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			Ruy 
			Vasconcelos 
      
 
                   Entre o 
					jornalismo e a literatura      
				O Poder e a Peste — A 
				vida de Rodolfo Teófilo.  Livro do jornalista e 
				escritor Lira Neto. Edições Fundação
 Demócrito Rocha. 226 páginas. R$ 28,00.
   
			Em nossa recém-democracia de 
			uma década, uma palavra gastou-se com velocidade: cidadania. De 
			tanto ser usada em sofisma nas campanhas políticas, na publicidade 
			institucional, seu peso foi tão retirado, que hoje ela paira no 
			espaço da mídia como uma folha-seca desferida por um bom cobrador de 
			faltas. Sua densidade, antes plúmbea, hoje está mais para bola de 
			pingue-pongue. E, desferida sem propriedade, vai e volta sobre o 
			balcão barato do marketing.  
			Nesse meio tempo, a 
			história, este forte esteio de ética e cidadania, não vem sendo 
			capaz de nos oferecer ou resgatar muitos modelos de participação 
			verdadeiramente cívicos. Pode-se pensar em muito poucos nesse 
			sentido: Anita Garibaldi? Castro Alves? José do Patrocínio? Euclides 
			da Cunha? Mário de Andrade?  
			O tom geral com que é 
			tratada a figura pública no Brasil — nos livros, no teatro, no 
			cinema — também não ajuda muito. D. João VI vivia a traçar frangos. 
			D. Pedro II, um valetudinário, quase um autista diante da realidade. 
			Santos Dumont, um dândi efeminado cheio de achaques. Que fazer se o 
			que nos chega dessas personagens é raramente uma representação mais 
			complexa e menos caricatural? Há muito pouco por onde colher imagem. 
			Nossos espelhos foram trincados em sete vezes sete anos de azar. 
			 
			Neste contexto, o livro O 
			Poder e a Peste, A Vida de Rodolfo Teófilo, do jornalista e escritor 
			Lira Neto, surpreende. Por nos colocar diante dos olhos a figura 
			singular do sanitarista e escritor cearense Rodolfo Teófilo 
			(1853-1932).  
			As condições sanitárias das 
			cidades brasileiras no final do século passado eram terríveis. Tifo, 
			cólera, febre-amarela, varíola. Em 1862, a cólera vitimou quase um 
			terço dos seis mil habitantes de Maranguape, cidade nas cercanias de 
			Fortaleza. Em 1878, a varíola mataria um quinto da população da 
			capital cearense.  
			Rodolfo Teófilo, filho de 
			médico, conviveu desde o berço com essa realidade pouco auspiciosa. 
			Cedo ficou órfão. Teve de trabalhar como caixeiro e suportar 
			humilhações. Driblou-as. Mais tarde, diplomou-se em Farmácia, em 
			Salvador. Ao regressar a Fortaleza, sintetizou uma vacina contra a 
			varíola e, praticamente sozinho, sem qualquer respaldo 
			governamental, muito ao contrário lançou-se à tarefa de imunizar 
			toda a cidade.  
			O Poder e a Peste traça o 
			perfil desse Dom Quixote cearense. A biografia não se furta à tarefa 
			de nos apresentar também um personagem complexo, marcado pela 
			contradição. Teófilo era adepto das teses positivistas e das 
			concepções raciais de Nina Rodrigues. Acreditava mesmo que as 
			mazelas sociais brasileiras e o atraso do país se devia ao 
			caldeamento das raças. E, ainda assim, lutou diuturnamente para 
			salvar a vida da "sub-raça bárbara" que entendia encontrar ao redor.
			 
