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Um esboço de Leonardo da Vinci, página do editor

 

 

Silvério Duque

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Poesia:

Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Fortuna: 


Alguma notícia do autor:

Silvério Duque nasceu em Feira de Santana, aos 31 de março do ano cristão de 1978. É licenciado em Letras Vernáculas, pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Além da poesia, assume as atividades de músico, clarinetista, já coordenou a Escola de Música da Sociedade Filarmônica Euterpe Feirense, aliás, as bases de sua formação musical advém das Filarmônicas; é professor, crítico literário, escreveu e escreve para vários jornais e para a revista Poesia & Afins e é autor de dois livros de poesia O crânio dos Peixes, ( Ed MAC, 2002 ) e Baladas e outros aportes de viagem, ( Edições Pirapuama, 2006 ). Recentemente ganhou o concurso Bahia de Todas as Letras na categoria poesia.

   
 
Culpa

 

William Blake, Death on a Pale Horse

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
 
Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci, página do editor

 

 

Silvério Duque

responde três perguntas a

Gustavo Felicíssimo

 


 

 

Gustavo Felicíssimo – É um estranho poder, o da poesia, capaz de opor-se à miséria humana, aos ditadores, e ao mesmo tempo tão impotente atualmente frente aos olhos da humanidade. Por que você acha que isso ocorre?

 

Silvério Duque – Meu caro Gustavo, a Poesia, como quaisquer formas de arte, é, sem sombra de dúvidas, a primeira maneira, e, até hoje, a melhor, que o homem encontrou para se conhecer, expressar suas emoções e perpetuar seus princípios, seus valores, suas leis e sua cultura.

A arte é tão velha quanto o homem e sua civilização e durante muito tempo o homem não teve a pretensão de se ver distinto da natureza e buscava, sobretudo, uma integração com todo o universo. O homem sempre teve a necessidade de transcendência, e de buscar um elo entre a aparente efemeridade da vida, das coisas e a Eternidade, e, nisso, sofisticou, ao longo das eras, as suas mais diversas formas de expressão, procurando representar sua percepção cada vez mais acurada do meio em que vivia. Em resumo, não há síntese mais perfeita entre a razão, a emoção, a vida prática e, acrescente-se a isso (doa em quem doer), a Presença Divina.

E ela se faz perfeita por acabar-se em si mesma, porque, nela, se encerra todo um universo, uma maneira de compreender quando aceitamos que todas as coisas nos são possíveis, não podemos mudar ou acrescentar nada a um poema ou a uma obra de arte, apenas, a partir deles, deliberar; a Poesia é, em seu discurso, a probabilidade; ela capta tanto o real como imaginário àquilo que ela tem como presumível; o que não acontece com a filosofia, por exemplo: filosofar é um eterno reiterar-se (embora, os marxistas, em sua prática, discordem); é estar sempre aberto a uma nova frase, ou conceito,... ou coisa do tipo, que pode fazer com que aquele pensamento, antes direcionado para um lado, tome rumos completamente diferentes; a Filosofia, como a Ciência, de maneira geral, é um eterno acrescentar-se... e queira Deus que seja sempre assim. 

Já um poema, pode, sim, ser modificado ou acrescentado de muitos outros elementos por seu autor, mas, logo que publicado, tudo o que podemos fazer, sendo o poema, também, um assunto científico, é tirar dele o que ele nos tem a oferecer – sendo um bom poema, serão muitas e muitas coisas – porém, não podemos acrescentar-lhe um verso ou um pensamento sem destruí-lo ou transformá-lo em outra coisa, pois ele não é um sistema de pensamento, é a apreensão imediata e peculiar que seu autor fez de um momento de sua vida transmitindo-a a nós numa forma também própria de linguagem, no caso, artística; o que não quer dizer que o poeta não possa, mais tarde, deliberar sobre o que fez, mas não é a sua função primaz. Segundo o filósofo Olavo de Carvalho, em seu Aristóteles em nova perspectiva: introdução à teoria dos quatro discursos, este papel cabe, por exemplo, ao filósofo, que construirá, a partir do discurso poético, um pensamento filtrado naquilo que fora apreendido pelo poeta e, segundo o professor Olavo, “é sobre estas imagens retidas e organizadas na fantasia, e não diretamente sobre os dados dos sentidos, que a inteligência exerce a triagem e reorganização com base nas quais criará os esquemas eidéticos, ou conceitos abstratos das espécies, com os quais poderá, enfim, construir juízos e raciocínios”. Não podemos (não deveríamos) dizer: este verso ficaria melhor aqui, ou, o poema deveria ser menor, mais enxuto, menos prolixo... Podemos retirar do poema quantos conceitos queiramos arrancar, quantas análises acharmos por bem tirar-lhe, mas, no fim, ele será sempre o mesmo poema e não será nem mais nem menos por isso, porque ele é, acima de tudo, a síntese e o registro de uma época, de um modo de vida, de um momento no tempo, de uma maneira única e particular de ver as coisas, de uma maneira peculiar de expressar o que se pensava e o que se sentia naqueles exatos instantes onde cada palavra ganhava um sentido, uma função e um dever; dever que, muitas vezes, é, puro e simplesmente, o nosso sentir-se bem; é ter algo de onde arrancar ou compartilhar as nossas mais simples ou as nossas mais profundas emoções. 

