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Leo Gonçalves

leogonsalves@gmail.com

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail
 

Poesia:

 


 
Vera Queiroz

Ensaio, crítica, resenha & comentário: 

 


Fortuna:


Conceição Paranhos
 

Alguma notícia do(a) autor(a):

 

Leonardo Gonçalves nasceu em 1975 em Belo Horizonte. É o autor dos livros WTC BABEL S. A.  e das infimidades (poemas, 2004).

Traduziu, em parceria com Mário Alves Coutinho, o livro Canções da Inocência e da Experiência (Crisálida, 2005). Isso, poemas de Juan Gelman, foi publicado pela editora UnB, traduzido em parceria com Andityas Soares de Moura. A tradução que fez da comédia O doente imaginário, de Molière teve sua segunda edição revista em 2008.

Traduziu poemas de Léopold Sédar Senghor (Revista Roda, março de 2006), Julio Cortázar (Suplemento Literário de Minas Gerais, janeiro de 2002) e muitos outros como: Paul Éluard, Allen Ginsberg, William Burroughs, Jacques Prévert, Gérard de Nerval, Aimé Césaire, Birago Diop, Léon Laleau, Heriberto Yépez. É colaborador, há alguns anos, da Revista Etcetera (www.revistaetcetera.com.br). Foi um dos idealizadores, e editores, ao lado de Letícia Féres, Anderson Almeida e Janine Rocha Resende, do jornal Estilingue :: literatura e arredores (www.estilingue.tk).

Participou, entre 2004 e 2006 do grupoPOESIAhoje, espécie de núcleo de criação e pesquisa de poéticas, performances e intervenções poéticas, ao lado de Julius Cesar, Lenise Regina, Letícia Féres, Michel Mingote e Renata Cabral.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

Leonardo Gonçalves

Antologia antilhana

Um livro inventa o presente

 

 “Negritude: o conjunto de valores de civilização do mundo negro”, proclamava, em meados dos anos 1930, um dos movimentos de maior impacto cultural nos países africanos e da diáspora, especialmente (mas não só) nos de língua francesa. Levado a cabo em Paris pelo martinicano Aimé Césaire, o guianense Léon Gontram Damas e o senegalês Léopold Sédar Senghor, a negritude é, ainda hoje, um grande exemplo de revolução literária e cultural como reação ao problema do racismo e pela afirmação dos valores culturais do homem no planeta. Sua proposta se baseava em uma inversão da ordem vigente: o artista usando as armas do opressor (que dizia “negro” como forma de discriminação) a favor dos valores culturais de seu povo.  

A negritude já havia marcado duas décadas de vida quando, em 1948, surge a primeira edição da Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de langue française [Antologia da nova poesia negra e malgaxe de língua francesa]. Sua publicação ocorria por conta das comemorações em torno ao centenário da revolução comunista ocorrida na França em 1848, ano do decreto que abolia a escravatura nas colônias francesas, tornando o Estado responsável pela escolarização de todos os habitantes das colônias, sem discriminação de raça ou credo. A publicação desta antologia serviria como um re-definidor e um divisor de águas para o movimento, servindo de referência para artistas e leitores de todo o mundo. 

Encarregado pela organização, Léopold Sédar Senghor era um poeta com apenas três livros publicados e professor de letras clássicas na universidade de Tours, na França. O convite tinha chegado por parte do editor Charles-André Julien, que num “Avant-propos”, incluído em edições subsequentes, comentava: “Esta reunião, Léopold Sédar Senghor a constituiu não somente com gosto, mas com amor. Filólogo erudito, ele conservou, entretanto, uma alma de poeta inteiramente nova. Nenhum preconceito de escola influenciou sua escolha e essa escolha é excelente tendo sido inspirada somente pelo seu culto à beleza e sua fé na eminente dignidade da negritude. Não poderíamos esperar deste homem probo e corajoso uma disciplina conformista. Se alguns cantos de revolta que ele manteve estão às vezes entre os mais belos, é porque eles não são menos significativos. A seleção de Senghor foi feita por um espírito livre”.

