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Gilberto Mendonça Teles


 

Criação
 

 

O verbo nunca esteve no início
dos grandes acontecimentos.
No início estamos nós, sujeitos
sem predicados,
                   tímidos,
                            embaraçados,
às voltas com mil pequenos problemas
de delicadezas,
                  de tentativas e recuos,
neste jogo que se improvisa à sombra
do bem e do mal.


No início estão as reticências,
este-querer-não-querendo,
os meios-tons,
                 a meia-luz,
                 os interditos
e as grandes hesitações
que se iluminam
                 e se apagam de repente.


No início não há memória nem sentença,
apenas um jeito do coração
enunciar que uma flor vai-se abrindo
como um dia de festa, ou de verão.


No início ou no fim (tudo é finício)
a gente se lembra de que está mesmo com Deus
à espera de um grande acontecimento,
mas nunca se dá conta de que é preciso
ir roendo,
          roendo,
                   roendo
um osso duro de roer.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jacques-Louis David (França, 1748-1825), A morte de Sócrates

Gilberto Mendonça Teles


 

Chá das cinco

A Jorge Amado


chá de poejo para o teu desejo

chá de alfavaca já que a carne é fraca

chá de poaia e rabo de saia

chá de erva-cidreira se ela for solteira

chá de beldroega se ela foge e nega

chá de panela para as coisas dela

chá de alecrim se ela for ruim

chá de losna se ela late ou rosna

chá de abacate se ela rosna e late

chá de sabugueiro para ser ligeiro

chá de funcho quando houver carunhco

chá de trepadeira para a noite inteira

chá de boldo se ela pedir soldo

chá de confrei se ela for de lei

chá de macela se não for donzela

chá de alho para um ato falho

chá de bico quando houver fuxico

chá de sumiço quando houver enguiço

chá de estrada se ela for casada

chá de marmelo quando houver duelo

chá de douradinha se ela for gordinha

chá de fedegoso pra mijar gostoso

chá de cadeira para a vez primeira

chá de jalapa quando for no tapa

chá de catuaba quando não se acaba

chá de jurema se exigir poema

chá de hortelã e até manhã

chá de erva-doce e acabou-se



(pelo sim pelo não

                                          chá de barbatimão)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Benjamin West, Death on a Pale Horse

 

Gilberto Mendonça Teles


 

No Foz do Tejo


E todavia a trave na garganta

e a grossa mão medrosa sem poder

interpretar sequer o que repete,

o que soletra, o que rumina há séculos,

nós, gagos de Babel, babamos versos.

                        Jorge de Lima


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Gilberto Mendonça Teles


 

História


Toda história tem seu texto
tem seu pretexto e pronúncia.
Tem seu remorso, seu sexto
sentido de arte e denúncia.


Tem um sujeito que a escolhe
que se encolhe e se confunde:
um lugar que sempre a tolhe
qui tollis peccata mundi.


Tem sua forma em processo,
tem seu recesso e cansaço,
e tem seu topo de excesso
no ponto extremo do escasso.


Tem sua língua felpuda,
a voz aguda e afetada.
R tem a essência que muda
e permanece, calada.


Toda história tem seu preço,
tem seu começo e seu dito.
É só virar pelo avesso,
ler o que está subscrito.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

Gilberto Mendonça Teles


 

O discurso


Havia a necessidade absurda de falar
para manter o equilíbrio da mesa
e preservar a reputação implícita
nos gestos.


Alguém chegou a reclamar a urgência
de um gravador para medir as vaias.
Outro, mais complacente, se preparava
para pedir bis. Um terceiro mastigou
ruidosamente a ponta da língua.


Neste momento solene... o poeta
burlou a vigilência das moscas
e deu um salto mortal no meio
do discurso.


E ante a curiosidade geral dos convivas,
fabricou um cavalo de miolo de pão
e fugiu a galope, levando à garupa
a garota que estava fingindo que não.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

Gilberto Mendonça Teles


 

Etnologia


Ainda


há índios.

 

 

 

 

 

 

25.11.2005