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Georgina Albuquerque


 

MEU PAI E O VENTO


Meu pai me ensinou a retornar todos os dias,
fossem eles frios, quentes ou chuvosos.
A casa me acolhia, úmida e cálida,
como um útero que recebe os passos na escada.


A vida me ensinou a evadir todos os dias,
penetrando nos olhares das pessoas pelas ruas.
A diversidade de mundos, os quais não percebo,
eu sei, marcam distâncias profundas
entre mim mesma e outro alguém


Aquele com quem cruzo,
ensina-me a retornar todas as noites,
sejam elas de primavera ou de outono.
A folha cai, seca e surda,
levada e fugaz, vôa ao vento
e eu distante do meu quarto,
meu pai já sumido no tempo.


Ninguém mais me cobra o retorno,
sigo com meu pensamento...

 

 

Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

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Pedro Salgueiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), A Classical Beauty

Georgina Albuquerque


 

MORTE


Você insiste em congelar minhas lembranças:
- Morte, Morte, você tem rondado!...
Espreita o medo, monitora a impotência,
e aguarda paciente que adormeçamos
para sobressaltar-nos no meio da noite,
o soluço (sentido!...) perdido no escuro do quarto.


Peço-lhe que se afaste!...
Não traga a chuva forte e o vento frio
para que denunciem uma patética manhã.
Precisamos constatar calor nos corpos amados,
e não a frieza de sua dança em círculos,
angustiante ausência de ritmo ou compasso.

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Pipelighter

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Eduardo Diatahy B. de Menezes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

Georgina Albuquerque


 

O PATO E O TERREIRO


Goela de pato,
milho descendo apressado,
em terreno ondulado,
pisa o bichinho engraçado,
amarelo e empinado.


Segue, no amplo terreiro,
avezinha singela,
sombra alocando
água fresca,
a bacia lhe espera.
- Sorte a sua!...
não percebe,
que no grupo falta um...

 

 

Titian, Noli me tangere

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Maria Azenha

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

Georgina Albuquerque


 

PELAS ESQUINAS


Um homem caído, eu encontro e evito,
traz cheiro de fezes, no corpo encolhido.
Essa massa cinzenta, podia ser minha:
irritante, angustia, envolvida em jornais.


Restos que voam pro norte
- haja vida!
e a sorte que insiste em chegar...


Devo estar impregnada da ilusão de ser imune,
quero o cheiro de perfume e o conforto dos lençóis.
O mendigo não possui a face do meu amado,
pai ou filho que eu aguardo, à noite para o jantar...


O rumo das coisas tem sempre seu risco,
não devo e não quero pensar...
As sortes que temo, pertencem à vida,
ela aponta pra dança e é pra rir ou chorar!...


Restos que voam pro norte
– haja vida!
e a sorte que insiste em lançar,
a tola impressão de não sermos nós mesmos,
o estranho do encontro, essa fome a matar...

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Cleópatra ante César

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Gabriel Nascente

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

Georgina Albuquerque


 

SEMELHANÇAS


Quanto olhar
de riso triste
na vida! ...


O pranto
- sabias ?


        segue o rumo
        das águas geladas
        dos rios do sul.
 

 

 

Leonardo da Vinci, Embrião

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José Alcides Pinto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

Georgina Albuquerque


 

SUBLIMAÇÃO


Os padres e as freiras em casa,
servidos no lanche da tarde.
Batinas e vestes escuras,
as botas surradas, pesadas.


Café com leite na mesa,
fubá no bolo-metade.
Minha mãe trazendo, aflita,
quadrados de chocolate.


Santinhos oferecidos,
segredos dentro da mala.
Pequenas medalhas e terços,
ruidosa alegria na sala.


Criança, já sei hoje em dia,
percebe por trás da roupagem.
Havia, sim, algo escondido,
coberto de castidade.


Ferviam nervuras do instinto,
tingidas de santidade...

 

 

Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg

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Natércia Campos