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Solivan Brugnara


 


Orações ecumênicas
ou sombras divinas



Buda descansou a sombra
de uma árvore.
A árvore morreu
mas sua sombra ainda esta lá.

Shiva, com todos esses braços
sua sombra parece com a de
uma árvore.

Maomé
alimentou com sua sombra
um leão esfomeado.

Tupã disse aos Tamoios.
- A harpia voa
mas sua sombra rasteja na terra.

Jesus
ficou parado sob o sol escaldante
porque um menino
dormia no frescor mentolado
de sua sombra.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

 

 

 

 

 

Solivan Brugnara


 

Prelúdio para Van Gogh no trigal



O mesmo mistral que ondulava
O trigal amarelo parecia chicotear
A sua face dolorida
E fazia seu coração-cavalo
Corcovear, rude no peito.
O sol
Que muitas vezes o encantou
Enquanto pintava sua luminosidade
Com gestos espiralados de quem
Mistura ingredientes
Cores, paisagens e alma,
Hoje, o incomoda. O calor angustia.
Os corvos em pequenas revoadas
De folhas de outono, a sua frente,
Em um negativo de uma noite estrelada
São cintilações negras na claridade fulva do dia.
O grasnar agudo festivo
O feria
Ninho de vespas dentro de seu crânio latejante.
Sua frustração esparsa
Cristaliza-se, solidifica-se
Na forma de uma de manada
No sentimento determinado da raiva
Uma raiva de cor vermelha
Que colore seu rosto e pescoço.
Soca o quadro que faz
E com as falanges manchadas de tinta
Pega seu cachimbo, enche de fumo
Adentra no trigal, agacha-se
Caga, fuma placidamente
E tem um momento de paz.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

 

 

 

 

Solivan Brugnara


 

A leveza o êxtase e a rudeza

a Artur Rimbaud

A leveza

Vai pela estrada Rimbaud, lendo a paisagem
Estava escrito no caminho de pedras
Dispostas em escamas de víboras
Que seu andar trôpego de alegria
Será barco bêbado sobre um rio
Só por Dante navegado
E no trigo com letras manuscritas
Dos monges medievais lia, numa página com
Iluminogravuras
- Minha semente mastigou a terra, fiz-me terra
E a espiga fulva e relicário onde guarda o pão
Nas faces dos ceifadores, o texto,
Linhas da vida
Como palma da mão exposta
Nas rugas profundas, rendas ou raízes
Em volta desses duros olhos
Viu o local onde um dia perdeu-se
Traduzir-se em ponto de referência
Como água vertida em vinho
E seu olhar era criança, despreocupada
Num doce balanço sob as páginas da divina comédia.


O êxtase


Vai pela estrada Rimbaud
Vê a montanha mergulhar no céu e tingir-se de céu
Membro dentro de um céu-fêmea
E entra num bosque
Que se aninha nas suas encostas
E bebe um ar místico
A névoa de tule pintado por Botticelli
Estampado com canto de pássaros
Recende a ramagens, a âmbar das resinas
E ao suor dos faunos escondidos
Desce a nascente
E com gestual de tigre
Lambe a própria imagem no espelho d’água
Enquanto a língua sente o gosto
Do bosque diluído em água
Dentro dele formam-se imagens
Primeiro, narciso
Um instante de escuridão
Depois a flor branca
Então volta com passos crocantes
Sobre as folhas secas
E deita-se sob os álamos
Vê as copas transpassadas
Por feixes de luz amarela
Com a neblina fulva a passear sinuosa dentro deles
Nos cimos tremeluziam
Enxame de estrelinhas
Pinceladas uma a uma pelo sol
Fecha as pálpebras quentes
Vê então de São Sebastião
O seu corpo magnífico
Nu, leitoso, cheio de luz
De púbis exuberante, negra e cacheada
Alvejado por flechas
De onde o sangue verte elegante como uma lágrima
Com rosto pendido e olhar de súplica
Veste apenas a sombra das folhas
Sob a pálida pele do peito e das coxas.


A rudeza


Vai pela estrada, Rimbaud
No peito o ouro sem metáfora
Bebe a si próprio no suor que cai dos seus lábios
E a fome come-lhe o corpo,
O calor faz a alma presa no corpo agitar-se feito um feto, inquieto e febril
Logo vai despetalar a roxa perna
E no quarto
De odor enfermo como hálito de um celibatário
Com a angústia de um pássaro sem asas
Seu coração já coto debate-se ante o céu azul visto da janela.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

 

 

 

 

 

Solivan Brugnara


 

A desconstrução do boi


Matar
O martelo afaga a testa do boi
Bem entre seu olhar negro e bondoso
                    Cheio de estrelas brancas
E a faca procura um resto de vida
Escondida dentro do seu pescoço
E como um sopro frio
Apaga as estrelas assustadas
No olho do boi
O corte tem um gosto
Oxidado e gelado da lâmina
Língua abusada metálica dentro da carne
Do talho ubre de ordenhações rubras
Saem abstrações brutais de um coração se debatendo
Caem vermelhos, brilhos, lampejos
                       Sobre o alumínio
Com digitais e moscas verdes

Estremecimentos
O sangue abundante acomoda-se
                         Aninha-se
Transborda, pastoso, calmo
Morte
Ainda sai um colar de rubis
No fim lágrimas de um olho vazado

Estaquear
Erguer no galho da cabriúva
A rês de cabeça pra baixo
Quatro cascos suspensos
Pelas pulseiras rudes de corda de sisal
Estranha flutuação de alma

