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Izacyl Guimarães Ferreira


 

Registro de imóveis


o bairro não tem mapa
a rua não tem nome
a casa não tem número
a porta não tem chave


a mesa não tem pratos
a cama não tem pés
o teto não tem luz
o tanque não tem água


o pai não tem trabalho
o filho não tem vaga
a mãe não tem mais nada


a morte não tem hora
a vida não tem volta
a lista não tem fim

 

 

 

Culpa

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José Louzeiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

Izacyl Guimarães Ferreira


 

De fonte bem informada

 

(Rio, 1969)



O marechal reformado
vestiu a farda de gala.
À frente do regimento
recebeu a continência
da guarda. No calabouço
identificou o corpo
maltratado de seu neto
e na sala do comando
- com uma única bala -
justiçou o coronel.

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

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Anderson Braga Horta

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Izacyl Guimarães Ferreira


 

Queixa


Não se trata de mim
- idôneos sobrenomes,
sinais particulares,
mapa astral, domicílio.


Trata-se mais de nós,
do que juntos e a sós
fazemos da manhã
e pela noite adentro
nessa beira de rio,
na ponta desse fio
luminoso, no centro
do insubmisso teatro.


Não se trata de mim,
de nada pessoal.


Trata-se mais de nós,
expostas nossas caras
sem máscaras ou pós,
expostos nossos corpos
e as rarefeitas almas.
Sem satânico trato,
a busca da paixão
que justifique os fatos.


Não se trata de mim,
de queixa pessoal,
embora seja minha
uma queixa da espécie.


Trata-se mais de nós,
deste único assunto.

 

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

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Pedro Nunes Filho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

Izacyl Guimarães Ferreira


 

Do amor virtual


1.

Entro no mundo virtual
para encontrar-te e logo vejo
tua forma e cor,vejo o desenho
esquivo de um corpo dançando
- passo alado,mergulhos fundos
pelo mar de imagens. Teus olhos
me respondem,em volta há música,
tentações de sonho e desejos
que abandono. Para abraçar-te,
saio do mundo virtual.



2.

Disseram que o amor inventa
a amada,o amado,o sentimento
mesmo que ele é - fingimento
de narcisos,salão de espelhos;
que nada prova contra o amor
se os amadores não existem,
alguma vez reli,bem antes
de tanto mágico aparelho.
Mas nós,amantes naturais,
nos entreolhamos, corpos vivos.



3.

Não pode ser mentira o amor
e o que ele cria entre nós dois:
verdade maior que as pessoas
aquela prosa e aqueles versos?
Maior que o doce sofrimento
de querer,ser querido e ver
que espaço e tempo se confundem?
Que a distância por mais distante,
real ou virtual,se apaga?
O aqui,o agora,tudo falso?



4.

O que entrevemos sob a pálpebra
fechada,aberta para o tempo
e revelando o que não temos,
geometrias mudáveis,álgebras
do espaço intocado,mental,
fosse tudo assim,simulacros
dando exemplo para o milagre,
toda essa trama do querer
quando a tocamos fosse igual...
(Melhor eterno fosse o amor.)



5.

Posso pensá-lo,recriá-lo
em nossas fotos e vigílias.
Posso guardá-lo em meu ouvido
- o som de teu vestido,o som
de tua voz e de teu riso.
Enquanto a estrela vai queimando
o seu calor,lembrar o teu,
num arremedo de verão.
Posso apenas imaginá-lo,
no esforço vão de uma saudade.



6.

O gosto de qualquer saudade
é perda,gasto descontente.
Mesmo que dure essa memória
doce do que fomos,ou fosse
a vida brevemente imóvel,
seria tudo um pobre intento:
ficaria uma falta,fica a
falsa cara da imitação.
Memórias e palavras querem
viver verdades mais tangíveis.



7.

Verdade maior que as pessoas
não existe,se nelas soam
palavras armando sentido
para esse barro comovido
que somos,barro que nomeia
o mundo inteiro e não se alheia
do antes,do depois,mas sente
que o tempo vibra é no presente,
no amor que podes e que posso,
quando o alegramos alto e nosso.



8.

O ar inanimado da casa
se agita,algo vai passar.
Os sentidos despertos se abrem
para o som e a luz do prazer
que se avizinha,natural,
nesse aroma de mar e flor,
de vida em plenitude,pele.
Posso pensá-lo enquanto espero.
Total,porém,só mesmo o amor
que se inaugura no teu cheiro.



9.

Ver para crer? Tocar. Tocar
para crer,para conviver.
Tocar a terra,o fruto,a estrela.
No calor que ela traz ao corpo,
no sabor que ela trouxe às coisas.
Na sabedoria das mãos
e das bocas nos conhecemos.
Saber pequeno,mas podemos
- pedaços vívidos da estrela -
tocar o brilho de outro dia.



10.

E que outro nome tem a fome?
Que outra falta consome a sede
de ser,durar - como chamá-las?
Que redes são essas,senão
as que o amor,real,concreto,
pode cortar? Amor que pede
tato,gosto,que a nada cede
e tudo quer em seu domínio,
porque é seu dom perpetuar.
E esse é o nome que lhe dou.

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana

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Cláudio Aguiar

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

Izacyl Guimarães Ferreira


 

O cavalo


Animal vertical, renascentista
no espírito e na forma de ser belo,
estatuária postura de rei.
No que temos de melhor, nosso igual.
Viria do Centauro o entendimento
e a semelhança? Viria de Pégaso
o galope do vôo sagitário?
Ou do pequeno e gentil hipocampo
a graça demover-se como um pássaro
aquático? Cavalos. Indomados,
em bando, vendaval inacessível
ao modo humano de querê-los, esse
amor de possessão que os faz saltar,
dançar, correr, puxar, encurralados
pela paixão de tê-los em arreios.
Diante da incerteza do destino,
de pé, num sonho de campina ou pista,
pêlos soltos ou penteados, belos:
belo, nosso igual, livre ou prisioneiro.
E eternamente animal vertical.

 

 

 

Bernini, Apollo and Dafne, detail

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Raquel Naveira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

Izacyl Guimarães Ferreira


 

Quatro cavalos


Alheios à contemplação geral.
Sem arreios e sem ginetes, livres.
Os peitorais, colares, são sinal
de augusta nobreza, não de doma.
No amplo céu de Veneza, quase verdes
em seus bronzes, entre os ouros do Duomo,
estes cavalos vindos de Bizâncio
não galopam nem dançam. Mas respiram.
Estas narinas dizem que estão vivos
e suam. As cabeças inclinadas
falam, as patas altas espelhadas
em parelhas revelam: vão partir.
Marchando vão voltar para Bizâncio,
deixando sobre a praça as quatro sombras.

 

 

 

A menina afegã, de Steve McCurry

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Laeticia Jensen Eble

 

 

 

06.10.2005