Allan R. Banks (USA) - Hanna

Orlando Tejo

Continuação

 


 

 

Ensaios:

 

Poemas de Orlando Tejo:


 



 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

     
 
Wilson Martins

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

 

 

Orlando Tejo

e o agiota

 

 

Historiado pelo escritor LUIZ BERTO*

 

Era manhã de segunda-feira e Orlando Tejo invadiu minha sala num aperreio que não era de seu costume.

- Berto, tô encalacrado.

Não sei se vocês sabem, mas Orlando Tejo é o sujeito mais calmo e descansado desse mundo, incapaz de se aperrear até dentro de uma casa em chamas. Mas naquela manhã, o homem estava mais agoniado do que bacorinho em caçuá.

A tranqüilidade habitual, emoldurada pelas serenas baforadas no cachimbo, fora substituída por um avexamento que, francamente, deixou-me curioso. E largou o seu problema sem mais demoras:

- É o seguinte: o novo gerente da Caixa Econômica é meu leitor e se tornou meu amigo. Assumiu a agência e me deu um cheque especial na sexta-feira. Resultado: já estourei o limite em trinta mil cruzeiros neste fim-de-semana.

Conhecedor da total inabilidade de Orlando para gerir suas finanças, para mim não foi surpresa o estouro no limite do cheque especial. Surpreendente era a velocidade com que isso se dera. Recebera o cheque na sexta-feira e na segunda já estava pendurado. Em verdade, suas habilidades aritméticas limitavam-se à soma das mais alegres lembranças, à subtração de tristezas, à multiplicação da imensa legião de amigos e à divisão de uma ternura e de um lirismo que só mesmo pessoas encantadas como Tejo estão autorizadas a ter.

Expliquei-lhe que estava duro e não poderia ajudá-lo no momento. Estava sendo tão franco quanto, com a mesma franqueza, lhe arranjaria imediatamente a miserável quantia, caso a tivesse, para não vê-lo naquele sufoco. Funcionário público só vê a cor do dinheiro no fim do mês e, por infelicidade, estávamos ainda no início da segunda quinzena. Tentei explicar-lhe isso com tranqüilidade, mas ele parecia insensível a qualquer argumento.

- Mas eu não posso é ficar desmoralizado perante o gerente, que é meu conterrâneo da Paraíba e me deu o cheque especial em confiança, por amor aos meus escritos. Um admirador, em resumo. Vai ser muito chato…

Expliquei-lhe que pessoalmente não podia fazer nada. Mas lembrei-lhe que, como em toda boa repartição pública, a Câmara tinha o seu agiota de plantão para socorrer os desesperados naquelas precisões agoniosas. O anjo da guarda dos necessitados, acudidor de precisões prementes, tão injustamente malhado pelas pessoas gradas, mas capaz de salvar um vivente de um sufoco sem fazer fichas, preencher cadastros, telefonar para o SPC ou exigir promissórias registradas em cartório. E dei a indicação ao Tejo:

- É só você procurar o Canindé.

Meu amigo João Canindé Tolentino Ribeiro entrou nessa história como Pilatos entrou no Credo. Tão lascado quanto qualquer um de nós, apenas estabelecia o contato entre o agiota e os possíveis fregueses, não ganhando nada com isso, salvo o fato de se beneficiar com um juro mais baixo quando também precisasse de dinheiro. Orlando Tejo não sabia quem era Canindé, mas já tratou-o com uma familiaridade que era bem do seu estilo.

- Então ligue logo para esse filho-da-puta desse Canindé, e diga que eu preciso de trinta.

Liguei para Canindé e ele disse que só poderia dar a resposta de tarde. Estávamos ainda no começo da manhã. Tejo não gostou mas teve que se conformar e, logo após o almoço, já estava de novo na minha sala à espera de notícias. Francamente, nunca lhe vira tão agoniado.

- Ligue logo para esse filho de uma égua, pelo amor de Deus.

Canindé mandou dizer que, se o dinheiro saísse, só sairia no dia seguinte. terça-feira. Transmiti o recado ao Tejo e ele desesperou-se.

- Explique a esse filho-da-puta que desse jeito vai ser tarde demais. Os cheques que emiti devem entrar hoje à noite.

Desolado com o drama do meu amigo, acompanhei com o olhar a sua saída nervosa, pitando furiosamente o cachimbo e maldizendo a sorte. A aura de lirismo que marcava sempre sua figura estava seriamente arranhada pela agonia que transpirava dos seus poros. Pobre Tejo, necessitado de trinta neste vasto mundão de meu Deus e ninguém para acudi-lo…

No dia seguinte, quando cheguei à minha sala, já o encontrei de plantão, sorrindo, esperançoso.

- Acabei de me informar no banco: nenhum cheque entrou ainda. Ligue logo para esse miserável desse Canindé.

Liguei. Canindé informou que só à tarde. Transmiti a informação ao Tejo.

- Assim não dá! Esse filho-da-puta quer me matar.

Na primeira hora da tarde volta Tejo avexado.

- Ainda não entrou cheque nenhum. Ligue de novo.

Liguei e Canindé disse para ligar dai a meia hora. Transmiti a informação. Tejo deu uma puxada no cachimbo e caminhou um pouco pela sala sem falar nada. Ficou de costas para mim, olhando um ponto indefinido na parede em frente. Sentou-se numa poltrona.

E, então, baixou o santo: Tejo ficou calmo de repente, me pediu uma folha de papel e começou a rabiscar. Eu acompanhava com um rabo-de-olho e procurava não perturbar, pois sabia que ele estava em pleno processo de criação. A mão corria devagar pelo papel e, de vez em quando, ele fazia pequenas pausas como se estivesse conferindo o que já havia escrito. Estava tranqüilo e era outro homem, bem diferente daquele que há poucos instantes necessitava desesperadamente de trinta.

Levantou-se e me passou umas folhas naquela sua caligrafia miserável que eu já estava habituado a decifrar. A letra de Tejo, qual moderna Pedra da Roseta, exige as habilidades de um novo Champollion para trazê-la ao entendimento dos mortais comuns.

Comecei a ler e me dei conta da preciosidade que tinha em mãos. Aquilo, realmente, era uma obra de Tejo e ali estava o seu espírito paraibano, nordestino, poético, moleque, imprevisível por inteiro. Dar uma trégua ao aperreio para parir um negócio daqueles, só mesmo vindo dele.

Para se entender o acontecido, vale ressaltar que a história se passava na Câmara dos Deputados, cujo presidente, à época, era o Deputado Flávio Marcílio e que Delfim Netto era o então Ministro da Fazenda. Um tempo tão da porra que ninguém jamais será capaz de esquecer…

Vou transcrever do jeito que ele me deu.

 

LOUVAÇÃO A CANINDÉ

Estando sem um tostão
E me encontrando bem perto,
Fui procurar Luiz Berto
Para alguma solução.
Berto disse: “Meu irmão,
Eu também queria até
Fazer um querrequequé
Daquele que o diabo pinta
Para ver se arranco trinta
Do bolso de Canindé.

E toca a telefonar
E Canindé a correr,
Mas não pôde se esconder
E teve que tapear:
“Pela manhã não vai dar,
Porque de tarde é que é
Bom para a coisa dar pé.
Aguarde, portanto, amigo”.
Berto ficou de castigo
Esperando Canindé.

E eu que necessitava
Também da mesma quantia
Me fiei nessa franquia
Que Canindé propalava
Quando eu menos esperava
O safado, de má fé,
Filho de puta ralé,
Disse que hoje não tem nada…
Ah! uma foice amolada
No chifre de Canindé.

