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Murilo Mendes


 

O fósforo


Acendendo um fósforo
acendo Prometeu, o futuro, a liquidação dos falsos deuses,
o trabalho do homem.
 


o
 


O fósforo: tão rabbioso quanto secreto. Furioso, deli-
cado. Encolhe-se no seu casulo marrom; mas quando cha-
mado e provocado, polêmico estoura, esclarecendo tudo.
O século é polêmico.
 


o
 


O gás não funciona hoje. Temos greve dos gasistas. A
Itália tornou-se a Grevelândia. Mas preferimos essa semi-
-anarquia à "ordem" fascista.
O fósforo, hoje em férias, espera paciente no seu casulo
o dia de amanhã desprovido de greves. O dia racional, o
dia do entendimento universal, o dia do mundo sem classes,
o dia de Prometeu totalizado.
 


o
 


O fósforo é o portador mais antigo da tradição viva. Eu
sou pela tradição viva, capaz de acompanhar a correnteza
da modernidade. Que riquezas poderosas extraio dela!
Subscrevo a grande palavra de Jaures: "De l'autel des
ancêtres on doit garder non les cendres mais le feu."


In: MENDES, Murilo. Poliedro: Roma, 1965/66. Pref. Eliane Zagury. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1972.
 

 

 

Dalila Teles Veras

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Soares Feitosa, dez anos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

 

 

 

 

Murilo Mendes


 

Perspectiva da sala da jantar


A filha do modesto funcionário público
dá um bruto interesse à natureza-morta
da sala pobre no subúrbio.
O vestido amarelo de organdi
distribui cheiros apetitosos de carne morena
saindo do banho com sabonete barato.
 


O ambiente parado esperava mesmo aquela vibração:
papel ordinário representando florestas com tigres,
uma Ceia onde os personagens não comem nada
a mesa com a toalha furada
a folhinha que a dona da casa segue o conselho
e o piano que eles não têm sala de visitas.
 


A menina olha longamente pro corpo dela
como se ele hoje estivesse diferente,
depois senta-se ao piano comprado a prestações
e o cachorro malandro do vizinho
toma nota dos sons com atenção.


In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959
 

 

 

Fernando Py

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Octavio Paz, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Murilo Mendes


 

São Francisco de Assis de Ouro Preto

 

A Lúcio Costa



Solta, suspensa no espaço,
Clara vitória da forma
E de humana geometria
Inventando um molde abstrato;
Ao mesmo tempo, segura,
Recriada na razão,
Em número, peso, medida;
Balanço de reta e curva,
Levanta a alma, ligeira,
À sua Pátria natal;
Repouso da cruz cansada,
Signo de alta brancura;
Gerado, em recorte novo,
Por um bicho rastejante,
Mestiço de sombra e luz;
Aposento da Trindade
E mais da Virgem Maria
Que se conhecem no amor;
Traslado, em pedra vivente,
Do afeto de um sumo herói
Que junta o braço do Cristo
Ao do homem seu igual.


In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959
 

 

 

Carlos Felipe Moisés

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Leonardo da Vinci, Embrião

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

 

 

 

 

 

Murilo Mendes


 

Saudação a Ismael Nery


Acima dos cubos verdes e das esferas azuis
um Ente magnético sopra o espírito da vida.
Depois de fixar os contornos dos corpos
transpõe a região que nasceu sob o signo do amor
e reúne num abraço as partes desconhecidas do mundo.
Apelo dos ritmos movendo as figuras humanas,
solicitação das matérias do sonho, espírito que nunca descansa.
Ele pensa desligado do tempo,
as formas futuras dormem nos seus olhos.
Recebe diretamente do Espírito
a visão instantânea das coisas, ó vertigem!
penetra o sentido das idéias, das cores, a tonalidade da Criação,
olho do mundo,
zona livre de corrupção, música que não pára nunca,
forma e transparência.


In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959
 

 

 

Nauro Machado

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William Bouguereau (French, 1825-1905), Admiration Maternelle

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Murilo Mendes


 

Texto de consulta


1
 


A página branca indicará o discurso
Ou a supressão o discurso?
 


A página branca aumenta a coisa
Ou ainda diminui o mínimo?
 


O poema é o texto? O poeta?
O poema é o texto + o poeta?
O poema é o poeta - o texto?
 


O texto é o contexto do poeta
Ou o poeta o contexto do texto?
 


O texto visível é o texto total
O antetexto o antitexto
Ou as ruínas do texto?
O texto abole
Cria
Ou restaura?
 

 


2
 


O texto deriva do operador do texto
Ou da coletividade — texto?
 


O texto é manipulado
Pelo operador (ótico)
Pelo operador (cirurgião)
Ou pelo ótico-cirurgião?
 


O texto é dado
Ou dador?
O texto é objeto concreto
Abstrato
Ou concretoabstrato?
 


O texto quando escreve
Escreve
Ou foi escrito
Reescrito?
 


O texto será reescrito
Pelo tipógrafo / o leitor / o crítico;
Pela roda do tempo?
 


Sofre o operador:
O tipógrafo trunca o texto.
Melhor mandar à oficina
O texto já truncado.
 

 


6
 


A palavra cria o real?
O real cria a palavra?
Mais difícil de aferrar:
Realidade ou alucinação?
 


Ou será a realidade
Um conjunto de alucinações?
 

 


7
 


Existe um texto regional / nacional
Ou todo texto é universal?
Que relação do texto
Com os dedos? Com os textos alheios?
 


(...)
 

 


9
 


Juízo final do texto:
Serei julgado pela palavra
Do dador da palavra / do sopro / da chama.
 


O texto-coisa me espia
Com o olho de outrem.
 


Talvez me condene ao ergástulo.
 


O juízo final
Começa em mim
Nos lindes da
Minha palavra.
 


Roma, 1965


In: MENDES, Murilo. Convergência, 1963/1966: 1 — convergência; 2 — sintaxe. São Paulo: Duas Cidades, 1970.
 

 

 

Artur Eduardo Benevides

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Da Vinci, Cabeça de mulher, estudo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Murilo Mendes


 

O mau samaritano
 


Quantas vezes tenho passado perto de um doente,
Perto de um louco, de um triste, de um miserável,
Sem lhes dar uma palavra de consolo.
Eu bem sei que minha vida é ligada à dos outros,
Que outros precisam de mim que preciso de Deus
Quantas criaturas terão esperado de mim
Apenas um olhar – que eu recusei.
 

 

In: A poesia em pânico. Rio de Janeiro, Cooperativa Cultural Guanabara, 1938.

 

 

 

Benedicto Ferri de Barros

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Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg