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Afonso Félix de Sousa 

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Poussin, Venus Presenting  Arms to Aeneas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Afonso Félix de Sousa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leonardo da Vinci,  Study of hands

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), girl

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

Afonso Félix de Sousa


 

A moça de Goiatuba

 

Em Goiatuba
tem uma moça.
Que coração grande
ela tem.
A moça de lá
é só chamar vem.

       José Godoy Garcia


Mal rompeu o dia - a moça
foi levar café com leite
para o filho do patrão.
Sentada à beira da cama,
como fez sempre, esperava,
como fez sempre, que o moço
lhe reclamasse mais pão.
Mas o moço não queria
nem pão nem café com leite.
Queria - e com que paixão
dentro dos olhos! - queria-lhe
os peitinhos em botão.
Daí o moço pediu-lhe
que se deitasse com ele
um pouco ... que assim veria
como era bom o colchão.
Mas a moça riu e disse
que não tinha precisão.
pois era dia, e de noite
já tinha dormido um tantão.
Daí o moço pediu-lhe
que ela tirasse o vestido,
depois a combinação,
depois deitasse na cama,
que era bem quente o colchão.
Mas a moça riu e disse
não estar com frio não,


que o vestido que vestia,
tirar não podia não,
que a patroa foi quem disse
que devia ter vergonha
e cobrir-se com vestido,
calcinha e combinação ...
E se foi, deixando o moço
a se torcer de paixão.
E quando foram chamá-lo,
o moço tinha dormido
e não acordou mais não.
No outro dia, antes do enterro,
mal rompeu o dia - a moça
foi colher flores no mato
para enfeitar o caixão.
e a cada flor que apanhava
dizia à Virgem Maria,
ao seu bentinho e a São João
que tantas flores bonitas
o moço ao céu levaria,
mas a troco do perdão.
Pois uma das quatro velhas
que deram banho no morto,
disse que viu nos seus olhos,
quando os fecharam, o Sujo
a dançar com danação.
E a cada flor, uma lágrima
descia pelo seu rosto,
que morrer assim tão moço
como o filho do patrão
e ainda ter de curtir penas
era mais que judiação.
Enquanto apanhava flores
encontrou o pai do moço,
que também a buscar flores
foi colher consolação.
A moça, como fez sempre,
ao vê-lo estendeu a mão.
para assim, como fez sempre,
tomar bênção do patrão.
Ele tinha havia tempo
a mocinha em sua casa,
mas só agora é que dava
com seus seios em botão.
Sem largar a mão da moça
lhe pediu que ela tirasse
seu vestido de chitão,
que depois ia lhe dar
muitos de seda e sapatos
mais bonitos que os das outras
moças de todo o sertão.
Mas a moça riu e disse
que não tinha precisão.
que era até muito bonito
seu vestido de chitão.
Sem largar a mão da moça
o patrão lhe suplicava
que ela tirasse o vestido,
depois a combinação,
depois a calça, e depois
deitasse nua no chão.
Mas a moça riu e disse
que o vestido que vestia
tirar não podia não,
que a patroa foi quem disse
que devia ter vergonha
e cobrir-se com vestido,
calcinha e combinação ...
E daí se foi, deixando-o
a se torcer de paixão.
E quando foram buscá-lo
mais tarde, estava dormindo
e não acordou mais não.


"Que coisa, gente! Que coisa!
Mais parece mangação ...
De primeiro morre o filho,
depois vai, morre o patrão
de tanto pedir a gente
o que não posso dar não.
A gente quer ter vergonha,
a gente quer ter razão
e bota o vestido novo
feito para a procissão
- os homens mandam tirar,
me mandam deitar no chão.
Esses trens são mesmo uns bobos!
Chega dói no coração.
Mas não quero que eles morram,
'tadinhos! - como o patrão.
Vou fazer tudo o que pedem
na primeira ocasião."
E como as fontes que a todos
de beber sempre lhes dão
e como as plantas que os frutos
dão como consolação
e como o céu que as estrelas
dá a toda escuridão,
a moça de Goiatuba
se dava como se davam
ao sol as ervas do chão.
E os caixeiros-viajantes
e o vigário e o sacristão
e o revoltoso de trinta
e o promotor e o escrivão
e o juiz e o médico e os loucos
e o boiadeiro e o peão
e os polícias e os meninos
e o dia todo e de noite
não parava a procissão.


