Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

Luis Dolhnikoff


 

A MÁQUINA NO MUNDO


I

uma coisa
é como a mente funciona

outra
como funciona a linguagem

uma terceira
como mente e linguagem interagem

a quarta
como interagem o mundo e a linguagem

como a mente e o mundo interagem
são os sentidos

a mente de um homem sem sentidos
não interage com o mundo

um homem sem sentidos
não é somente quem desacordado
com sua mente desligada
mas também com a mente desconectada
do corpo

é verossímil manter vivo
um cérebro isolado
desde que alimentado
por um circulador sangüíneo

o horror mais límpido

(o inferno não são os outros
sou eu

eles, se tampouco o paraíso
são portanto o purgatório)

a mente é o que cérebro sente
por si mesmo

mas não em si mesmo:
o cérebro em si nada sente

(cérebros são operados
sem anestésicos)

quando o corpo sente sem sentir
como a dor de um membro amputado
sente uma dor fantasma

o cérebro em si não sente nada:
a mente é a dor fantasma
que o cérebro deveras sente



II

a mente acordada é ela no mundo
(não como um homem no jardim
e sim como um homem à janela)

dormir não é desligar a mente
mas o corpo

desligar o corpo é apagar o mundo

isolar a mente é indistinguir
entre estar acordado e dormindo

dormir é despertar a mente

a mente desperta, isto é
liberta do corpo
nada sabe do mundo

a mente desperta sabe do sonho
e do horror
(o sonho é uma forma de dor)

apagar a mente e o mundo é morrer

apagar a mente é vegetar

vegetais são corpos sem cérebro
(o mesmo
que cérebros sem mente
por exemplo, no coma)


III

como sonha
o cérebro assim que ganha o corpo
logo que o corpo
ganha um cérebro?

o cérebro imerso no corpo
imerso no útero
confunde o útero com o corpo
e o corpo consigo mesmo:
cérebro, corpo e útero
são um
e são um sonho

como sonha o cérebro nascituro?

como sonha o cérebro nascituro
sem corpo?

o cérebro arrancado
não somente do útero
mas do útero do corpo

o cérebro nu
no mundo


não sonha
pois seu sonho era o corpo
e o útero

não pensa
pois pensar era sentir o corpo
e o útero

o cérebro nu
e despido de memórias


IV

o que diferencia
pensar e sonhar?

sonhar é pensar sem o corpo
porém com a memória do corpo

(memórias são sonhos despertos
de acordo com o corpo

sonhos são memórias despertas
pelo sono do corpo)

sonhar com o corpo é pensar

sonhar é uma forma de pensar


V

o corpo sente o mundo
a mente, o corpo

o que o corpo sente e não é o corpo
é o mundo

a mente sente o corpo no mundo

o corpo sem mente não sabe que sente
(a mente sem corpo não sabe o que sente)

o corpo no vácuo sente a si mesmo

a mente sem corpo sente em si mesma

o que a mente sente em si mesma é sonho
e horror

(o que distingue o sonho do horror
é o sonho não saber ser sonho
e o horror saber ser horror:
o horror é o sonho que sabe não ser sonho)

(pesadelos, sonhos que crêem ser o horror)



VI

o corpo no vácuo
não iguala o cérebro no vidro

o cérebro no vidro não sente nada
e sente sentir nada

é cego, surdo e solto
de tudo:
não sente o peso
ou o tato

o cérebro no vidro sente o nada


VII

o cérebro no corpo
estando o corpo no vácuo
sente o corpo
que sente a si mesmo

o cérebro no corpo
estando o corpo no mundo
sente o corpo sentindo o mundo

o corpo no mundo
é o mundo que a mente sente
(como um homem à janela
quando aberta)

no vazio do mundo
o mundo do corpo é o corpo:
numa cela, é a cela:
sob a noite, é a noite
e o chão e o vento
e as estrelas e a distância
e o medo

a liberdade
não é a falta de anteparos
porém a possibilidade
de derrubar paredes
e levantar muros

mundos menores não são prisões maiores

mundos maiores são prisões menores

um mundo encolhido
não é necessariamente pequeno

um mundo ampliado é necessariamente largo

um mundo escolhido é possivelmente adequado



VIII

o cérebro sem corpo não escolhe o mundo

o corpo sem cérebro não escolhe nada

o cérebro sem corpo não vive: sonha

o corpo sem cérebro não vive: vegeta

(vegetais vivem, mas como vegetais)