Para compreender a importância deste livro, basta termos em conta que, na ocasião do seu lançamento, ainda não se falava em “negritude” no Brasil, termo que só entraria para o nosso repertório em princípios dos anos 50, talvez mesmo por efeito da repercussão desta Antologia. Como bem lembra Julien, o que se viu nos anos seguintes foi uma imensa revolução entre os povos negro-descendentes, a começar pela a emancipação de diversos países, a conscientização da “negritude” em todos os lugares que traziam a marca africana em sua formação, experiências que marcaram a história de povos como as lutas dos movimentos negros nos EUA, em toda a América e na África. Tudo isto colaboraria para que esta antologia se tornasse um tipo de manifesto, de grito de libertação para negros e não-negros dos quatro cantos do planeta.

Além dos poetas reunidos, a antologia contava ainda com um prefácio exortativo de Jean-Paul Sartre, intitulado “Orfeu negro”. “O que vocês esperavam ao arrancar a mordaça que fechava essas bocas negras? Que elas iriam entoar elogios?” O filósofo demonstra a força da palavra desses poetas, tocados por um sentimento de revolta dos mais autênticos. “Negros que se olham, sem se preocupar conosco [brancos europeus]. Que nos olham e nos envergonham por estarmos sendo vistos – nós que temos gozado do privilégio de ver, pelos milênios afora”. Sartre aproveita para anunciar poetas desta antologia (Aimé Césaire, por exemplo), como estando entre os mestres da língua francesa. O entusiasmo de Sartre é apenas o começo da antologia. 

Numa espécie de preâmbulo a cada autor, Senghor inclui uma espécie de “notícia”. Sobre o guianês Léon Gontram Damas, que abre a antologia, ele diz: “Poesia essencialmente não sofisticada. Feita de palavras de todos os dias, nobres ou grosseiras, mais freqüentemente das palavras simples e das expressões do povo”. Segundo ele, em sua poesia, o ritmo se sobressai à melodia:

 

Eles vieram esta noite em que o

tam

            tam

                        rolava de

                                   ritmo em

                                               ritmo

                                                           o frenesi

dos olhos

o frenesi das mãos o frenesi

dos pés de estátuas

DEPOIS

quantos de MIM

morreram

depois que eles vieram naquela noite em que o

tam

            tam

                        rolava de

                                   ritmo em

                                               ritmo

                                                           o frenesi

dos olhos

o frenesi das mãos o frenesi

dos pés de estátuas.

 

São ao todo 16 poetas. Cada qual incluído a partir do seu local de origem: Guiana, Martinica, Guadalupe, Haiti, África Negra e Madagascar (Malgaxe). Surpreendentemente, os poetas ali presentes não são apenas os signatários do movimento. Escritores de diferentes gerações e que produziram seus poemas em épocas diferentes. O haitiano Léon Laleau, por exemplo, teve seus primeiros livros publicados nos anos 1920, ao passo que David Diop, havia nascido em 1927, um jovem autor inédito.

Senghor comentaria mais tarde, num texto hoje incluído na sua Oeuvre poétique: “a aventura dos poetas da Antologia não foi um empreendimento literário, sequer um divertimento; foi uma paixão”. O desejo era, sem dúvida, o de transbordar daquelas páginas e realizar transformações efetivas na percepção do homem, no que tange às questões do negro no planeta: “O Negro singularmente, que é de um mundo onde a palavra se faz espontaneamente ritmo quando o homem está emocionado, dado a si mesmo, a sua autenticidade”. Aimé Césaire:

Minha negritude não é uma pedra, sua surdez escoiceada

contra o clamor do dia

minha negritude não é uma nesga de água morta

sobre olho morto da terra

minha negritude não é nem uma torre nem uma catedral

 

ela mergulha na carne rubra do chão

ela mergulha na carne ardente do céu

ela fura o sufoco opaco de sua destra paciência

De cada lugar, ele inclui alguns poetas, cada qual por seus motivos: a Martinica, é representada pelo já citado Aimé Césaire, grande amigo de Senghor (que faleceu em abril de 2008 aos 94 anos, rodeado de homenagens em todo o planeta), Gilbert Gratiant (que escreve em Crioulo) e Étienne Lero, personagem chave das movimentações políticas da negritude nos anos 1930. De Guadalupe, Guy Tirolien e Paul Niger. Do Haiti: Jacques Roumain, Jean-F. Brière, René Belance e Léon Laleau. Este último, poeta do modernismo haitiano, nascido em 1892, homem político de importância para a história de seu país. Foi membro do governo haitiano algumas vezes e um dos responsáveis pelo acordo de desocupação americana do Haiti no começo dos anos 1930. Um de seus poemas nos remete indiretamente ao modernismo brasileiro e à antropofagia (movimento que considero o correlato da negritude no Brasil):  