Eu já podia notar
E mudar de interesse
Que um cabra com um nome desse
Não poderia prestar.
Entretanto, vou esperar
Até amanhã com fé.
Se ele me deixar a pé,
Juro por Nossa Senhora:
Corto de pau uma tora
E vou matar Canindé.

O cabra fuma e não traga
Faz do crime o seu idílio!
Onde está Flávio Marcílio
Que não demite esta praga?
Ao menos dava-se a vaga
Pra um sujeito de fé,
Já que esse indivíduo é
Um tratante e delinqüente
Haja chumbo grosso e quente
No rabo de Canindé.

Por capricho do destino
De Satanás ou Deus Brama,
O bicho também se chama
Coisa e tal e Tolentino,
Doido, avarento e mofino,
Não conhece a Santa Sé,
Faz da cola o seu rapé,
Vive da desgraça alheia,
Devia estar na cadeia
Esse tal de Canindé.

Não sei como Luiz Berto
Este escritor inspirado,
Toma dinheiro emprestado
A um ladrão tão esperto,
Que representa um deserto
De trabalho, amor e fé,
Que anda de marcha ré
Pela estrada da virtude
E além de covarde e rude
Se assina por Canindé.

Antes quero outro “pacote”
Desemprego, moratória,
Ver Delfim contar história,
Comer carne de caçote,
Levar chumbo no cangote,
Me abraçar com jacaré,
Beber caldo de chulé,
Dar o rabo a marinheiro,
Do que tomar um cruzeiro
Emprestado a Canindé.

 

 

 

NOSSO AMIGO CANINDÉ

Um sujeito despeitado,
Desses de baixa maré,
Inventou que Canindé
É um canalha safado.
Eu fiquei preocupado
Com a informação ralé,
Porém não perdi a fé
Em quem merece louvores…
E haja palmas e haja flores
Na fronte de Canindé.

Tenho dito e sustentado
(Todo mundo sabe disso)
Que na Câmara, esse cortiço,
Há um cidadão honrado,
Pai de família extremado,
Homem de bem e de fé!
O Papa já disse até
Que há no torrão brasileiro
Padre Cícero em Juazeiro
E em Brasília, Canindé.

Sei que o Papa tem razão,
Mas ninguém quer saber disto.
Se já falaram de Cristo,
Que se dirá de um cristão
Porém a fofoca não
Atinge um homem de fé.
E se eu descobrir quem é,
Meto a mão no pé do ouvido
Do sem-vergonha enxerido
Que falar de Canindé.

Canindé - nome decente!
Tolentino - ô nome macho!
Ribeiro - lindo riacho
Que mata a sede da gente!
Honrado, amigo e valente,
Subiu da glória o sopé…
A Virgem de Nazaré
Já lhe envolveu com seu manto,
Por isso um caminho santo
Vai trilhando Canindé.

Canindé pra ser beato
Só falta mesmo a batina,
Pois tem vocação divina
Pureza, fé e recato!
Por isso ele é o retrato
Mais fiel de São José
E já se comenta até
Que Frei Damião Bozano
Sugeriu ao Vaticano
Canonizar Canindé.

Mas sabem por que razão
Já querem canonizá-lo?
É por causa de um estalo
Que recebeu nosso irmão
Lá nas margens do Jordão,
Ao lado de São Tomé,
Quando dava cafuné
Numa velhinha doente
E morreu a penitente
Nos braços de Canindé.

Nesse chão onde ele pisa,
Por ser grande patriota,
Se faz até de agiota
Pra ajudar a quem precisa.
Mas não comercializa
A sua alma de fé!
Jamais ganhou um café
Pelo dinheiro que empresta…
A caridade é uma festa
Para a alma de Canindé.

Santo Agostinho, dos santos
Foi o mais puro entre os ermos
Que consolava os enfermos
E lhes enxugava os prantos.
Obrava milagres tantos,
Pela pureza e a fé
Pois acreditava até
Em fala de passarinho.
Mas sabem? Santo Agostinho
É pinto pra Canindé.