IX

sentir não é viver

sentir não é pensar

sentir é sentir

pensar não é pensar

pensar é pensar e sentir

o que em mim pensa está sentindo

pensar sem sentir é sonhar

sentir sem pensar é não sentir:
na anestesia
não é o corpo que não sente
mas a mente
(anestésicos agem no cérebro)

pensar é sentir o corpo no mundo
e as palavras na mente

pensar as palavras no mundo
é filosofar



Este poema integra o volume inédito Sobre Sísifo, a sair, este ano, pela Ateliê Editorial.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

São Jerônimo, de Caravaggio

 

Luis Dolhnikoff


 

Esperança, bosta e ovos


“ovo caipira?”
ouço no mercado:
“significa
ovo fecundado”

ovo de galinheiro de fato
com galinhas, galos
caipiras e pintinhos

pintinhos de galos
que os põem nas galinhas
que então põem ovos caipiras
com pintinhos dentro

os demais
são industriais:
ovos sem ovos dentro

empty dumpts

como o velho jeca tatu
sentado calado
ao lado da estrada
enquanto passa
outro jeca
levado num jegue
e comendo jaca
com carne de tatu

portanto
ou por tão pouco
os caipiras põem
punham
seus pintinhos
até os ovos
dentro das galinhas

pois não mais havia
escravas
as galinhas d’angola
d’antanho

metade pondo
metade tomando

um país todo
pela metade
pelo meio
das pernas

cozido entre curras
e cuscuz de galinha

mucama é para mugir na cama
cozinheira para cuzinhá
pois o cu sinhá não dá

cadinho de culturas
mas com caldo de galinha

pois coitados dos fodidos

pois fodidos, os coitados

os mesmos
sempre
a mesma
coisa:
coito é foda

essa vida

que nunca muda
(pois o mundo
divide-se em duas tribos:
os metíncolas
e os levíncolas
segundo ouvi
de um levíncola)
como os ovos

de codorna
e então noto
uma diferença:
têm mais gema
proporcionalmente

que o ovo de serpente

tal o partido nazista

ou o ovo da serpente
era a fome de weimar?

a fome de weimar
foi o ovo do partido nazista
que foi o ovo da serpente

e o ovo da fome de weimar
foi a fome de versalhes:
comeram o pão
os brioches e os ovos:
mastiguem as migalhas

verdade que os hindus
comem vento
há muito tempo
e nem por isso
chocaram o nazismo

por causa do carma
que os faz ir com calma

se você está fodido
é porque fodeu alguém
em outra carne

já para os alemães
se estão fodidos
alguém os está fodendo

por exemplo
um povo pequeno
sem cristo nem exército
depois da omelete
que os aliados lhes fizeram
na primeira guerra

depois que a ela
os alemães se atiraram
no pé
mirando a galinha dos ovos de ouro
do quintal da europa

chiqueiro de trincheiras

ovos estrelados
com porcos trinchados

então a grande depressão
e uma frustração enorme

enorme
a fome

de ascensão

vôo de águia
über alles
fome de urubu

afinal já comiam tudo que se pode
em 39
quando tentaram outra vez a sorte
quando tentaram outra vez a morte:
muito pão
muito porco
e muitos ovos

à chacun
son boche


ovos que vinham
vivos de outros ovos

de outros mortos

o ovo que o pássaro
futuro
dentro do ovo porá
quando fora

quando não gorado
como agora

um ovo
que é então um o
com um v no meio
– o das asas –
com outro o
dentro, logo
logo à frente
no tempo:
Ovo

o maior
e o menor

o mega
e o micron

e o alfa do recomeço no meio:
remeio

o fim e o começo no meio

então o que veio
antes não foi nem o ovo
nem a galinha
porque vieram ambos
ab ovo

não o ovo
de galinha ao menos

pois o ovo
todas as aves
o herdaram dos répteis
de que descenderam

os répteis
dos anfíbios
os anfíbios
dos peixes
os peixes

e para trás
emerge-se do ovo
da biogênese
para a gênese inorgânica da vida

e para trás
do ovo de tudo
para a galinha do nada

que dele não nasceu
pois que o botou

chocando o negro sáurio
do caos

ao menos de um ovo
de galinha
sempre vem um pintinho

e se fora
de gansa, de andorinha
de pata ou de pomba?