Nas pinturas rupestres de Chauvet-Pont-d'Arc, e seus tão realísticos “cavalos”, ou na vestuária “teimosa” de Bentinho, em Dom Casmurro, de nosso inigualável Machado de Assis, a Arte, bem diferente da História, é um rigistro vivo daquelas coisas que citei há pouco: as épocas, os modos de vida, os momentos no tempo, aquela maneira única e particular de ver as coisas, a forma peculiar de expressar o que se pensava e o que se sentia naqueles exatos instantes onde cada palavra ganhava um sentido, uma função e um dever; tudo está em movimento, porque a Arte não é um produto da escavação ou da especulação do historiador, e as coisas nela contidas estão vivas porque são partes da vida de seu autor, elas são seu legado eterno; e as épocas, os modos de vida, os momentos no tempo, aquela maneira única e particular de ver as coisas... eternizar-se-ão com ele através de seu trabalho e nada de mais importante podemos tirar disso tudo que não seja nos admirar, nos alegrar e louvarmos a Deus com estes milagres pelo homem produzidos.

A Poesia, em meu ver, como quaisquer formas de arte, é tão integrada à humanidade que chega a ser uma necessidade fisiológica como comer, dormir ou sentir dor quando algo nos fere; seja criando-a ou consumindo-a. Em cavernas ou em grandes templos egípcios, como os de Abu Simbel, nos cabarés da Belle Époque ou nas salas de cinema, nas camisetas que usamos ou naquela deselegante caneca de chopp na estante da casa de algum beberrão, há pouco ou muitíssimo da presença da Arte em nossas vidas; o que muda, evidentemente, é a hierarquia lingüística, os diferentes níveis de se apresentar, de se dizer, de apreender o mundo, os modos usados... 

E, por tudo isso e mais um pouco, a Arte se sobrepõe às épocas, às misérias, aos governos e a tudo isso que citaste, meu caro Gustavo, por não ser ela mesma um fato isolado da mente ou da história humana, mas porque ela integra a própria raça humana, preservando-a naquilo que ela tem de mais importante, como, por exemplo, seu Mito Fundador – um conceito de Schelling. Fazendo minhas, novamente, as palavras do filósofo Olavo de Carvalho (as quais podem ser conferidas no artigo: Do mito à ideologia, no Jornal da manhã do dia 21 de março de 2001, ou em seu site), um autêntico Mito Fundador “é uma verdade inicial compactada que, no decorrer da História, vai desdobrando o seu sentido e florescendo sob a forma de ciência, de leis, de valores, de civilização, não sendo ele mesmo um produto da cultura por ser ele mesmo a semente de uma cultura possível”. Basicamente, prossegue o filósofo, “um Mito fundador constitui-se, em geral, de uma narrativa simbólica de fatos que efetivamente os sucederam que de tão essenciais e significativos que acabam por transferir parte de seu padrão de significado para tudo o que venha a acontecer em seguida numa determinada área civilizacional”. A Bíblia é o Mito Fundador da civilização ocidental. E de que maneira este Mito Fundador se nos apresenta, e nos é repassado ao longo da História? Através da Literatura, primordialmente... Oral, depois escrita, xilogravada, depois pintada, melodiada por Bach etc. e tal... A arte é uma das muitas punções de um Mito Fundador. Quando Northrop Frye afirma ser, a Literatura Ocidental, uma variação dos enredos bíblicos, coisa que eu não tenho porque não acreditar, pelo contrário, reitero aqui tal afirmação, ele não só demonstra a existência e a importância do Mito Fundador como nos dá um belo exemplo do poder que a Poesia e a Arte exercem sobre nós ao longo de milênios.

Assim sendo, não é a Poesia, ou a Arte, que está impotente diante da humanidade... é a humanidade que teima trocar seus mitos fundadores por ideologias fúteis, que em nada acrescentam e em tudo destroem. No entanto, a tendência de tudo é o melhoramento; tudo passa sobre a terra; viver, mudar, morrer é o nosso destino e a nossa dádiva. A Poesia sempre existirá como sempre existiu, com pouco ou muitos adeptos, com seus gênios ou poetas menores, e, como sempre, sairá vencedora com o passar dos anos, porque se não tivermos conceitos como bem e mal, bom ou ruim, se não tivermos uma idéia de sociedade e leis que façam prevalecer esta mesma sociedade, e formas de exprimir todas estas coisa – como só a Poesia exprime – nada mais nos restará ao não ser disputarmos, aos macacos, a floresta... ou coisa parecida. A Poesia, meu caríssimo, como a Arte, de uma maneira geral, está no centro mesmo destas coisas, como aquilo que nos une e nos conduz ao Divino, ao racional, ao emotivo, ao prático; e eu quero – e preciso – acreditar em tudo isso para que tudo que conheço não perca seu sentido e eu mesmo não me perca com todas essas coisas.

 

 

GF – Que você acha da afirmativa do poeta Alberto da Cunha Melo quando diz que "o mau uso do verso livre terminou por colocar em risco a própria identidade social da poesia."?

 

SD – Para mim, meu caro amigo, ele está correto. Analisemos, contudo, esta consideração, do tão saudoso bardo pernambucano, por um viés filosófico...

Quando, Alberto da Cunha Melo, afirma ser o mau uso do verso livre uma ameaça à identidade social da Poesia, penso que, necessariamente, ele não se refere a uma questão puramente formal, ou seja, não é o fato de o verso ser livre, no sentido de não estabelecer-se dentro de uma métrica rigorosa, mas, no quanto que este verso está, erroneamente, “livre” (desvinculado) de uma série de elementos, alguns dos quais, devo ter citado anteriormente, que constituem a sua legitimidade enquanto texto poético; principalmente, trazer em si o Mito Fundador, e, conseqüentemente – (já estou com saudades do trema) – de sua importância às gerações que se valerão dele.

Neste sentido, caímos numa velha discussão com relação ao Modernismo de 22. O grande mal do Modernismo paulista, e, até hoje, uma grande desgraça para quem se alimentou dele, foi o fato de os paulistanos se afastarem completamente de um passado que só lhes podia fazer bem. Se olharmos, só por motivo de exemplo, para os primeiros modernistas de Portugal, veremos que eles não aboliram, de todo, as formas fixas, mesmo o soneto – e nem poderiam, pois, de tão enraizados estavam as língua e as tradições portuguesas nos decassílabos camonianos que eu posso afirmar, sem medo de cometer um despautério, que é o decassílabo a própria expressão do pensamento e da língua; nem, muito menos, aboliriam os grandes temas que percorrem a mentalidade humana há séculos e séculos; é por isso, e que nos sirva de exemplo, que as Odes de Álvaro de Campos são tão repletas de fábricas, engrenagens e automóveis velozes, quanto de uma retórica ou de um ritmo poético tradicionalíssimos, que estes mesmos elementos “modernos” tão contemporâneos não se fazem livres de um Virgílio ou de um Platão, tanto que estes chegam até a dividir os versos com aqueles; o próprio Fernando Pessoa era tão embriagado de Aristóteles quanto de Walt Whitman... Modernos sim, idiotas nunca; os portugueses sabiam que negar estas coisas é negar-se a si e a tudo que se podia definir como cultura; o menos que isso é caos puro e simples; assim, em Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), encontramos:

 

...em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força – 
canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro, 
porque o presente é todo o passado e todo o futuro
e há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas 
só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
e pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinqüenta,
átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo

                                                                      do século cem,
andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por

                                                                                   estes volantes, 
rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só

                                                                           carícia à alma...