      

 

   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal do Conto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

  

 

 

 

Moziel T. Monk

 

O Surreal Zé Limeira

 

“Eu me chamo Zé Limeira
Da Paraíba falada,
Cantando nas Escritura,
Saudando o pai da coalhada,
A lua branca alumia,
Jesus, José e Maria,
Três anjos na farinhada.”

 

O repente, a cantoria e a literatura de cordel são tradições que remontam da Idade Média e que teria sido trazida ao Brasil pelos portugueses lá pelo século XIX, se popularizando no Nordeste, mas especificamente nos Estados da Paraíba, Pernambuco e Ceará. Muitos cantadores se tornaram famosos, mas um deles se destacou por seu comportamento esdrúxulo, um tropicalista pré-cambriano entre os tradicionais cantadores. Eis um pouco da história de Zé Limeira, o poeta do absurdo.

 

O senhor dos anéis do sertão

Quem viu Zé Limeira ao vivo e a cores testemunhou uma figura ímpar em comportamento e aparência. Usava diversos anéis nos dedos, uma bengala de aroeira, óculos escuros estilo “ray-ban” e um lenço colorido em volta do pescoço. Carregava sempre seu violão adornado com dezenas de fitas multicores, costumava beber “zinebra”, que carregava em seu matulão. Percorria as estradas do sertão a pé, morria de medo de trem – o “embuá de ferro” – e o único veículo no qual subia era carro de boi, que era “abençoado por Deus”. Era de uma excentricidade digna de um astro de rock.

Todavia, o que realmente destacava Zé Limeira dos demais cantadores que freqüentavam feiras e festas era, além de uma voz poderosa, o seu estilo surreal e anárquico, que davam nó em qualquer violeiro que pelejasse com ele, e divertia os presentes. Em suas rimas misturava personagens e cenários bíblicos e históricos com os elementos do sertão, inventando palavras e termos. Natural do município de Teixeira, no sertão da Paraíba, era um verdadeiro pop-star do Nordeste, popular entre os humildes e poderosos, que se divertiam nas pelejas entre ele e o infeliz que o encarasse, já que normalmente o pobre ficava eclipsado pela língua felina e os improvisos malucos do cantador. Ele afirmava que era necessário o fôlego de sete gatos para acompanhá-lo, tanto na cantoria quanto no caminhar – consta que ele caminhava sessenta quilômetros por dia, embreado na caatinga.

 

O biógrafo do poeta

Orlando Tejo, poeta, advogado e jornalista, natural de Campina Grande, testemunhou ainda jovem muitos dos desafios do qual Limeira participou. Tejo chegou a registrar algumas dessas pelejas em fita, porém todo e qualquer registro feito por ele ou por seus colegas acabou se perdendo, e atualmente não existem gravações da voz de Zé Limeira. Mesmo assim, ele memorizou muito do que ouviu e transcreveu para o papel, garantindo a imortalidade do bardo sertanejo. Seu livro “Zé Limeira – Poeta do Absurdo” é editado desde o início dos anos oitenta.

 

Algumas estrofes

No livro de Orlando Tejo, ele relata como conheceu Zé Limeira e alguns causos que testemunhou ou que colheu de amigos que testemunharam, inclusive com algumas das cantorias.  Consta, por exemplo, que o governador de Pernambuco, Agamenon Magalhães, promovera no palácio do governo um encontro de repentistas, entre eles os famosos irmãos Batista. Eis que chega ao meio da festa Zé Limeira, que é bem recebido por todos. Ficou famosa a estrofe dedicada à primeira dama, após Otacílio Batista oferecer um brinde a ela em versos:

“Eu cantando pra Dona Antonieta
A muié do Doutor Agamenon,
Fico como o Reis Magro do Sion,
Me coçando na mesma tabuleta.
Eu aqui vou rasgando a caderneta
De Otacílio Batista Patriota…
Doutor, como eu não tenho um brinde em nota,
Que possa oferecer à sua esposa.
Dou-lhe um quilo de merda de raposa
Numa casca de cana piojota.”

