Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Afonso Félix de Sousa


 

O hóspede


A estrada não tem retorno, e ele, ele
que vem de um mundo há muito esquecido
ou já desfeito em névoa, em cinzas,
ele chega e sai a saudar os habitantes
da cidade (vazia?). Ele fala, fala.
Mas sua língua, que é outra, tem o timbre
de línguas que não são mais faladas
nem mesmo por fantasmas. E estranha
que não percebam, tão perto, as paisagens
do mundo que esquecera ou se desfizera
e ele recria com olhos agora de criança.
Ele fala, fala, e estranham que não traga
no bolso a passagem de volta (para onde?).
A estrada não tem retorno, e ele se encolhe
todo, como a desculpar-se (por estar vivo?
Por ocupar um lugar no espaço?). E se recolhe
a si, definitivamente hóspede de si mesmo.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Acis and Galatea

 

 

 

 

 

Afonso Félix de Sousa


 

Ofício de viver


O mundo que encontrei já era isso.
O jeito foi bordá-lo
com palavras.
Palavras e palavras, esta a herança
que tive e vou deixando.
O jeito foi juntá-las
untá-las
soprá-las
dobrá-las a meu jeito
Perdão ó mestres
vos dou a mão à palmatória
mas não sei ser outro, não sei
ser de outro jeito.
O mundo é isso
e o jeito é ir chutando e vou chutando
e vou driblando e vou sendo driblado
e vou caindo e vou-me erguendo e vou
e vou gemendo
atrás da bola
e a bola à frente
e ao lado a bola
e do outro lado
e nas alturas
Mestres
meus mestres
 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Grief of the Pasha

Início desta página

Izacyl Guimarães Ferreira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

 

Afonso Félix de Sousa


 

Os mortos de Jaraguá


Eles dormem: são dóceis
farelos de alma e ossos,
e nem como fantasmas
retornam, num espasmo
do que foram. E dormem
dentro da teia enorme
dos casos de família
Ou nem isso: são ilhas
submersas no não-tempo,
em nunca mais, em sempre ...
Mas movem-se: em meus ossos,
no olhar dos filhos nossos,
Astrid, eles retomam
o ar de mulheres e homens,
e erguem-se do repouso.
Freitas, Félix de Sousa,
Amorins e Camargos,
todos fazendo carga
nos rumos do meu sangue,
todos vértices do ângulo
onde hesito, entre brumas,
entre este e aquele rumo.
 

 

 

Bernini, Apollo and Dafne, detail

Início desta página

Rodrigo Marques, ago/2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Afonso Félix de Sousa


 

Passagem das nuvens


Os montes, ei-los. O verde
onde dormíamos. Que paz!
Que impossível! Se os buscamos,
recuam os horizontes.
Detê-lo, o carro luminoso.
Inútil: o dia prossegue.
Nas mãos, na bola de cristal,
pelo avesso o que hoje
é sonho, e em tantas
direções (não a que peço
e quero ... outras)
se perde meu destino.
E penso, pálido prisioneiro,
penso. E quanto mais sobes,
pensamento, mais preso
estou à terra.
Suaves, as nuvens fogem.
Para onde? Para onde
irão, lúcidas estradas
em vôo, os pensamentos?
Baixassem, nuvens, errante
me levassem, a alma.
Quero fugir, buscar
- até que o encontre -
o que não creio,
mas quero.
Se há deuses, me chamem.
Estou cansado e mais suave
quero o sono. Tenho fome.
Dos frutos, os proibidos,
dai-me o sabor. Que sede!
Dai-me a beber o amor,
a plenitude, e antes do sono
o pensar na vida sem dizer:


merda! merda! Dai-me o vinho
com que não me esqueça, mas cole-me
asas. Pois estou cansado.
Suavemente, as horas
fogem. Quando não mais
vivê-las, as horas fugirão
ainda. E o que me espera?
Nada, o nada. Que apelos
de amor, de vida: o nada.
Incompleta é a vida, sei,
mas são tantas as águas
da eternidade, que jorram!
Dai-me a beber, ó Deus,
ó deuses. E se há deuses,
não me abandonem.
 

 

 

A menina afegã, de Steve McCurry

Início desta página

Weydson Barros Leal

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

Afonso Félix de Sousa


 

Soneto XVIII de "Íntima parábola"


No campo vão pastar sonâmbulas ovelhas.
As nuvens, desde sempre os fâmulos da altura,
vão envolver o sol entre colchas vermelhas
- e em tanta paz da tarde um presságio perdura.
Do que haverá talvez por detrás do horizonte
golpes vibram, mortais, qual de um chicote eterno.
Por detrás do destino há de perder-se a fonte
que tem água do céu e tem água do inferno.
E em tudo o que hoje traz a beleza e deslumbra
o tempo há de deixar as marcas de seus dedos.
Em torno a qualquer luz sei que a espera a penumbra,
no mel de toda fruta há ressaibos azedos.
A noite já desfaz as nuvens e as ovelhas,
e a amarga flor do amor já se cobre de abelhas.
 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

Início desta página

Maurício Matos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

Afonso Félix de Sousa


 

Soneto XX de "Íntima parábola"


O simples ser e estar na clara cidadela,
vendo em cada jardim outro jardim sonhado.
De onde instalei meu ser debruçar-me à janela
que se abre sobre o feudo instável do meu fado.
Quatro pontos cardeais . . . e estas quatro paredes
em que risco na cal rotas com que me iludo.
Recebes nas manhãs o sol qual vós o vedes,
e dar às mãos do tempo os nadas que são tudo.
Domado e solto o amor, através de uma lente
olha o infinito e alcança a mulher que quisera.
Corro ao mar a esperar que antigo mar se invente
e arroje sobre o mundo a praia e a primavera.
Bebo aos goles a vida, e nada peço mais.
Mas sempre que olho o mar, sonha um barco no cais.

 

Remetente : Walter Cid
 

 

 

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

Início desta página

João Scantimburgo