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Rita Brennand


 

Nasceu caianA


E, como era de um costume meu,
sentei no capim, para ver o resto do sol se esconder.
E, por causa do cheiro da terra, a mulher
(caroço de manga) deitou-se e sonhou...
Estava plantada, com corpo caroço de manga.
Nasceu. Cana caiana, adocicada.
Dançava com os gestos da brisa,
lambida toda
do verde canavial.
Só que tinha os olhos tristes,
molhados, e não era de orvalho,
pois que eram lágrimas.
Seria levada à moenda,
em carro de boi, de boi de canga,
e lá, espremida, esbagaçada,
dela o que restaria?
Só bagaço? Não! Veriam:
o seu caldo teria os gostos,
vez do caju,
vez do araçá.
vez da pitanga!
 

 

 

Rita Brennand, Dentro de mim um olhar

Rita Brennand, Dentro de mim um olhar

 

 

 

Caravagio, Extase de São Francisco

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Luiz Paulo Santana

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

Rita Brennand


 

Os tantos que somoS


Lá onde dormem os seres-ovos
fluidos ovos-sêmen
lá onde dorme o azul tórrido
desse som que transmuta em vermelho glacial
o olhar do grito selvagem;


lá no longe, onde vive a luz da água cristalina,
que escorre macia, endormida, lenta,
riachando a noite;
lá, onde acorda a caótica cantoria verdejante
da chuvarada, que acende um cacto em flor;


lá se encontram as estradas, onde os andarilhos
cruzam linhas invisíveis, atravessam fronteiras,
perseguem a si mesmos passo a passo.
Ali há horizonte que demarca
os azuis líquidos dos oceanos.
Ali um fogaréu se deita redondo,
avermelhando um mar de sal.
Tão perto aqui, um ponto.
Aqui chega-se ao perto,
aqui dorme a fluida melodia
que tomei das pontas dos teus dedos,
essa melodia úmida, ou esse desatinado som,
que me desintegra, me absorve; então,
espero o último pingo da quase imperceptível nota.
É como o ressonar de uma formiga.
 

 

 

Rita Brennand, Ocaso, o adeus aos Jatobás

Rita Brennand, Ocaso, o adeus aos Jatobás

 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Nicolau Saião, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

Rita Brennand


 

Sons da terra mutante


Sinto-me como em delírio
mas o som traz em seu bojo
muito mais do que isso:
rupturas, fendas, fantasias,
devaneios, intensidades,
ora esvaziamentos,
quase se chegando ao torpor,
ao nada ...


Me desenho em um arco-íris.
Os sons me chegam coloridos,
deslizando o sol, anunciando
o rio.


Cobra líquida, penetro
no tempo
da mata, rasgando-me
nesse turbilhão de folhas e cipós,
enredando-me
nas malhas sonoras, estridentes,
dos cantos dos pássaros,
que, lançados como setas certeiras,
tingem de sangue meu dorso,
que se enrodilha, se contorce, estala,
anunciando
a cascata.


Rio, arco íris, estilhaço-me
em caleidoscópio mutante,



e, espalhando-me
Em asas coloridas,
anuncio
o vôo.


Agora rio revoada caótica,
organizo-me em flechas rimadas,
migrando setas de fuga,
anunciando o caminho dos pássaros,
caminho do vento gozoso.
Flechas sibilando
rasgando os espaços fluidos.


Somos a pulsação
das marés baixas, silenciosas.
Deslizamos em vôos rasantes
sobre o cinza espelhado e liso
dos mares adormecidos.
mudamos nossa rota
à procura
do sol


Somos pássaros-matilha
inseminados de luz.
Já agora, das alturas, nos chegam sons,
como se o universo todo estalasse
em sinos.
Flutuamos.
Nos adentramos no não-tempo.


Então somos gritos
anunciando a paisagem.
O vento nos enrodilha num vôo só
de aterrissagem!


As arvores em algazarra de folhas,
transmutam-se em ninhais
e a zoeira agora é só um balbucio,
uma toada branda,
o sussurro do anoitecer,
o acontecer de cios.
 

 

 

Rita Brennand, Ainda há vida no Sertão

Rita Brennand, Ainda há vida no Sertão

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

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Ruy Espinheira Filho