Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

Jaumir Valença da Silveira


 

Matinal


Madrugada dada
ao firmamento.
O sol
vem trazido ao vento,
rosando o céu
e o roseiral.


Um tom maior
se eleva.
E leva, no colo,
o sonho dormido.
Manhã de novo,
o dia vem vindo.


Passa
o passaredo.
E o meu enredo
é passar
o passado
entre os dedos.


Dura a aurora
duradoura.
Doura
meu olhar.
Lacrimeja
o que a alma almeja.


Pois seja
o que Deus
desejar,
se é verdade
que Deus
deseja.


E apesar
de pesar
tanto a vida,
o meu canto
hoje eu vim
pra cantar.
 

 

 

Leonardo da Vinci, Embrião

Início desta página

Lau Siqueira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

Jaumir Valença da Silveira


 

Iniciação


Diz-se que, quando menino,
Cristo brincava num vale,
moldando, em estátuas de argila,
as silhuetas das aves.


Era uma tarde de sábado.
O sol dourava as lembranças
mesclando ao frescor das águas
contornos da sua imagem.


Junto da argila molhada
colhida às margens do rio,
pingava o suor de uma fronte
crispada, tranqüila, estante,


como se o mundo parasse
- e há vezes que mesmo pára -
por doze estátuas de pó
que a gênese não contava.


Seu pai de carne esperava
cuidado com seus deveres.
Seu Pai, do Alto, esperava
que o seu fado se cumprisse.


Bem que o pequeno sabia
que o tempo ali era parco
e que furtar os segundos
era entregar-se de triste.


E não foi mais que um suspiro
amalgamado a um sorriso
que, ao levantar-se da terra,
deixou revelar o Cristo.


Mas já de costas pro rio,
criança que ainda era,
chorava que nem criança,
embora engolisse as águas.


E quando já caminhava,
tornou a fitar a margem,
dizendo, com o olhar perdido:
"Haveis de sofrer comigo".


E os passarinhos se foram,
sumindo à vista do vale.
Exceto por um que, antes,
suave, bicou sua face.
 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), girl

Início desta página

Elaine Pauvolid

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

Jaumir Valença da Silveira


 

Late spring


Amor de floração tardia
colhido ao chão das follhas secas.
Achado casulo de mim mesmo, seco,
fui ficando.


Eu já me despedia de meus anos.


Que já não há rubor nas entressafras,
veias, vias de memórias fracas.
Por que me permito?
Não das manhãs,
que o calor chega atrasado,
mas das tardes talvez,
que vai esfriando, mas fica morno,
morno - terno - e fica,
e fixa, dá calma
e alegria, doce, fragrante.
Destas horas fiz todos os meus dias.


E já não sei se vou, se vôo,
se parto.
Aparto as circunstâncias, ânsias
no meu em-torno.
Suspenso no que sinto e que repenso,
terçãs que desvanecem,
as horas crescem.
Nem todo amor negado às horas pena.


Açucenas. Lírios.
Não vale à alma o vale dos suplícios.
Deixa o aroma enevoar,
emudecer, entreabrir,
que eu sou todo a sombra da sombra,
senão luz própria sem fundo,
imagem que não existe
mas é tudo.
Há muito basta o gesto de sorrir.


Dá-me teus frutos...
é mais que eu merecia.


       Amor de floração tardia.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion

Início desta página

Barros Pinho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

Jaumir Valença da Silveira


 

Da natureza dos anjos


Na casa, o coração era a lareira
e perto, eu descansava os pés gelados.
Não pude achar lembrança mais acesa:
lareira e pés. Sorri - fechava os olhos.


A vista curta de visão extensa - fogo;
a visão curta da vida extensa - negro.
As pálpebras contidas soluçavam.
Lá fora o vento frio uivava assombro.


Os olhos refletiam as labaredas,
as lágrimas ardiam manchas negras.
O fogo era maior fora de mim...
me lembro muito bem que há tanto fora.