 

Agora, se olharmos para o exemplo do Brasil, ou pelo menos o exemplo paulista que, infelizmente, impera sobre os demais, a coisa é contrária: despreza-se o passado, a tradição, a forma e mesmo a linguagem apurada, que não tinha nada de preciosismo, em troca de quê? Em troca de algo que não se sustenta por si mesmo por não ter onde agarrar-se. A velha tentativa de buscar uma identidade nacional desprezando mais da metade dos elementos que constituem esta identidade só poderia dar em nada, ou pior, numa anomalia.

Tudo isso, no entanto, se se considerarmos os paulista de 1922, como precursores de nosso movimento modernista, o que eu não consideraria nem sobre tortura. E por quê? Porque há uma geração moderna bem antes deles que, por preguiça, incompetência de nossos críticos, ou espírito de cooperativismo porco, ou (o mais certo) os três juntos, não se enquadra como modernista, apenas como Pré-alguma-coisa... Agora, caro Gustavo, aponte-me uma característica dita como moderna ou como oriunda dos modernistas de São Paulo, que não tenha sido usada por um Augusto dos Anjos, ou um Lima Barreto ou um Euclides da Cunha? Diga-me, onde um Mário de Andrade foi melhor em retratar a urbis caótica que um Lima Barreto, ou se, por acaso, um Oswald de Andrade seria capaz de trazer tanta valorização ao passado, e às tradições culturais do Brasil, mais do que foram trazidas à luz no antológico Triste fim de Policarpo Quaresma? O que é o manifesto Antropofágico frente àquele horror que nos traga, nos devora e, ao mesmo tempo, nos apaixona e nos faz admirados nos sonetos de Augusto dos Anjos – poemas como Os doentes e As cismas do destino, presentes em Eu, são mais repletos de urbanismo e de uma linguagem inovadora do que quaisquer textos de Mário de Andrade... Sobre Augusto dos Anjos, Ferreira Gullar, entre muitos, aponta-nos o caráter inovador – modernista – da poesia do bardo paraibano: é quando ela rompe com as muitas conveniências verbais e sociais da época, levando, o Augusto dos Anjos, a uma mescla perfeita entre a beleza e o asco, entre os momentos sublimes e toda a sujeira da vida, sem contar certo prosaísmo, que triunfa sobre a rígida linguagem de seus sonetos. Diga-me, meu caro Felicíssimo, isto é ser ou não ser modernista? O que é o Manifesto Antropofágico diante de um Eu? Antropófagos que eu saiba foram o Raul Bopp, a Tarsila e os índios que devoraram o Frei Sardinha. Certo foi o Manuel Bandeira, que não entrou de todo nessa história...

Isso sem falar nos marginalizados como Graça Aranha e Monteiro Lobato; o primeiro soube enxergar, antes de muitos, os enganos e os horrores do Fascismo e do Comunismo bem antes de suas ascensões, é só ler o Canaã; o segundo caiu no ostracismo, vitimado pelo “cooperativismo de suínos”, algo que os paulistas de 22 aventaram como ninguém, por falar a verdade mais óbvia: que aqueles trabalhos de Anita Malfatti, tão aclamados pelos seus patéticos colegas, eram, e são até hoje, uma coisa ordinária. Não obstante, Monteiro nunca disse que ela era má pintora ou que, pelo menos, não era talentosa. Seríamos capazes de enumerar, caro Gustavo, as contribuições que os Contos gauchescos de Simão Lopes Neto deram a Guimarães Rosa e ao seu Grande sertão: Veredas? Para quem buscava a liberdade e o fim das segregações, ninguém mais negou-nos a primeira, nem nos pregou mais a segunda, meu amigo, do que os Modernistas paulistanos; não é à toa que, referindo-se ao Modernismo de 22, Luís Augusto Ficher não se acanha em dizer que “o Modernismo brasileiro, quer dizer, paulista, aquele que a gente aprendeu no colégio e hoje virou cânone obrigatório, inescapável, a ponto de excluir (da escola, dos manuais de história da literatura, portanto do horizonte prático da vida cultural) autores que não rezem por aquele catecismo – para os gaúchos é fácil ver isso, por exemplo, com o desprezo por Simões Lopes Neto, reduzido a ‘regionalista’ e, pior ainda, ‘pré-modernista’. Sem valor, portanto”.

