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Ruy Vasconcelos




O homem marcado




De como Joaquim Cardozo partiu de um ambiente semi-rural de Recife para tornar-se admirado por Drummond e João Cabral. Joaquim Cardozo: contemporâneo do Futuro Maria da Paz Ribeiro Dantas Editora En-Sol 336 páginas R$ 28

 

Transparência, claridade das manhãs do litoral do Nordeste; solaridade de praias, beleza de radiância tropical, frescor ameno de chuvas encontraram seu tradutor máximo em um homem que se auto-intitulava marcado: ''Sou o homem marcado.../ Em país ocupado/ Pelo estrangeiro. / Sou marinheiro/ Desembarcado;/ Marcho na bruma das madrugadas;/ Mas - / Trago das águas/ A substância/ Da claridade/ DA CLARIDADE!''

Joaquim Maria Moreira Cardozo (1897-1978) faz parte - ao lado de Dante Milano e Rui Ribeiro Couto - de uma fração de poetas modernistas que, pela excelência de seus versos, vem sendo progressivamente citado, relido, glosado e assuntado em teses, críticas, resenhas.

Nascido na várzea do Zumbi, subúrbio do Recife, Cardozo vai raptar para sua poesia uma marca dessa paisagem semi-rural. ''A cidade do Recife nasceu sobre terras, por três rios trazidas de muito longe: o Capibaribe, o Beberibe e o Ibura construíram este solo de argila untosa e macia, que constitui toda uma longa várzea - uma veiga - como diria Garcia Lorca, falando de sua 'veiga granadina''', reporta ele. A analogia entre Recife e a Andaluzia será, depois, retomada por um de seus melhores amigos: João Cabral de Mello Neto, que dedicou a Cardozo nada menos que seis poemas - dois destes figurando entre os melhores encômios escritos de um para outro poeta no Brasil: ''A Joaquim Cardozo'' e ''A Luz em Joaquim Cardozo''.

Cardozo esteve cerca da Revista do Norte (1923), de grande requinte gráfico - editada, além dele, por Gilberto Freyre, José Maria de Albuquerque Melo, Benito Monteiro, Luís Jardim e Ascenso Ferreira. O grupo não se limitava a encontros boêmios na Esquina Lafayette e à edição da revista, lançando-se também a excursões pela região da Zona da Mata, numa sorte de geografia estética.

O senso de ar livre, de espaço aberto está muito presente na primeira poesia de Cardozo. Além da infância no Zumbi, este senso foi reforçado por meses acampado na Floresta dos Leões, quando do serviço militar; por seu trabalho de topógrafo em locais como a Baía da Traição, mapeando todo o litoral paraibano; e nos levantamentos hipsométricos e geodésicos em arrabaldes do Recife. Experiências relatadas em um livro inédito, intitulado Água de Chincho.

Segue-se sua heterodoxa opção pela engenharia numa terra de bacharéis, em ''que o estudo do direito sempre teve a preferência da elite intelectual, ligada aos mecanismos de transmissão do poder, geralmente associados à posse da terra'', como ressalta D'Andrea, citada por Maria da Paz Ribeiro Dantas em Joaquim Cardozo: contemporâneo do futuro, um importante estudo sobre o poeta.

Como engenheiro, opta inicialmente por trabalhos de campo: serviços de perfuração de poços, irrigação de uma das ilhas do Rio São Francisco, cálculo de curvas parabólicas para a segunda estrada pavimentada do país. Junto com Luís Nunes, um dos pioneiros da arquitetura moderna no Brasil, ideou a fundação do Diretoria de Arquitetura e Urbanismo (DAU), primeiro órgão do gênero no país. Foi professor da Escola de Engenharia e um dos fundadores da Escola de Belas Artes. Em 1939, por conta de um discurso, ao paraninfar uma turma de concludentes de engenharia, foi preso. Incomodado, optou, então, por mudar-se para o Rio, onde trabalhou com Rodrigo Mello Franco de Andrade, no SPHAN. Em 1941, inicia colaboração - como engenheiro de cálculos - com Niemeyer, que começa na Pampulha e segue até os edifícios mais importantes de Brasília e depois.

Tudo isto no livro de Maria da Paz Dantas é admiravelmente pontuado por incisivas observações críticas, ou trechos de poemas e relatos auto-biográficos do próprio Cardozo.

Seu primeiro livro, Poemas (1947), foi editado por um grupo de amigos, com um célebre prefácio de Drummond que o chama de ''modernista mais ausente que participante'', e assegura que ''um aparelho severo de pudor, timidez e autocrítica salvou-o das demasias próprias de todo período de renovação literária''. São 43 poemas em 25 anos. O que já tinha levado Manuel Bandeira a incluí-lo em uma antologia de bissextos, por puro desejo de publicá-lo. ''Já desencavamos o Cardozo'', diz em carta, de 1949, a João Cabral.

Estes primeiros Poemas de Cardozo figuram entre as mais belas linhas escritas sobre a paisagem litorânea do Brasil. O que equivaleria dizer: entre as mais belas marinhas pintadas no Brasil ou em qualquer outro lugar do planeta. Não são instantâneos fotográficos, mas poemas de uma plasticidade interior que remetem, entre outros, para o apurado equilíbrio entre paisagem e persona de um William Carlos Williams - de quem Cardozo, que dominava mais de dez idiomas, foi tradutor ocasional.

Tais poemas conhecem uma linha de continuidade em Signo estrelado (1962). Também em trechos de seus diversos trabalhos para teatro. Entusiasta do que ele chama de ''poesia tipográfica'', chega a episódicas experimentações com poesia concreta por outras vias que não a dos concretistas paulistanos. E é, sem dúvida, o poeta que, no Brasil, melhor aproxima ciência e poesia, em livros como Trivium (1952-1970) e Arquitetura nascente e permanente - este lançado no corpo de suas Poesias completas (1971). O póstumo - e controversamente editado - Um livro aceso e nove canções sombrias (1981) acrescenta pouco à obra.

Joaquim Cardozo: contemporâneo do futuro é um livro instigante. Por abordar com assertividade e fineza questões como local/universal; mobilidade/tempo; sutileza/humor; ciência/poesia - aqui, numa excelente leitura crítica do poema longo (de Trivium) ''Visão do Último Trem Subindo ao Céu''.

Em 1971, Joaquim Cardozo, este espírito recatado e solitário - embora tenha amado mulheres diversas ao longo da vida - passa por episódio trágico. O Pavilhão de Exposições da Gameleira, em Belo Horizonte, que havia recebido cálculos estruturais seus, desaba, no entrecho de sua construção, matando 68 operários.

Condenado e, depois, absolvido pela Justiça - em processo complexo, até hoje ressumando polêmica - o certo é que Cardozo jamais se refez totalmente. Morreu em Olinda, sete anos depois, perto do mar de cores tropicais que tanto prezou em seus poemas: ''Se eu morresse agora, / Se eu morresse precisamente/ Neste momento,/ Duas boas lembranças levaria:/ A visão do mar do alto da Misericórdia de Olinda ao nascer do verão/ E a saudade de Josefa,/ a pequena namorada do meu amigo de Tramataia.''

Para este ano em que está prometida, pela Nova Aguilar, a obra completa de Cardozo, editada por Everardo Norões, o livro de Maria da Paz Dantas antecipa-se, em suplemento, com afiadas sugestões de leitura.



*Ruy Vasconcelos é professor de Letras e Sociologia da Universidade de Fortaleza
 



 


 

 

 

 

31/05/2005