Um dia foste parte do brinquedo.
É mesmo séria a história sobre os anjos?
Não posso dormir mesmo sem camisa?
O fogo me guardava - era preciso.


E tinha duas sombras o tapete.
Que voz ouvi atento, e fiquei quieto.
Que as asas não comportam ser tão leve,
os anjos não têm corpo e nem têm forma:


Que quando neste mundo quem precisa
encontra amparo e afeto nos teus ombros
e só por isto torna-te alegria
e a alma é como um fogo que não queima,


um anjo tomou conta do teu corpo
e fez pousada. E dele são teus atos.
Mas anjos não têm asas, é verdade,
portanto não se pode haver quem tolha.


E vai-se embora em busca de outro vivo.
(Mas dizem que, não raro, ele demora
o tempo que demora a vida inteira;
a etérea substância se confina).
 

 

 

Titian, Noli me tangere

Início desta página

Lilian Mail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

Jaumir Valença da Silveira


 

Escleroblasto

 

E=mc2



Era o que minha juventude ousou por conceber.
Eu haveria de ser o filho da classe média,
escravo de seus princípios, desejos e padrões.
Turvo pela mácula da sede de seus pecados,
marcado pela sina definitiva da mediocridade
(e apesar disto, achava que as coisa poderiam ter sentido).


Minha primeira infância foi a adolescência,
e minha adolescência foi a solidão
(he said a storm's comin').


Naqueles dias, meu anjo, eu já sabia
que o meu futuro seria escuro como uma mina,
que meus amigos, se eu os tivesse, me abandonariam,
que os anos acumulariam mortos -
e tudo isto era fatal.


Procurei nas cavernas de meu fictício amor-próprio
meu abrigo subterrâneo - e fui viver nas sombras.
Foi quando tua visão veio a mim.
Eu vos digo, agora, senhores:
não será outra
a história de amor de meus dias.


Estranho mundo onde as pessoas são tão diferentes
e as horas as tornam tão iguais.
Estranho o mundo porque sou pequeno,
o sol, a chuva e o tormento são grandes,
e me alimento do alento da Incerteza.


A verdade é que, por algum tempo,
achava que tinha em mãos
o que fazer de minha vida.
Porque queria pouco:
o conforto de um claustro
que algum modesto dinheiro pudesse comprar
e que me desse como viver -
perdão, como passar.


Foi quando tua visão veio a mim.


Com que lembranças mornas me estonteio!...
Vejo teu rosto com a clareza do Novo Testamento,
e o teu sorriso embriaga-me a garganta
como se eu quisesse, lírico desmedido,
entoar um cântico de adeus a Dionísio
enquanto ele me enforca com uma cantiga de ninar.


Há algo de não-determinístico em cada esquina
e chamar a isto de caos é um exagero.


Eu costumava imaginar
o que pensava da vida uma colegial tardia
cujas roupas de adolescente já quase não comportavam uma mulher
emersa das sombras, do umbral, da ignorância,
de um mundo tão obturado quanto a minha expectativa de ser feliz,
e que tinha a beleza de quem não sabia,
um capricho irônico da natureza,
um olhar de uma urgência de viver -
e que me cativou.


Não quero ser cruel a ponto de dizer
que tinha a ilusão de que o que é selvagem é puro.
Nem sei se pode haver algo mais antigo
que mirar um sonho que vem e que vai pela janela.
Mas a estupidez de amar o inatingível não tem limites
porque não tem começo,
porque não tem fim,
e todos os meios são cegos.


Dias e dias e dias
e o acordar já não era um esforço inumano.
Ver-te passar pelos fins de tarde
(onde um sol funcionário público se deitava)
cumulava-me de um veneno de doçura
que lentamente ia amargando em ameaça de lágrima,
envergonhada por um racionalismo patético.
Mas eram tuas as noites consagradas
e o amor coagulado em desespero me desordenava os sentidos.