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Em outros termos, mas reforçando tudo que disse e deliberei acima, eu penso que não existem versos livres; todo verso que se quer e se faz bom é um verso formal; toda poesia que se cobre de uma linguagem, de um ritmo e de temas que lhe são próprios, e que estão em comum acordo com a tradição, a cultura e, claro, com o gosto, a razão, a emoção de seu autor, é formal.

Se pegarmos um verso antológico de nossa Literatura como:

 

Assim calmo, assim triste, assim magro...

 

Muitos poderiam dizer, o verso da Cecília Meirelles não é um verso de dez sílabas poéticas perfeito, ou abre-se o verso em ...calmo assim... para se obrigar ao decassílabo. Porém o que se verá e se sentirá, ao ler este verso, mesmo fora de seu contexto, onde ele reina absoluto, como reinará qualquer outro verso do poema, é um verso extremamente musical e que se abrirá a uma infinidade de análises ou a outra infinidade de sensações.

A formalidade de um verso reside muito menos nas sílabas que se contam do que nos significados que carrega. Com o próprio Alberto da Cunha Melo não é diferente; sua contribuição à poesia brasileira é bem maior pela tradição que florescem em seus versos do que na forma que criou: a retranca. Isso, claro, sem tirar-lhe o mérito de uma, nem diminuí-lo pela outra. Alberto da Cunha Melo sabia que, se tirarmos os valores metafísicos da poesia, para nada servirá um verso senão para o seu próprio enterro, “uma linguagem de catacumbas”, como ele próprio dissera. Há uma grande diferença entre um soneto, por exemplo, e um poema que se arruma em 14 versos. No primeiro, séculos de tradição oral e lingüística, aliados a um formalismo elegante, fundem-se à emoção genuína, à linguagem própria e ao talento de seu autor; no segundo, apenas aglomeram-se versos que flutuam à deriva procurando algo que lhes dê significado; por isso, se abusarmos desta falsa liberdade do verso não comprometeremos não só a identidade social da poesia como seu próprio valor metafísico. O Exórdio de Yakala fala-nos bem mais e melhor disso do que eu:

 

Levamos fogo, não esponjas
ao trono sujo do excremento,
disputando o mesmo vazio
de uma estrela no firmamento;

jarros negros e estrelas, tudo
é uma busca de conteúdo;

ou somos renúncia ou cobiça,
atravessando esses planaltos
feitos de cinza movediça;

mas todos estamos em casa,
como os vôos dentro das asas.

 

 

GF – Aos seus olhos, que é professor, qual a importância se levar a poesia para os jovens na sala de aula?

 

SD – Antes de qualquer coisa é importante estender esta meta não só com relação à poesia, mas quaisquer tipos de arte, contanto que, primeiramente, se observe o caráter e a qualidade do que se está transmitindo os nossos alunos como sendo arte.

Um dos grandes problemas de nossa atual sociedade é que ela desaprendeu o sentido tanto teórico quanto prático da palavra “critério”, ou mesmo “juízo” e “discernimento”. Não quero, nem me cabe (aqui) levar esta questão a outras áreas, no entanto, em termos de arte, o que vemos é um público incapaz de diferenciar bossa nova de um pagode de mesa, ou que vai a um show de arrocha como vai a um show do João Bosco sem se quer saber ao certo o que ouviu e, mesmo assim, arisca-se a arrotar intelectualidade ao sair de qualquer um dos dois sem o menor recato ou razão, a começar por nossa classe média “letrada”. Por vários motivos, que seria impossível enumerá-los em tão pouco espaço, termos como “bom gosto”, “intelectual”, ou “mesmo erudito”, têm sofrido uma inversão enorme ou um total descrédito, principalmente por parte de quem deveria prezar por eles. 