da pomba vem o ovo
via de regra
o ovo delas
o ovinho delas
o óvulo
o ovulozinho delas
e é para a pomba delas
que atiramos nossos ovos
em homenagem
em ovação

nossos ovos
com um pintinho no meio

via de regra
é boceta
disse alguém
a um sujeito que
via de regra
usava a expressão

tinha culhões
como se diz
ou colhões
como se escreve

culhões começa com cu
e os colhões começam no cu
ou quase

mas colhões tem dois oo
como os colhões
têm dois ovos

fossem quantos
ou como feitos
ela jamais os quer
de manhã cedo
como os americanos

caviar, ovo de peixe
como os suecos
muito menos

mesmo os ovos com açúcar
em meio a coisas inúmeras
do voraz desjejum alemão

além de pão
e de uma palavra meiga
muita manteiga
como os holandeses

como as holandesas
sua pele branca
como leite holandês

ou brasileiro
branco como leite holandês

porém mais ralo
e mais raro

parco para poucos

porque se mistura
com mijo de vaca
ou água da chuva

leite ralo que vem com mijo
vira urina e vai pelo ralo

fala-se mesmo em formol
o que não há de ser
conforme confirmam
os coliformes fecais
que, aliás, são secos

mas seria melhor
para manter a forma

conter a deformação

do leite e da carne

da carne leitosa dela

por isso não se deve comer
uma shiksa?

é o que me dizia
uma tia
com outras palavras
certos olhares
e muita sotaque

não é nada kasherr
misturrarr leite e carrne

mas se já vêm misturrados?

milkshaked
como as americanas

brancas
como as holandesas

falta de sol
leite em excesso

porque têm peitos grandes
as que ordenham
e as que se ordenham

a produtividade leitífera
do hemisfério norte
é de fato exuberante

principalmente nos países baixos

tudo geográfico
geológico
geogênico

carne, gel de géa

da gema da geena

geléia de terra
de onde viemos
e para onde vai

goela abaixo:
de morango
a que devora
como outros devoram ovos

mucosa cor de geléia de morango

de mamilo
que dá leite branco

de boca mucosa
que bebe leite
e come geléia de

leite branco como os dentes dela

nas gengivas cor de cereja dela

dentes que saem da carne
como a carne da terra
e comem carne e geléia
como a terra os há de

como a carne gestando um dente
geram carne e dentes no seu ventre

dentes para quem tem fome

ainda que poucos os dentes
para tanta fome

ainda que tantos os ovos

pois todos os animais os põem

uns poucos
os põem para dentro
como os mamíferos
incluindo
os marsupiais

a maioria, porém
os põe para fora
como as aves
os répteis
os anfíbios
os peixes
e os moluscos

muitos
sequer se acercam do parceiro
com quem então não se fundem
nem por um segundo

quem se funde
são os ovos
na mar mais profundo
no fundo de um poço
na poça mais rasa

mesmo se jamais se possa
da mesma forma
que todos põem ovos
chocar senão moluscos

os moluscos
que são os fetos
dentro dos ovos
como um molusco adulto
dentro da casca

dentro da casca da casa:
bebês são moles como moluscos
molhados como moluscos
inermes como moluscos
ao vir à luz baça
de seu quartinho decorado
ou à luz fosca
de seu cantinho descorado

não fora silenciosa
e amorfa
como um molusco
diria, quiçá
a maioria
poder-se dividir a casca
e permanecer
ao menos parecer
um
indivíduo

porém não era isso
que pareciam
querer

mas o calor informe
uniformemente
envolvente
portanto protetor
de seu próprio grande gastrópode
que logo logram germinar
posto haver um parceiro disposto
à sua criação
por fusão

os homens, então
molemente se emasculam
como certos quelicerados
que perdem o pinto
enquanto copulam

como se o seu espírito
que em algum instante
pretendera estender-se
até onde seus olhos
sua imaginação ou vontade
alcançassem
se encolhesse de repente
como os olhos dos caracóis de jardim
ao serem tocados
com um graveto
já não crendo
em sua ou em qualquer grandeza
cujo vislumbre não fora
agora, o eco inominado
e inconsciente
ainda que assim pressentido
do passado da raça
ao tempo em que seus antepassados
eram iniciados
em ritos de sangue
e medo
nos dias de medo e sangue
porém um hesitante
êxito juvenil
excitante profissão
de hormônios em profusão
que logo deixavam
leves e aliviados
atrás como um molusco
larga o próprio rastro

então encolhidos
julgam-se mais sólidos
mais ajustados
a si mesmos
e mesmo mais justos
consigo e com o mundo
mais adequados
e mais concretos
com desejos mais concretos
e mais adequados
ainda que mínimos
minuciosos, domésticos
a serem imediata
e diariamente satisfeitos

ao que, diários e satisfeitos
consagram-se, alheios a tudo
atentos a tudo
principalmente ao próprio envelhecimento
e administrando seu tempo
e sua casa
com o mesmo zelo
e tanta determinação
com que administrariam um império
acaso o houvessem conquistado

pois todos trabalham
ou são desempregados
ou aposentados

fora os que vivem de renda
ou de renda-se

fora os que têm certeza
da completa incompatibilidade
entre como ganham a vida
e como têm gana de não a perder
atrás de balcões de farmácia
guaritas de banco
bancas de fruta
bancos de fábrica
bancando outros por um salário
ninguém sabe
ao certo a profundidade
de sua relação com seu meio
de ganhá-la e perdê-la

vida que, por acaso
prefeririam comprar a prazo

porém não parecem assim preocupados

pois uma vez num caminho
melhor mesmo segui-lo
impassível como um molusco
até o mais longe possível
para não perder o trecho atravessado
e o tempo transcorrido

havia infinitos caminhos
todos sabiam

mas não eram todos finitos?

não seriam, então, talvez
todos igualmente estreitos?

e não eram, ao fim
sempre o mesmo
rígido traçado
da necessidade
de escolher um
e excluir os outros
incluir um
e esquecer todos?

logo
consulte logo
nosso catálogo:
ele é nosso
todo nosso
de nós que estamos aqui
e agora

e é agora ou nunca

tudo está em liquidação
(à exceção
talvez, dos ovos
bem mais baratos
quando de galinheiros de fato)
e em liquefação

portanto, meu caro
é não perder tempo
antes que o tempo
talvez o dinheiro
escape como um ovo quebrado
por entre os dedos
ou um molusco
em meio ao lodo escuro


Este poema integra o volume inédito Sobre Sísifo, a sair, este ano, pela Ateliê Editorial.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sandro Botticelli, Saint Augustine, Ognissanti's Church, Firenze

 

Luis Dolhnikoff


 

Epistemologia da pesca


líquidos
os peixes
no vidro mole do mar

remotamente perto
a areia dos meus pés
no vidro moído da praia

e duas hipálages:
peixes não são líquidos
ou meus pés silício

mas carbono
e silêncio
moldados em sólidos macios

que solidez, porém
molda os insólitos vazios
de que os átomos são repletos

entre a nulidade do núcleo
e a distância astronômica
de sua névoa de elétrons?

mas se peixes não são líquidos
há, apesar dos vazios
solidez e, talvez, verdade

(se não a solidez da verdade
a verdade da solidez
dos peixes)

nada, entretanto, é sólido
por culpa, ou do capitalismo
("tudo se desmancha no ar...")

ou do dicionário
em que é sinônimo
(um outro nome) de maciço

e sólido não é isso:
pois um líquido
denso como o chumbo

derretendo
não parece menos
cheio de si mesmo

por outro lado
(ou pelo mesmo: de fora
para dentro)

não há sólidos
que não sejam penetráveis
por alguma radiação


(os transparentes são
transpassáveis pela luz:
sólida nudez)

raios
nas pequenas noites vazias
dos átomos

porém uma pedra
é impenetrável
por outra pedra

pelas fortes correntes
elétricas entre
as nuvens de elétrons

uma rede
de pesca talvez contenha
um bom modelo bidimensional:

a rede é um entrelaço
de nós e de fios
entre os nós

como os peixes
de átomos
e interações entre eles

uma linha
transversal a transpassa
como as ondas

eletromagnéticas
a água
e os peixes

duas redes abertas
uma sobre
a outra

não são, porém, permeáveis
apesar de feitas
na maior parte de vazios:

redes
não são penetráveis
por redes

a solidez
se impenetrabilidade mútua
entre redes íntegras

é um fato
palpável como um peixe
ou seja, uma verdade:

existe a solidez
apesar dos vazios
que a preenchem


daí ser prenhe
de sentido
falar em solidez, em peixes

e na impenetrabilidade
mas não na inexistência
da verdade

deus
diria um pescador
de homens e de sua dor

rede vazia
se não de pescarias
de si mesma

eu replicaria
não fora para ouvidos
de mercadejador:

cerrados
nós górdios que se cortam e
se desfazem

ou não se cortam e
se desfazem
em finas linhas finitas

a rede
a verdade
a impenetrabilidade


Este poema integra o volume inédito Sobre Sísifo, a sair, este ano, pela Ateliê Editorial.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Luis Dolhnikoff