Canibal

O desejo selvagem, o ardor,

De misturar o sangue e as feridas

Aos gestos e caretas do Amor

E de achar, debaixo das mordidas

Que perpetuam o sabor dos beijos,

Os soluços da amante e os seus ais...

Ah! rudes e intranquilos desejos

de meus antepassados canibais...

A África Negra, ao contrário do esperado, tem poucos representantes: Birago Diop, Léopold Sédar Senghor (incluído na antologia a pedido do editor, pois ele mesmo havia feito votos de não fazê-lo) e David Diop. Este último, o mais jovem, contava apenas 21 anos, e o único nascido na Europa, filho de mãe camaronesa e pai senegalês. David morreria poucos anos mais tarde a caminho da África e é o autor de um dos mais célebres poemas sobre o continente (poema não incluído na antologia): “Afrique mon Afrique”. Quanto a Birago Diop, Senghor comenta: “é mais conhecido como contista. Mas na África Negra, a diferença entre prosa e poesia é mais uma questão de técnica e quão magra!” Seus melhores poemas são os de inspiração africana, poemas esotéricos de circuncidados:

 

Viático

 

Em um dos três canários

dos três canários onde certas noites retornam

as almas serenas,

o sopro dos ancestrais,

dos ancestrais que foram homens,

dos ancestrais que foram sábios,

Mãe enxarcou três dedos,

três dedos de sua mão esquerda:

o polegar, o indicador e o maior.

Eu enxarquei três dedos,

três dedos de minha mão direita:

o polegar, o indicador e o maior.

 

Com seus três dedos vermelhos de sangue,

de sangue de cachorro

de sangue de touro

de sangue de bode,

Mãe me tocou por três vezes.

Tocou minha testa com o polegar,

com o indicador meu peito esquerdo

e meu umbigo com seu dedo maior.

Eu estendi meus dedos rubros de sangue,

de sangue de cachorro,

de sangue de touro

de sangue de bode.

Eu estendi meus três dedos aos ventos,

ao vento do norte, ao vento do nascente,

ao vento do sul, ao vento do poente;

e ergui meus três dedos na direção da Lua,

da Lua cheia, a Lua cheia e nua

quando ela foi ao fundo do canário maior.

 

Afundei meus três dedos na areia,

Na areia que se resfriara.

 

Mãe disse: “Vai pelo Mundo, vai,

pela Vida Eles estarão em seus passos”.

 

Desde então eu vou,

eu vou pelas sendas,

pelas sendas e pelas estradas,

para além do mar e mais além, mais longe ainda,

para além do mar e mais além, mais longe ainda,

para além do mar e para além do além.

E quando chego perto de gente ruim,

os homens de coração negro,

quando me aproximo dos invejosos,

os homens de coração negro,

à minha frente avançam os sopros dos meus ancestrais.

Para fechar a antologia, aparecem os malgaxes: “não achei bom abrir mão de Madagascar”, comenta o antologista. Além de Jacques Rabémanjara e Flavien Ranaivo, ele inclui ali um dos poetas mais famosos da Grande Ilha: Jean-Joseph Rabéarivelo. Personagem inquieto, nascido em Tananarivo que dedicou sua trágica vida à poesia. Vida que, aliás, está repleta de acontecimentos extraordinários, excessos e ideias radicais. Ao lirismo de sua poesia se misturam elementos mágicos e rituais próprios da tradição malgaxe.  

Há uma água viva

que jorra no desconhecido

mas que molha o vento

que você bebe

e aspira para descobri-lo

detrás desta dura rocha

caída de algum astro sem nome.

