			nesse silêncio, 
			
			nessa noite quase infinita 
			
			encarcerada entre o algum 
			dia ou nunca 
			
			um quase grito: 
			
			Você, maldito! 
			
			  
			 
			
			  
			
			  
			
			 15. Soletrando 
			 
			toda essa necessidade de falar, 
			provém do silêncio, 
			do vazio exposto, 
			
			insistentemente, 
			no cabide que ainda guarda o cheiro de tua camisa favorita, 
			no limão que apodrece na fruteira 
			
			e o desperdício de tanta 
			vitamina, 
			C, de coração, talvez... 
			ainda bem que "sempre" escreve-se com "S", 
			assim, posso esperar um "D" de dia desses. 
			 
			
			  
			
			   
			
			16. Um olhar por sobre os 
			telhados 
			(ou, do ponto de vista dos gatos) 
			 
			quieta, observo o tempo através do sol. 
			primeiro, uma sombra enorme parece engolir a luz. 
			depois, a luz é que engole a sombra 
			fazendo nascer um dia azul 
			 
			sobre telhados recém-paridos, encarnados de luz, 
			pontilham aqui e ali os verdes,, amarelos e lilases 
			das  flores teimosas num tempo de quase inverno. 
			(não sabem as flores que ha tempo de adormecer?) 
			 
			o silencio cede ao breve rumor do vento entre palmas, 
			(carícia) 
			e saúda esta manhã,que também a mim pertence. 
			
			Passeio nas horas que 
			indiferentes, passam por mim, 
			e sem cerimonia, envelhecem-me. 
			 
			Enquanto isso, o mar vermelho dos telhados 
			guarda milhares de segredos: 
			 
			quem será feliz? quem chorará? 
			onde estarão os que conspiram? 
			por onde andarão todos os amantes? 
			(serei eu ou apenas os olhos de um gato?) 
			 
			dói em mim este futuro incerto,  a pouca certeza que me coube. 
			dói em mim saber e não saber 
			esse ter tido e o não ter sido 
			dói-me, neste dia azul, viver o que me cabe 
			como talvez doa também aos gatos, nas noites claras de luar, 
			 
			
			a lembrança do alto da 
			montanha... 
			 
			  
			  
			
			  
			
			17. M a r i n h e i r a 
			 
			 
			em minha pele, 
			cristais de sal recendem 
			um mar revolto, 
			desaguado da ponta de tua língua. 
			 
			por sobre ela, a pele, inteira, 
			gotas de marés, 
			saliva de peixe, 
			escamas incrustadas à moda incisiva de teus dentes. 
			 
			sem encanto ou canto, 
			ser areia, 
			seara, 
			sereia... 
			nadar ou morrer na praia, 
			é tudo quanto resta. 
  
			 
			
			 
			18. Ex-voto 
			 
			penumbra... 
			num canto da sala, 
			quase jaz 
			solitária e muda... 
			 
			como se invisível fosse, 
			fruto de alguma mágica, 
			inventada apenas para justificar 
			a sua longa existência. 
			 
			o tempo escureceu-lhe o corpo 
			já trêmulo, um tanto disforme 
			impossibilitado de oferecer 
			conforto e prazer de outrora. 
			 
			uma coisa. 
			substantivo feminino. 
			objeto meio indireto, 
			vulgar e obsoleto 
			frente à poltrona de couro legítimo 
			que agora ocupa a vaga de honra, 
			bem ao lado da janela. 
			 
			a velha cadeira, 
			já sem dono, expõe toda a sua inutilidade. 
			- quem sabe um antiquário? 
  
			 
			
			 
			 
			19. R e l e i t u r a s 
			 
			 
			páginas amarelecidas desfilam sob meus olhos 
			e me dou conta das diversas sombras deixadas por entre 
			os dias... 
			 
			sem poder reescrever velhos destinos, 
			pesco, aqui e ali, 
			possibilidades abandonadas à própria sorte 
			e, 
			em exercício lento 
			(ou de pouca fé), 
			lanço mão de alguns pequenos fios, 
			adiciono uns e outros ingredientes, 
			recombino certas variáveis, 
			e como quem conserta uma sopa rala, um tanto 
			insípida, 
			fecho os olhos, 
			apuro os sentidos a perscrutar causas e efeitos 
			dentro de mim. 
			 
			[pausa] 
			 
			vêm-me lembranças de um velho tapete de cordas, 
			amaciado na profusão de corpos, 
			uma cortina de conchas e contas 
			barulhando à brisa da janela, 
			um abajour de sisal cru 
			desenhando sonhos pelas paredes... 
			 
			[suspiro...] 
			 
			o rio amarelo da china não chega mais ao mar. 
			já não sei onde brilha o jade. 
			não choro mais, não choro. 
			aprendi a fazer renda. 
			
			  
			
			os dias anoiteceram 
			e para que não falte a certeza, 
			não há lua, 
			exceto no quadro da parede, 
			que me chega de repente. 
			 
			[um ar grave, não necessariamente triste] 
			 
			preciso, urgente, 
			de palavras novas, 
			daquelas que não saem da cabeça, 
			e nos tiram o ar, o sono, 
			e nos permitem ouvir estrelas e sinos de vento... 
			
			  
			
			  
			 
			  
			
			  
			
			  
			
			20. Canção de amanhã  
			 
			 
			não direi adeus  
			se ainda tarda o sol.  
			também não falarei de flores  
			quando a primavera discursa aos olhos  
			permitindo que descansem as saudades do outono.  
			 
			fecho os olhos e deixo-me levar por uma tênue certeza,  
			uma impressão sutil como o fio da teia  
			da caprichosa aranha-mãe,  
			de que o silencio conspirara a meu favor.  
			 
			não direi adeus,  
			embora saiba do fim de todas as coisas,  
			fim que abraça mesmo os sonhos  
			sem tempo de vir a ser,  
			fazendo breve o que se julgava eterno.  
			 
			lentamente, tento desconstruir o pensamento  
			ainda embriagado de lucidez indesejada,  
			concebido em meio acido, sobrevivente,  
			como o pródigo filho que ainda não partiu.  
			 
			refaço-me do último suspiro  
			recolho a última palavra  
			ignoro as horas apressadas  
			e caminho para o mar. 
			
			  
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