Por isso, quando tu me perguntas se seria importante levar a poesia às escolas, a resposta imediata é sim e por quê? Porque poesia é arte e por isso mesmo é uma manifestação da raça humana plena de transcendência; porque é a mais completa manifestação do espírito e da inteligência humanos recortados pela racionalidade dos códigos possíveis: a música, a pintura, a escultura, o teatro, a dança e, claro, a poesia...  E em todos reconhecemos o potencial, inato ao homem, de expressar emoção, beleza e razão. Algumas pessoas dominam ativamente estes códigos e conseguem conceber, criar a obra de arte; são os artistas: poetas, músicos, pintores, teatrólogos... Não é levando arte às escolas que, necessariamente, criaremos tais pessoas, mas não deixa de ser um incentivo e tanto; contudo, existem outras pessoas que, apesar de não serem criadoras, integram-se com a arte por meio de sua apreciação, descobrindo novas formas e sentidos; são os estudantes, os críticos e, sobretudo, os admiradores da arte. Formar estas pessoas é uma obrigação para nós que educamos... Daí, porém, mais imediatamente ainda, vem-me uma angústia: mas que poesia, ou arte, seria levada? Com que tipo de literatura os milhões de alunos deste país teriam contacto? Será que, ao saírem da escola, mesmo não se tornando escritores – ou, se quer, grandes intelectuais – estes alunos seriam capazes, como cidadãos dotados do mínimo possível de educação, de distinguir um texto de Pe. Antônio Vieira de uma das piadas bem arrumadinhas do Luis Fernando Veríssimo e, melhor ainda, dar a eles o devido valor que cada um têm em suas estruturas e contextos? Teoricamente, qualquer escola de zona rural estaria apta a dar a seus alunos algo aparentemente tão simples e lógico, todavia, o que temos em nossa realidade...?   

Quando, por exemplo, um aluno tem acesso a uma educação musical esmerada, mesmo que ele não se torne um Stravinsky ele não aceitará um tipo de música que não esteja em um nível equivalente àquele ao qual está acostumado, pois, como conhecedor das estruturas musicais e, tendo em si, um gosto desenvolvido em cima de composições sofisticadas, a sua tendência é rejeitar o frívolo, o simplista e o de “mau gosto”; assim, quando não formamos grandes músicos, que é algo que depende, como na poesia, na pintura, etc., muito mais do toque da Musa, certamente, formaremos grandes ouvintes cada vez mais cuidadosos e exigentes com aquilo que lhes é passado como musica.  Com a poesia não seria diferente. Eu mesmo, ainda no primário, tive professores “à moda antiga” que me “forçavam” – e também aos meus colegas – a ler em pé, e em voz alta, poemas e contos de vários escritores brasileiros e portugueses; qual foi o resultado de tudo isso...? Para mim, conheci o Camões aos 10 anos e tenho poemas de Manuel Bandeira decorados desde o primário; em relação aos meus colegas, mesmo os que não seguiram uma carreira universitária, nunca ouvi deles expressões do tipo: “para mim comprar” ou “para mim ver”, nem dificuldades em interpretações básicas de textos ou reportagens, como se é possível ver nos alunos de hoje, educados no melhor programa de recrutamento à Paulo Freire. Eu tento aplicar métodos semelhantes e, “de vez em quando”, alguns “Guardiões” da pedagogia, imediatamente, me acusam de antiquado, agressivo e aplicador de métodos de adestramento.

Muitos, após lerem o que digo nesta entrevista, chamar-me-ão “fascista” – xingamento muito em moda nas rodas dos ideológicos de esquerda e coisa parecida –, e dirão até que eu desprezo a cultura popular e outras bobagens do tipo – porque não há nada pior no mundo que dá razão a idiotas e sínicos –; mas não é o caso aqui; o que eu quero é por as coisas em lugar preciso e lhes dar os devidos valores. Eu penso que, se passarmos aos nossos alunos os mais novos hits do Funk, ao invés do melhor que nos pode oferecer a Música Erudita, ou mesmo o Jazz, a Bossa Nova e o Chorinho; Haroldo de Campos, ao invés de Camões, ou João Cabral de Melo Neto e Patrice de Moraes; se levarmos os nossos alunos para ver e apreciar grafiteiros ao invés de Da Vinci, Caravaggio ou mesmo Di Cavalcante, Carybé e Gabriel Ferreira; se, principalmente, os ensinarmos que não há diferenças, nem hierarquias, entre estas coisas e as outras, como querem e praticam muitos, com auxílio tanto dos cofres públicos como de uma intelectualidade tão bem intencionada quanto pode haver no Inferno, destruiríamos, como já estão a destruir, todos os grandes valores que vêem formando a sociedade humana há milênios; perderíamos a própria noção de contraste que é a forma mesma pela qual o nosso pensamento e o nosso raciocínio trabalham ou a nossa perplexidade que é a forma mesma pela qual o nosso pensamento e o nosso raciocínio se formam e pararíamos estuporados diante de um mundo onde a menor e mais insignificante expressão possível andaria de mãos dadas com a mais genuína e grandíloqua linguagem. Este mundo nefasto é mais real do que imaginamos e está se formando e se expandindo tanto nas escolas, quanto nas ruas e até mesmo em nossas casas... Tudo porque alguém começou a acreditar em algum idiota que disse que noções de bom e mal são noções criadas para a segregação de classes, ou coisa do tipo...