 

Você se inclina

e seus dedos acariciam a areia.

Súbito você repensa em sua infância

e nas imagens que o seduziram –

sobretudo aquela onde essas palavras ingênuas mas surpreendentes se achavam

“A VIRGEM DAS SETE DORES”

 

E eis aqui uma outra água viva

que não cessa de surgir sob seus olhos,

mas que atiça a sua sede:

sua sombra

– a sombra de seus sonhos –

vira séptuplo

e, emergindo de você,

entorpece a noite já densa

Hoje, passados 60 da primeira edição, fica a admiração pelo fato desta antologia manter ainda o seu prestígio, traduzida para outros idiomas (destaque para o inglês e o castelhano – em português, ainda não há) e tendo suas tiragens constantemente esgotadas. O destino de obras do gênero costuma ser mais curto e imediato – cumprindo sua função de divulgar autores desconhecidos. Certamente, concorrerá para tal impacto, o prefácio atemporal de Jean-Paul Sartre. Mas fazendo uma avaliação mais ampla, veremos que para além de ser um livro de afirmação do negro, a Anthologie teve o mérito de abrir as portas para algo pouco explorado até aquele momento: o olhar dos grandes centros desviado para o que estava sendo produzido nos países subdesenvolvidos, tornando-os, assim, visíveis em todo o planeta.

Num texto de 1998, intitulado “A antologia como manifesto & como épico que inclui a poesia”, o poeta e tradutor norte-americano Jerome Rothenberg tenta distinguir dois tipos de antologia: “aquelas que me/nos enganam com um falso sentido de conclusão & de autoridade [canônicas], em oposição àquelas (...) mais raras e úteis que principiaram & e com isso mudaram o presente [que possuem um caráter de manifesto]”. Me parece claro que esta antologia, organizada por Léopold Sédar Senghor se insere na segunda proposta. Uma deliciosa antologia de poetas negros que à sua maneira ajudaram a inventar o presente.

(Publicado originalmente na revista Roda – Arte e Cultura do Atlântico Negro – Nov, 2008)


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

As Carnaubeiras de Catuana

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Blake, Death on a Pale Horse

Leonardo Gonçalves

 

William Blake Hoje

 

 

Muito curiosa é a maneira como alguns poetas acabam se tornando populares através dos tempos. O artista da palavra é muitas vezes lembrado, não por um verso célebre ou uma frase famosa, mas pela sua existência extraordinária.

É o caso de Lord Byron, por exemplo, personagem símbolo do romantismo mundial, que ficou mais conhecido pelos seus feitos, desregramentos e atos de heroísmo que por suas próprias palavras, as quais não lembramos uma sequer. Tal não acontece com todos. Alguns são autores de frases famosíssimas e às vezes tão inesquecíveis quanto certos adágios populares. Quem não se lembra de “No meio do caminho tinha uma pedra” ou o “E agora, José?”, de Drummond. Ou do célebre “Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure” de Vinícius de Moraes? Destes, nos fica um pouco da obra, ainda que sejam fragmentos.

O poeta inglês William Blake (1757-1827), autor de “Canções da Inocência e da Experiência”, poderia encaixar-se perfeitamente nos dois casos. Homem de personalidade geniosa, irascível, amável, sempre tido por seus contemporâneos e pósteros, como um louco – falsa acusação que povoou sua reputação pelo tempo afora. Mas não só isso. Alguns de seus aforismos tornaram-se popularíssimos nos mais longínquos recantos da terra.

Foi Ronaldo Bastos, letrista brasileiro, parceiro de Milton Nascimento, quem escreveu em uma canção intitulada “Amor de índio” o verso: “Tudo que move é sagrado”. Certamente uma tradução poética para o aforismo que fecha o longo poema de Blake “O Casamento do Céu e do Inferno” (“For every thing that lives is holy – Pois tudo que vive é sagrado”[i]). A própria canção de Ronaldo Bastos é uma colagem de aforismos singelos, e parece ser inspirada em Blake – especialmente o poema “Augúrios de Inocência”, onde o bardo inglês demonstra uma delicada sensibilidade às coisas deste mundo: “Ver um Mundo num Grão de Areia/ E um Céu numa Flor Selvagem/ Segurar o infinito na palma de sua mão/ E a eternidade numa hora.”.