Que futuro teria? Mas que futuro teria eu?
Por ser-me inaceitável a fragilidade
de sentir-me presa dos deuses, do Deus,
ou do Diabo que fosse,
resguardava-me numa lógica que já não fazia sentido
e o vácuo do não-ser...
nunca eu hei de esquecer.
Sobrava-me o cativeiro de um sentimento
que era estéril, destrutivo e impiedoso.
E destes dias difíceis
restou-me o vício suave de amar a tristeza.


(Quando houve o Big-bang - e isso foi há muito -
algumas partículas existiram por uma fração de segundo,
para nunca mais.


Hoje há os que entregam sua vida para ressuscitá-las,
e de pensar nisto eu me consolo,
eu não me sinto mais sozinho,
pois toda origem encerra uma perda que une.)


Há costumes que matam por fora
e outros que matam por dentro.


Corpo são talvez seja uma herança inata
de uma leva que abandonou o pensamento,
na desilusão de não ter consumado o pecado original.


O nosso tempo se ateve à gordura do corpo.
Eu disse nosso, não disse meu,
ao bom entendedor meia palavra basta,
ao meio entendedor boa palavra inunda,
e nunca um coração foi tão organicamente mortal.


Da esteira de modismos ridiculamente naturistas
ou naturalistas, ou naturebas
(antes eu nunca tinha usado esta palavra),
com suas dietas e ginásticas
e sedentários de corpo, alma, luz e verbo,
o suco das frutas tropicais foi que mudou meu rumo,
quando eu buscava o doce das mangas
e uma trégua neural que só a doçura consegue
(e não me venham aspartar-me que eu não quero)
foi quando, foi quando eu te vi. Aqui do meu lado.


Da loja de sucos toda lembrança esmorece
diante de um anoitecer de verão no Brasil.
O chão das calçadas de pedra morno sob os chinelos,
o vento morno que morde e assopra,
arauto malandro de uma noite singular
que abdicou da majestade por que quis
mas não abre mão de baixar alardeando exuberância,
esfriando o sol com mil reverências multicolores
trazendo à terra alívio e frescor
- mas aqui não é frescor, e sim frescura -
carregando os astros como jóias por todo o corpo,
e como quem dissesse, toda-poderosa, toda boa,
"Meus amores, meus queridos,
eu cheguei para fazê-los felizes".
E estas coisas, nem parece, empurram a gente pra vida,
especialmente quando se é um tupiniquim
que sonha intimamente uma herança européia
que não sabe de onde vem, ou veio, ou virá (?)
mas escolheu por mimetizá-la num ar de melancolia,
de um perfume gelado como a névoa vespertina
e me perdoem, tão vulgares quanto eu:
assim foi, e assim será, porque assim é mais fácil.
E só por isso. Só por isso!


Há algo de inusitado que espreita o ceticismo
com a leveza das traquinagens de meninos
que se escondem nas inflexões do espaçotempo.


Por fora a distância é pequena,
por dentro é o mundo,
mas eram palmos de um balcão que nos separavam.


Querer eu queria, amar eu amava,
buscar era o precipício,
e eu sentei-me à beira focalizando o infinito,
no fundo não era à toa,
era como quem desdenha, à vista dos outros, um estereograma,
mas deplora em alma viva não alcançar o desenho.


Dá licença, foi o que ela disse,
e passou, e voltou, e perguntou,
Não é o senhor que toda tarde fica na janela
(daquele prédio branco, como se fizesse diferença)
e se agonia e encanto alguma vez vieram juntos
foi naquele dia, naquela hora,
eu bem que quis chamar de ânsia,
mas dizer que eu ansiava por alguma coisa seria mentir.
Ah, minha filha, quem fica toda a tarde na janela é Deus,
contemplando com toda vaidade do mundo a Sua obra.
Sou eu... sou eu... ... sou eu... ... ...
De um lado um alguém conhecido por cada centímetro quadrado;
do outro um estranho.