 

Os vultos históricos perambulavam pelo sertão imaginário de Limeira, despidos de qualquer honraria ou reverencia.

O velho Tomé de Souza
Governador da Bahia
Casou-se no mesmo dia
Passou a pica na esposa
Ele fez que nem raposa
Comeu na frente e atrás
E passou pelo caís
Onde o navio trafega
Comeu o padre Nobrega
E os tempos não voltam mais

Napoleão era um
Bom capitão de navio
Sofria de tosse braba
No tempo que era sadio,
Foi poeta e demagogo
Numa coivara de fogo
Morreu tremendo de frio.

Pedro Álvares Cabral
inventor do telefone
começou tocar trombone
na Volta de Zé Leal
Mas como tocava mal
arranjou dois instrumento
daí chegou um sargento
querendo enrabar os três
Quem tem razão é o freguês
diz o Novo Testamento”

Frei Henrique de Coimbra
Sacerdote sem preguiça
Rezou a primeira missa
Perto de uma cacimba
Um índio passou-lhe a pimba
Ele não quis aceitar
E hoje vive a chorar
Embaixo de um pé de jureme
O bom pescador não teme
As profundezas do mar

Getúlio Vargas morreu
Foi com saudade da esposa,
Lampião inda tá vivo
Morando perto de Sousa
Por detrás do sete-estrelo
tem um casal de raposa.

No tempo do Padre Eterno
Getúlio já governava
Plantava feijão e fava
Quando tinha bom inverno
Naquele tempo moderno
São João viajou pra cá,
Dom Pedro correu pra Iá,
Escanchado num tratô…
Canta, canta, cantadô
Que seu destino é cantá.

 

Já Jesus Cristo, a Virgem Maria e outros do livro sagrado também foram alvos do iconoclasta poeta. Segue alguns exemplos

“Saíram lá de Belém
Cristo e Maria José,
Passaram por Nazaré,
Foram Betelelém,
Chupô cana num engem,
Pediu arrancho num brejo,
De noite armuçou um tejo
Lá perto de Piancó,
Na sexta-feira malhô
Foi que Judas vendeu Jésus!”

“Jesus saiu de Belém,
Viajando pra o Egito,
No seu jumento bonito,
Com uma carga de xerém,
Mais tarde pegou um trem,
Nossa Senhora castiça,
De noite Ele rezou Missa
Na casa dum fogueteiro,
Gritava um pai-de-chiqueiro:
Viva o Chefe de Puliça!”

“Quando Jesus veio ao mundo
Foi só pra fazê justiça
Com treze ano de idade
Discutiu com a doutoriça,
Com trinta ano depois,
Sentou praça na puliça.”

“Jesus nasceu em Belém
conseguiu sair dali
passou por Tamataí
por Guarabira também
Nessa viagem de trem
foi parar num entrocamento
Não encontrando aposento
dormiu na casa de um cabo
jantou cuscus com quiabo
diz o Novo Testamento”

“São Pedro, na sacristia,
Batizou Agamenon,
Jesus entrou em Belém
Proibindo o califom,
Montado na sua idéia,
Nas ruas da Galiléia
Tocou viola e pistom”.

A Maldição de Zé Limeira

O Romance da Pavoa Devoradora era uma narrativa pesada sobre as desgraças trazidas pela ave mítica do título, que com seu bico de 36 léguas trousse e traria desgraça ao mundo. Não há registro escrito ou gravado de tal poema, cuja declamação alcançava hora e meia, e deixaria “O Corvo” de Edgar Allan Poe, no chinelo. Havia um tabu para cantar tanta desgraceira: nunca antes de meia-noite, e sempre de olhos fechados. Quem era mais supersticioso ou impressionável acabava abandonando o recinto.  Reza a lenda que, após muita insistência, Zé Limeira quebrara ambos os tabus em uma noite de cantoria na sua própria casa, em Teixeira no ano de 1954, e que pouco depois morre.