Courear
Arrancar o branco
Colorir num processo inverso
De retirar
Deixá-lo rascunho
De boi a crueza de um esboço
Vermelho, inconcluso
Riscado de nervos brancos
Pendurado
Ante o matagal inrediço rasurado de inverno
A suave sombra dos ramos
Parecem arder sobre a cor carne-viva
Como mão áspera sobre queimadura
Decepar a cabeça
Pô-la sobre a mesa
O sangue procura os veios das tábuas
Um corte no abdômen
Abre-se num fácil sorriso
E vomita intestino pardo e fedido
Na bacia
Após o parto
O coração dorme sobre as vísceras
O boi morto ainda adula
Seu odor de presa
Deixa o ar quente e ensebado
E espalha felicidade
Moscas varejeiras zunem
Coroam os coágulos
Como esmeraldas ávidas
O rabo do cão sorri
Um menino, pernas e braços finos
Magro de barriga grande
Olha o pai com um sorriso atento
Dentro dele uma alegria inocente de oncinha

Carnear
A faca apaga
Os membros dianteiros
Deixa no lugar a terra que se escondia
Atrás deles
Abre-se o zíper da espinha dorsal
Os posteriores ficam balançando enforcados
Após recortados
Retirados
Restam dois cascos, dançarinos
De um boi invisível, desconstruído.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

Solivan Brugnara


 

A chave como símbolo da liberdade



Como uma rosa artificial
Pálida e asséptica
O inglês fecha a porta do banheiro, e livre
Resplandece de esmaltadas verdades escarlates
Troca de roupa, sinuoso
Seus olhos carregam-se de languidez
Como se fosse a languidez pesada maquiagem.
É um narciso beijando a imagem refletida
No espelho do banheiro
A língua lesma lambe o espelho
Deixando torpes caminhos de saliva.
Nos lábios florescem jasmins
Dentes como alvas pétalas abusadas
Dão escrachadas gargalhadas silenciosas
O corpo dança
Em elaborado gestual barroco ou hindu.
Em ridículas e sensuais transgressões soltas
Demonstra para o espelho
Suas tendências homoeróticas
O que concorda, acalenta como
Um bebê sugando um seio masculino
E o que discorda, desaprova num discurso
Debochado, Stones
E mudo chapliniano
Como em O grande ditador
Dedo indicador ereto.
Esta é a sua patética, sublime e única liberdade
Seu rosto parece uma máscara,
Com trágicos sorrisos expressionistas
De partes rubras, partes lívidas
Como um palhaço em simbiose
Com uma ruge puta ensandecida.
Admira-se numa encarniçada, fêmea e densa
Masturbação
Depois de explodir
Deita com prazer no azulejo frio
Descansa, o sêmen ainda escorre na mão
E impregna de odor viscoso suas narinas
Satisfeito
Fica minutos aspirando o ar como fosse um cigarro.
Então, levanta, lava-se meticulosamente
Veste-se e sai
Pálido e asséptico
Como uma rosa artificial.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

 

Solivan Brugnara


 

O lobisomem e o mel



Espiava da copada da Guajuvira
escondia até meu olho que é azul
e parecia com o céu atrás das folhagens.
Dizem, lobisomem gosta de ave
porque tem gosto de carne de anjo
mas aquele gostava era de mel
passou nambu, nem notou.
O bicho mordia o favo
arfava, como cio, queria sentir o cheiro
que era de remela de flor de maria-mole.
Se lambuzava e gania
olho grande,
achava bonito
o mel farto, grosso
que caia lerdo, cheio de preguiça
florido de brilho na sua boca.
Comia com abelha e tudo
apimentava o mel com ferroada.
Quando acabou, lambeu os respingos na terra,
depois as mãos e chupou os pêlos.
Então deitou, doeu, gemeu, doeu, gemeu.
Muito mel arde na barriga,
é comer urtiga.
Revirado em homem, foi... mãos nas tripas.
Desci da Guajuvira
meu olho já não era céu.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Solivan Brugnara


 

Sobre a interessante reação das senhoras a um poema



Batista de Pilar
entrou sem ser convidado
no sarau com chás, bolachas e alguns maridos.
Terno amassado com cheiro de brechó
camisa bege encardida
recusou o chá, procurou vinho.
E como está acostumado a achar espaços
em ônibus lotados
foi fácil subir no palco.
Com a voz beirando o grito
iniciu o poema.
- A puta!
Soou como sirene com cárie.
Olhos voltaram-se, como girassóis raivosos
para a palavra tão vermelha
que manchou de rubro a face das senhoras.
E o constrangimento se manteve
até o arremate de Batista.
- A puta, de Carlos Drummond de Andrade!
Alívio entre as senhoras, sorrisos, e mesmo aplausos.
É Batista, confirma-se a tese de que o maldito
está no poeta e não na poesia.
Tuas doces poesias são consideradas malditas
só porque não lavas as mãos antes de fazê-las.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

 

 

Solivan Brugnara


 

Relojoaria


Impossível saber que horas são numa relojoaria
Discordantes, vaidosos, pretensiosos
Os relógios marcam horas divergentes.
Faz anos que libertei meu braço desta coleira
Detesto mesmo os corretos, os precisos
Seu meio-dia não é o meu meio-dia
Nem meu sono, termina em algum ponto programado
E estridente da manhã.
Porém, tenho certa simpatia pelos relógios parados
Errados sempre
Salvo, por um instante, por um segundo
Durante o dia no qual estão certos.
Um certo, que tem a beleza do acidental
Do impossível que acontece
Como o exato lance ou arremesso longínquo
O perfeito ocorrido de um acaso mágico.


 

 

 

 

 

 

26.3.2017