Levemos poesia sim, mas boa poesia acima de tudo; e boa poesia só pode nos ser dada por aqueles que têm um compromisso com os grandes temas da humanidade, que expressam estes temas com a mais sofisticada linguagem possível e não abrem mão das influências daqueles que, como eles, se apegaram aos grandes valores construtores deste nosso mundo há séculos para não sermos vítimas daquilo que Bruno Tolentino, em sua última aula (conferir: Dicta & Contardicta, nº 1, IFE, junho de 2008),  referindo-se a um livro de Roland Barthes, chamou de Le degré zéro de l’imposture e depois, levando em conta a proximidade sonora, de Le degré zéro de épluchure:

 

...como se o macaco pegasse a banana e jogasse a fruta fora porque acabou de descobrir a casca. Um país inteiro que já deu Baudelaire, Racine, Villon e até Voltaire com aquele beicinho, uma das grandes culturas do mundo, de repente descobre a casca de banana e lança-se inteiro naquele estado de adoração do nada.     

 

Desta maneira, para que não nos aconteça mesmíssima coisa, até porque, yes! We have bananas...  é preciso prezar o quanto antes pela boa qualidade de tudo que é ensinado aos nossos alunos, principalmente, acredito eu, no que concerne à poesia, por todas as razões por mim apontadas ao longo desta entrevista – principalmente a de que, pela poesia, a inteligência exerce a triagem e reorganização do que foi apreendido criando os esquemas eidéticos, ou conceitos abstratos das espécies, com os quais poderá enfim construir os juízos e raciocínios e coisa e tal... Mas tudo passa sobre a terra... 

 

Feira de Santana, 17 e 18 de novembro de 2008

 

   
 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

  

 

 

 

Silvério Duque

 

 


OS BENS DE SANGUE, HEREDITARIEDADE
E OUTROS ATAVISMOS:
UMA ELEGIA EM BUSCA DO TÚMULO DE MEU PAI,
AMARÍLIO DE SOUZA DUQUE.



(Improviso)

– Quando soube de ti,
já eras morto;
nem nunca tive em mim palavra tua
que não me fora dada
de outra boca;
vives em mim como os
santos sobre as abóbadas de ouro
nestes antigos templos,
onde o amor é demais para tão
simples lembrança
ou mera construção de fantasia,
mas reconheço em mim a trajetória secular,
a herança de honra e sangue, traçada muito antes desta ausência
mesmo sem nunca ter te visitado
os ossos,
ou
o teu rosto
nos retratos.
 

 

   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

  

 

 

 

Silvério Duque

 

 


GALOPE
 

ao amigo e velho vaqueiro consangüíneo, Miguel Carneiro

( pr’ uma aquarela à Emilio Moura )
 

Esquecidos, no vento, procuramos
por aquilo que outrora fomos – tanto
faz se a luz que nos guia agora é pranto,
se tudo se desfez... Nós perduramos.

Tudo torna a viver, e reencontramos
a força de existir, o próprio encanto
que transfigura o nosso grito em canto
oportuno, o caminho pr’onde vamos:

é a memória a deter a nossa sina
de ter, nos pés, os giros que há no mundo
e a vontade de amar que o Amor ensina,

porque a alma há de fazer sua própria sorte
ante o esplendor mais límpido e profundo
ou do anjo frio que nos trará a morte.

 

   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

20.12.2008