Falando em tabus e maldições, Existe uma “maldição” em torno do livro de Orlando Tejo, no qual quem adquire o livro acaba não ficando com ele muito tempo. Ou você empresta e não devolvem ou simplesmente ele “some” de sua estante. Até o autor já foi vítima diversas vezes dessa “maldição”. Eu mesmo já perdi meu exemplar desse livro, que estava nas mãos de meu irmão (que por sua vez o perdeu a um amigo).

Zé Limeira nas Artes

Há quem diga que Zé Limeira é apenas uma lenda inventada por cantadores e poetas, e que tal figura nunca existiu. Como não existem fotos e nem registros gravados, o ceticismo de muitos é forte, e acusam o pobre do Orlando Tejo de ter criado essa figura tão inverossímil.

Mesmo lenda ou fato, Zé Limeira se tornou um ícone da nordestinidade, e outros cantadores reverenciam o mesmo e o transformam em personagem de literatura de cordel, inclusive colocando-o em desafio com Zé Ramalho. Aliás, Zé Ramalho bebeu e bebe na fonte da poesia sertaneja desde os seus primeiros discos, e em Força Verde há uma faixa intitulada Visões de Zé Limeira sobre o final do século XX. O Quinteto Violado lançou em 1979 o disco Pilogamia do Baião, cujo título é inspirado em um dos poemas de Zé Limeira. Mais recentemente, o grupo pernambucano Mestre Ambrósio grava Se Zé Limeira Cantasse Maracatu no disco Fuá na Casa de Cabral. A banda de forró paraibana As Bastianas já executou em shows a música Zé Limeira.com. Mesmo com a cultura popular nordestina em declínio, a imagem

Mais Zé Limeira

Praticamente a única fonte de informação sobre Zé Limeira é o livro de Orlando Tejo, que não é das coisas mais fáceis de encontrar. Na página do autor há dois capítulos em PDF para download. Inclusive um desses capítulos é um dos melhores do livro, no qual Orlando Tejo critica a chamada poesia moderna e os movimentos de vanguarda, usando de muito bom humor e comparando com a poesia de Limeira. Mas caso consiga o livro, muito cuidado com a maldição…

 

   

 

 

 

 

 

  

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

  

 

 
 

Orlando Tejo
 


 

Conceição 63

 

 

Rua da conceição, sessenta e três

(a artéria tem o ar de um cais comprido)

aqui, anos sem fim tenho vivido

buscando a infância azul que se desfez.

 

Talvez seja isso um sonho, mas talvez

este meu velho abrigo tenha sido

da mesma argila minha construído,

porque é a mesma a nossa palidez

 

Ele a mim se assemelha: é ermo e triste.

no jardim, no quintal, no chão, no teto

em tudo a mesma semelhança existe.

 

No tempo, entanto, aos céleres arrancos,

o seu telhado vai ficando preto

e os meus cabelos vão ficando brancos.

 

 
 

 

Impasse

 

 

 

Se ficar onde estou não faço nada,

Se sair por aí corro perigo,

Se me calo minhalma é sufocada,

Se disser o que sei faço inimigo...

 

Se pensar vou trair a madrugada

E se sonho de mais vem o castigo,

Se quiser subo até o fim de escada,

Mas precisar brigar, e eu não brigo!

 

Se cantar atropelo o contracanto,

Se não canto maltrato o coração,

Se me faço sofrer me desencanto,

 

Se reprimo o ideal perco a razão,

Se perder a razão, resta-me o pranto

E meu pranto não faz uma canção.

 

 

 

 
 

 

Soneto dos dedos que falam

 

Que importa que foguetes cruzem marte

E bombas de hidrogênio acabem tudo,

Se aos meus dedos, teus dedos de veludo

Ensinam que o amor é também arte?