Fulano, suco de cacau, foi o que ela pediu,
e a metafísica se derramou sobre minha alma
enquanto descia pela sua garganta
com uma sensualidade tão inesperada,
contida, suave, sublime,
que o mais desértico dos cépticos se inclinaria
a dar as costas à aridez do acaso,


e o maior dos poetas arruinaria uma reputação
em troca de se banhar numa fonte de adjetivos
onde pudesse lavar as entranhas
e diluir as impurezas que só ele sabe que existem
e que acumulou em prol do sacrifício.


Sacrifício. Névoa do nada. Mosaico de migalhas.
E toda esta leveza não comporta o que não seja fluido.


Mas as lágrimas são leves,
se atenuadas pelo sorriso.


A lágrima vem do corpo, mas é alma.
O sorriso vem do corpo, mas é alma.
E o sexo vem da alma, mas é corpo.
E o corpo é matéria. Protoplasma e deutoplasma.
Cultura e escultura.


Boa noite, hein... a gente se esbarra por aí.
Boa noite.


(Eu deixo pra você a dor ou alegria
desta frase que a memória verte.
É o meu presente.)


E o bom senso guarda, dentro de si,
a graveza das explosões nucleares,
explosões estas que não têm um sentido
que não seja destruir todo o dualismo identificado como compreensível,
pois aprisiona, e liberta,
e tudo isto é uma coisa só.


Há quem durma com este barulho.
Não é mais o meu caso,
porque eu não quero que seja.


Enquanto estiver acordado,
quero sentir, a cada dia,
a inconseqüência e a conseqüência
desta enxurrada de humores que eu controlo, deploro e celebro.


Eu vejo um vulto que se aparta de mim,
e nunca a palavra confusão foi tão etimológica,
pois não se sabe se se ganha ou se se perde
em não saber se se ganhou ou se se perdeu.


Vai-te em boa hora, minha filha,
que o amanhã é outro,
que eu rezarei por ti,
e que o amor só faz mal
quando não é amor
 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Cleópatra ante César

Início desta página

Roberto Pires

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tintoretto, Criação dos animais

Jaumir Valença da Silveira


 

Tradução do poema de Jelaluddin Rumi:
 

 

ASSIM

 

Se alguém lhe perguntar como se desvela
a mais perfeita sensação do gozo,
eleve os olhos e diga


Assim.


E quando alguém mencionar
a graça do céu noturno,
suba no telhado, dance, e diga


Assim?


Se alguém quiser saber o que é
o espírito, ou a essência de Deus,
incline a fronte em sua direção,
mantenha o rosto colado


assim.


E quando alguém evocar a velha poesia
das nuvens que, aos poucos, encobrem a lua,
afrouxe pouco a pouco os nós da túnica.


Assim?


Se alguém quiser saber como Jesus
levantou os mortos das tumbas,
não tente explicar o milagre.
Beije seus lábios.


Assim. Assim.


E quando alguém perguntar
o que é morrer por amor,
faça um sinal


aqui.


Se alguém quiser saber quão alto é,
hesite, e meça com seus dedos
os espaços entre as rugas da sua testa.


Deste tamanho.


A alma às vezes larga o corpo,
e então retorna. Se alguém não acreditar,
volte para a minha morada.


Assim.


Quando os amantes sussurram,
estão contando a nossa
história


Assim.


Eu sou um céu onde espíritos vivem.
Mergulhe neste azul profundo
onde a brisa espalha segredos


Assim.


Quando alguém perguntar
o que há-de se fazer,
acenda a vela em suas mãos.


Assim.


Como o perfume de José
chegou a Jacó?


Shhhhhhh!


E como retornou
o suspiro de Jacó?


Shhhhhhh!


A brisa suave limpa os olhos.


Assim.


Quando Shams retornar de Tabriz,
seu rosto há-de mostrar-se atrás da porta,
e nos surpreenderá.


Assim.
 

 

 

Crepúsculo, William Bouguereau (French, 1825-1905)

Início desta página

Ivo Barroso, 2003