			Esse homem obstinado ainda 
			encontrou tempo para escrever 28 livros; aderir à causa 
			abolicionista; militar na Padaria Espiritual; espécie de agremiação 
			literária que, mais pelo comportamento irreverente de seus membros e 
			menos pelo teor do que escreveram; antecipa o modernismo no Brasil; 
			e, como se não bastasse, foi inventor da cajuína; não só do produto, 
			como também do nome.  
			Narrada de forma anedótica, 
			mas inscrevendo as anedotas dentro do contexto da macro-história da 
			época, o livro esboça um vigoroso painel da sociedade brasileira do 
			início do século. Um percurso que inclui a abolição dos escravos; 
			que, no Ceará, deu-se quatro anos antes de no restante do Brasil; a 
			queda da monarquia; o apogeu e decadência da oligarquia Accioly; a 
			instigante mobilização popular em torno da figura de Marcos Franco 
			Rabelo; o curioso episódio da Sedição de Juazeiro, envolvendo o 
			legendário Padre Cícero e seu sinistro braço político, o deputado 
			Floro Bartolomeu – que, no Rio, urdiu com o todo-poderoso 
			caudilho gaúcho Pinheiro Machado o rearranjo do jogo oligárquico no 
			Ceará; o flagelo das secas; a migração dos cearenses para a 
			Amazônia; e, claro, as terríveis epidemias.  
			O livro está escrito num 
			registro leve, didático; mas longe de vulgar. Salta à vista o 
			sistemático emprego de termos e expressões com um certo travo 
			arcaico-regional. Estas expressões assomam como um recurso muito 
			efetivo. Coisas como "bodejado", "papangu", "visagem", verbos como "brechar", 
			emprestam o condimento necessário para que a biografia drible tanto 
			a chatice da tese acadêmica como a eventual planura da reportagem 
			jornalística. O fato de ser fartamente ilustrada com fotos de época 
			parece clamar também pela leitura dos mais jovens. 
			Alguns episódios são 
			narrados com perícia artesanal. É o caso do lúgubre trecho em que, 
			durante uma epidemia de cólera, Teófilo leva o corpo de uma irmã 
			mais nova para o cemitério dentro de uma caixa de costura; ou do que 
			propositalmente estoura uma garrafa de champanhe sobre os convidados 
			de seu patrão, o Barão de Aratanha; ou mesmo como quando ao assumir 
			a direção da Padaria Espiritual, um reduto de boêmios inveterados, 
			não só muda o local das reuniões de um café para sua própria
			residência, como substitui a cerveja pela cajuína.  
			Mas, sem dúvida, os trechos 
			mais significativos são os que tratam da verdadeira cruzada que 
			Rodolfo Teófilo empreendeu contra a varíola. Sua devoção à causa é 
			tocante. Ele chega a montar um posto de vacinação (ou vacinogênio) 
			em sua própria residência. E, vai além, percorre à cavalo os 
			cortiços da periferia de Fortaleza, e atinge o cúmulo de inventar 
			histórias de santos, autoproclamar-se agente do governo ameaçando 
			com multas, ou, em última instância "comprar com o dinheiro do 
			próprio bolso o consentimento dos mais renitentes" à vacina. 
			 
			Rodolfo Teófilo tomou sobre 
			os próprios ombros uma responsabilidade do Estado. E não fraquejou. 
			Mesmo quando o próprio Estado, por conta de mesquinharias da 
			política local, tratou de descreditar seu esforço junto à população. 
			Seus livros não conhecem reedições há muito e seu nome é muito pouco 
			conhecido para além das fronteiras do Ceará. Numa época em que 
			cidadania provavelmente sequer era um termo da moda, este homem 
			tinha a exata noção do que isto significava. E não a vendeu barato. À exemplo de Odele, a pequena porta-bandeira da Liga 
			Feminista Franco Rabelo, que, em janeiro de 1912, na chamada 
			Passeata das Crianças, sitiada pela cavalaria e sob a ameaça de 
			balas perdidas, restou impassível no centro da praça até o final da 
			carga. Seu retrato, a mais bela foto do livro, parece estranhamente 
			atual.
 
			Desde o equilíbrio invulgar 
			do texto que viabiliza sua acessibilidade, passando pela coleta de 
			expressões regionais, o suporte da iconografia e o registro 
			romanceado do livro, Lira Neto faz com que tudo conspire para um 
			atrevimento maior: o de tomar um tema da província e inscrevê-lo 
			numa perspectiva mais ampla. Talvez dela esteja um tanto ausente a 
			própria palavra de Rodolfo Teófilo; muito pouco citada ao longo da 
			obra. E se em parte isto é suprido pelo tom romanceado da narrativa, 
			como quer o autor na introdução, este ainda não é recurso o bastante 
			que justifique a omissão.
 
			De qualquer modo, o mérito 
			maior de O Poder e a Peste está em desprovincianizar o Brasil. Em 
			abolir a fronteira do local. E habilmente. Afinal, como diz Robert 
			Creeley, "o local não é um lugar mas um lugar em um certo homem"; a 
			parte desse lugar para a qual ele tem sido impelido ou trazido pelo 
			amor, para dele dar testemunho".                  
                 
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