 

Não desejo mais nada além de amar-te

E em êxtase viver, absorto e mudo,

Sorvendo da ternura o conteúdo

Que antes te buscava em toda parte!

 

Esses dedos que afago entre meus dedos,

Que acaricio a desvendar segredos

De amor nestes momentos que nos prendem,

 

Têm qualquer coisa que escraviza e doma,

Porque teus dedos falam num idioma

Que só mesmo meus dedos compreendem!

 

 

 
 
 

 

 

 
Cristiane França

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Edna Menezes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

  

 

 
 

Bráulio Tavares
 


 

A lenda de Zé Limeira (19.10.2003)

  

Metade do mundo ouviu falar em Zé Limeira, o poeta do absurdo. Até nos círculos extra-cantoria, de pessoas completamente leigas sobre o assunto, o nome dele é o mais conhecido. Mesmo aquele pessoal distante, que ouviu o galo cantar mas não sabe onde, lembra vagamente, quando se fala no assunto “cantadores do Nordeste”, da figura desse poeta maluco que dizia coisas sem pé nem cabeça. Talvez ele e o Cego Aderaldo sejam os personagens mais conhecidos do público em geral, dessa turma para quem os nomes de Pinto do Monteiro ou Romano do Teixeira nada dizem.

Que Zé Limeira existiu, é fora de qualquer dúvida. Como personagem, no entanto, ele brotou no livro de Orlando Tejo, Zé Limeira, o Poeta do Absurdo, que já circula pelo Brasil há uns bom 30 anos. O livro de Tejo, que tem capítulos brilhantes descrevendo cantoria-de-feira, cantoria-de-cabaré, traz uma quantidade imensa de versos improvisados por Limeira e seus parceiros. A quantidade é muito grande, para uma época em que era mais difícil conseguir um gravador do que um gerador-de-luz. Surgiu então a lenda de que muitos daqueles versos atribuídos a Limeira seriam invenção do próprio Tejo e de seus comparsas do Café São Braz em Campina e do Ponto de Cem Réis em João Pessoa. Contra esta versão, pesava o fato inconteste de que Limeira existiu de fato, são dezenas as testemunhas de suas cantorias e da maioria dos seus versos.

Fonte histórica à parte, a peça de José Bezerra O mundo louco do poeta Zé Limeira ajudou a encorpar o mito do poeta junto a um público jovem, de classe média, sem muita aproximação com a cantoria. Artigos publicados em jornais e revistas culturais do Rio e de São Paulo foram cristalizando a imagem do negão de lenço vermelho no pescoço, que só andava a pé, inventava palavras sem pé nem cabeça, misturava sem a menor cerimônia personagens da política brasileira e da Bíblia, e morreu durante uma cantoria porque ousou cantar a balada da “Pavoa Devoradora”.

Ocorreu com Zé Limeira uma coisa que vemos ocorrer o tempo inteiro diante dos nossos olhos. Um indivíduo encarna durante sua vida um tipo, um personagem. Quando ele morre, toda história que possa ser atribuída a esse personagem passa a ser atribuída a ele. É de conhecimento geral que grande parte dos crimes atribuídos a Lampião não foram cometidos por ele. No mundo pouco nítido da tradição oral, onde se superpõem versões conflitantes, incompletas, fantasiosas, equivocadas, um personagem acaba agregando a si próprio numerosos episódios alheios. Depois da morte, então, nem se fala. “Só pode ter sido coisa de Fulano!” afirma alguém. E como num passe de mágica o crime anônimo é atribuído a um bandido famoso, o milagre é creditado a Frei Damião, a frase espirituosa a Oto Lara Resende, o verso maluco a Zé Limeira. Os personagens que encarnam viram ímãs, atraindo para si tudo que corresponde àquele perfil. “Só pode ser coisa de Zé Limeira!”. E a obra póstuma do nego vai crescendo.

 

 
 

 

 

 
Elizabeth Marinheiro

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Edna Menezes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

3.9.2009