 

O maior espetáculo da terra


nossa imensa capacidade
de fazer da natureza
mais, muito mais do que a mesma natureza
fez de nós e de si mesma
criando a física e o cinema
capas de chuva e cidades
poemas, pontes, sobremesas
dentaduras, cuecas, epistemas
religiões, canetas, multidões
sonhos, luas, canções
é uma questão de treino

estranho, a princípio, o ser treinável
se a natureza cria apenas
o mínimo necessário

logo, o necessário, no mínimo:
porque, sem consciência
ciência ou projeto
desenha certo
por traços tortos

uma foca
não foi feita para brincar com bolas
futuras
nem um urso
para percorrer percursos curvos
de bicicleta
um homem para ser atleta
colecionador de selos ou poeta

porém um urso
tendo aprendido a fazer novo uso
e delicado
de cada enorme pata
deixou de ser um urso
para ser um atleta?

um poeta?

filho dos deuses
um homem que coleciona selos?

um urso numa bicicleta
difere de um urso na floresta
pela bicicleta, não pelo urso

que pode aprender seu uso
como um homem seu desenho

tudo feito
(todo feito
e fracasso)
por longuíssima tentativa
angustiantes erros
e alguma necessidade
como um urso ameaçado
pela dor, o medo e o treinador

urso que apesar de tudo
eventualmente ainda cai
da mais bela bicicleta
sobre o chão duro

como cai no escuro
na ruína ou na barbárie
a civilização mais complexa


Este poema integra o volume inédito Sobre Sísifo, a sair, este ano, pela Ateliê Editorial.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

Luis Dolhnikoff


 

Poema abstrato


a calçada era larga
estreitas as possibilidades
não de aproximar-me dela
mas de afastar-me
da janela
em que não a procuro
pois que a encontro
toda tarde, perdida
a esperança e a página
que lia até me distrair
por uma idéia, não fixa
mas recorrente
como mosquitos
em tarde de verão

fechar a janela
pode me livrar dos mosquitos
e da solar imagem dela
mas não da mosca da idéia
de que não me salva a janela aberta

como traduzir
ou seja, substituir
a beleza
se não por outro símbolo
– uma foto, talvez
da minha vizinha –
incapaz de sê-la
em si mesma
ou por algo empírico
incapaz de ser símbolo
– a minha vizinha
em si mesma?

mais estreitas
as possibilidades
do que o claustro do meu quarto
onde dou de cara
na concreta intransponibilidade
dos substantivos abstratos

no sentido contrário
dos transitáveis concretos
que percorrem todo o trajeto
tripartido da referência:
nome
tradução
coisa

mosca
um desenho do inseto
um espécime

porém possibilidades
reais são traduzíveis
em atos que são atos
não possibilidades

abstrahere:
arranc ar
afastar
se pa rar

separar
afastar
arrancar
letras não é difícil
mas como registrar
a separação
o afastamento
ou a distância
em si?

substantivos abstratos
nada percorrem do traçado
tripartido da referência
– nome, tradução, coisa –
pois referem coisas
não irreais mas
intransitivas

portanto param
já na tradução para
outro símbolo:
ao que se referem
jamais fere os sentidos

o ciúme
e seu coice
existem
(e ferem:
mas não os sentidos
– fora o da realidade)
porém não existem
traduções possíveis

ao contrário
de outros cavalos
tantas vezes imaginados
como pégasus
e suas asas azuis
ou o unicórnio
e seu corno único

o unicórnio
e seu corno único
acentuadamente à testa
que existe:
unicórnio

que existe
concretude nesse nome
atesta-o ser traduzível
por outro símbolo:



substantivos concretos
percorrem todo o trajeto
tripartido da referência
– nome, tradução, coisa –
quando nomeiam coisas reais

substantivos concretos
que não percorrem todo o trajeto
partido da referência
– quimera, memória, idéia –
denotam coisas irreais

então, desisto, deixo
a idéia, a janela, o quarto
e parto
para a calçada
onde acendo um cigarro
e através da fumaça
bem perto
de ser tangível
a revejo

ela que se ensimesma
e passa, abstrata, por mim


Este poema integra o volume inédito Sobre Sísifo, a sair, este ano, pela Ateliê Editorial.
 

 

 

 

 

26/12/2005