Era só chamar - e vinha
como se dar o seu corpo
fosse a sua religião ...
Uma vez mal se deitava
no quintal, atrás da cerca
de moita de são-caetano,
com um peão de boiadeiro
das bandas de Catalão,
sentiu uma dor doída
que lhe subia do ventre
para o peito e o coração.
Foi andando e entrou na igreja,
pois sabia que as doenças
tão feias como era a sua
não saram, mas Deus as tira
a troco de uma oração.
Ao ver que Deus era um homem
foi levantando o vestido,
mas Cristo não a quis não.
Dor tão grande que sofria
seu corpinho tamanino
nu bem no meio da igreja
como em terna adoração!
Dor tão grande! Ela só via
o Cristo, que nem os homens,
a se torcer de paixão,
e largando o crucifixo
lhe pedir, que nem os homens,
que ela deitasse no chão.
E como as fontes que à terra
as águas da terra dão
e como as plantas que os frutos
dão a quem estende a mão
e como o céu que em estrelas
se dá de noite ao sertão,
a moça de Goiatuba
deitou ... em pouco dormia
- e não acordou mais não.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Antonia Zarate, detalhe

 

 

 

 

Afonso Félix de Sousa


 

Auto-retrato


A maneira de andar
como quem busca
estrelas pelo chão.
A cabeça a dar contra os muros.
Em cada olho, o mundo como um punhal
- cravado.
O pensamento a abrir estradas
numa várzea distante.
Os ângulos do sonho formando orlas
povoadas de fêmeas
que a meu encontro viriam
do outro lado, em lânguidas posturas.
Diante do mar, a sede, a sede
de beber a vida em infinitas viagens.
As garras de gato ante paredes impostas.
A impaciência de que chegue a manhã e a praia,
a tarde e o amor.
A maneira de andar
como a fugir dos homens
- e tê-los contra o peito.
O pensamento a atirar pedras
contra as vidraças
que guardam os produtores frios
de injustiças.
O coração que bate
ao som de fábulas.
Que bate
contra rochedos mortos
numa praia de cinza
onde palpita o primeiro amor.


coração eterno.
O amor eterno
que bate.
A alegria! A alegria!
Íntima, espantada de si mesma, gloriosa
como palmas a se abrirem aos quatro ventos,
a alegria de sentir-me vivo, a alegria
de bicho do mato, criança, dominada,
eterna.
 

 

 

Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg

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Renata Palottini

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

 

 

 

 

Afonso Félix de Sousa


 

Canção do Pont Neuf


Como a juntar meus próprios ossos
debrucei-me sobre lembranças
que acreditava em frias poças
mas nunca em águas assim mansas
nem neste rio longe e próximo.
É tão bom quedar-me em tais margens
junto de águas que nunca bebo,
onde por muito contemplar-se
o céu da tarde ficou bêbado
e entortaram-se aquelas árvores.
Meu Sena amigo, tantas vezes
parei neste cais dolorido,
que uma possível correnteza
levará em meio a detritos,
toda minha alma pelo avesso.
Perguntas, silêncios e fomes
- tudo te trago qual um filho.
E algo de mim se desmorona
aqui nestas bordas tranqüilas,
pois ci-gît mon coeur vagabond
Barcos de solidões flutuam
sobre tuas noites - e afogas
louros fantasmas de uma lua
mais longínqua, mais melancólica,
mais de outro mundo do que a Lua.
De ti me abeiro, e me dissolvo,
mas nunca me sinto sozinho.
Os que têm ouvido aqui ouvem
palavras que um dia o destino
prendeu a trechos de Beethoven.


Ou são falas de amar que escuto?
Meu rio, de mim o que guardas?
Sei de meu coração sepulto
nalgum ponto de tuas margens,
mas sei que de há muito está mudo.
Em volta a cidade, profunda,
vai pelos dois lados do rio.
Para lá da cidade, o mundo.
Mais para lá, o amor que tive ...
meu rio como eu vagabundo.
 

 

 

Soares Feitosa, dez anos

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Jorge Tufic

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Afonso Félix de Sousa


 

Convite


Agora que o campo é de areia
pisemos de modo que os rastos
não nos mostrem como voltarmos.
E vamos ao mar, que derrama
sobre nós seu licor de pérola
e em mim todo um fervor de espumas.
Sei de ilhas contidas em conchas.
A elas pediremos repouso
quando a noite trouxer lembranças.
Segue-me ... e para trás deixemos
pais e irmãos, esposos e filhos,
e os cinzas gradis que nos guardam.
Depois de ao mar nos atirarmos,
qual seja o rumo a que nos leve
há de ter fim no que buscamos.
 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922),  A Classical Beauty

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Maria Maia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

 

 

 

 

Afonso Félix de Sousa


 

Embalo


Onde quer que estiveres
entregue ou fugitivo
verás o que não queres
na morte e no estar vivo.
Onde quer que banhares
a carne e os pensamentos
virão de outros lugares
banhar-te outros momentos.
Onde quer que dormires
será teu sono prece
que sobe em arco-íris
e sem que alcance desce.
 

 

 

Henry J. Hudson, Neaera Reading a Letter From Catallus

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Antônio Houaiss

 

 

 

02.12.2004