Blake teve visões extraordinárias desde criança. Certa vez foi castigado por sua mãe por contar sobre uma conversa que havia tido com o profeta bíblico Isaías. Consta que viu Deus aos quatro anos de idade, olhando-o pela janela. As “Canções da Inocência e da Experiência”, que foram publicadas pelo próprio autor a partir de 1794, estão repletas de anjos e cordeiros. Talvez por isso, muitos atribuam a ele uma visão exclusivamente mística da vida. Mas isso é um erro. É inegável o seu misticismo, mas talvez devêssemos dizer que Blake era, antes de tudo, poeta. Por isso, a bíblia, para ele, não é exatamente o manancial da verdade sagrada, mas uma grande obra produzida pelo “Gênio Poético” universal. Foi ele que, ainda no século XVIII anunciou em “All Religions are One” (Todas as Religiões são uma Única): “Os Testamentos Judeu & Cristão são Uma derivação original do Gênio Poético.”.

O “Gênio Poético”, ou Imaginação, essa enorme capacidade do homem de criar a partir daquilo que percebe, é a premissa essencial do pensamento de Blake. Mas, como “Opposition is true friendship (Oposição é amizade verdadeira)”, é preciso lembrar que essa capacidade estava sendo suprimida (e continua ainda hoje) pela Razão, a quem ele nomeava em sua poesia “Urizen” (your reason, vossa razão, entidade mítica simbolizada por um velho homem empunhando um grande compasso e que, por vezes, aparece encarnada na figura de Isaac Newton. Urizen, o grande limitador, é o destruidor da percepção humana.)

A própria poesia dele já é um grande incentivo à imaginação. E assim chegou até nós a sua frase talvez mais célebre: “Se as portas da percepção fossem limpas tudo apareceria ao homem como é: infinito.” Esta chegou aos nossos dias por ter sido a origem do nome da banda norte-americana The Doors. Mas, segundo contam, o líder da banda, Jim Morrison, não faz alusão ao aforismo de Blake, embora haja indícios de grande admiração à poesia dele. Ao dar o nome para o grupo de rock, lembra-se do livro de Aldous Huxley, “The doors of perception” (“As portas da percepção”[ii]), estudo publicado em 1953, onde o autor de “Admirável mundo novo” descreve suas experiências com a mescalina.

Nesse livro, dentre as descrições que Huxley faz do uso da droga, inclui comentários sobre a obra de William Blake, demonstrando uma imensa paixão e uma rara compreensão dela. No decorrer de “As portas da percepção”, ele deixa clara a diferença entre o seu universo pessoal e o de Blake, mas tenta em vão encontrar nos efeitos do alucinógeno, algo das experiências místicas do poeta.

Jim Morrison lança sua banda no cenário mundial do rock’n roll nas proximidades dos anos 70, época do psicodelismo e demonstra simpatia pela poesia visionária e revolucionária do século XIX e XX (Blake, Whitman, Ginsberg). Por isso, ao se inspirar no livro de Huxley, estabelece uma relação, ainda que indireta, com a obra de William Blake. Isto contribuiu para que Blake se tornasse um dos heróis da contracultura e viesse tocando cada geração de admiradores do rock e da poesia desde os anos 60[iii].

Mas espero não decepcionar os aficionados: não há o menor indício de que o bardo inglês tenha feito qualquer uso de drogas para “expandir” sua percepção, o que seria um anacronismo (já que os experimentos científicos com drogas só se popularizariam com a ciência behaviorista no século XX). Mas havia certas drogas em uso corrente em sua época. Outro poeta, contemporâneo de Blake, Samuel Taylor Coleridge (um dos fundadores do romantismo na Inglaterra), teve sua vida e, sobretudo sua carreira literária comprometidas por causa do ópio, no qual era viciado. No decorrer do século XIX, outros escritores trouxeram para a literatura relatos que tratam de experiências pessoais com drogas. É o tema de obras como “Confessions of an english opium eater” (Memórias de um comedor de ópio), de Thomas De Quincey e do célebre “Paraísos artificiais” de Charles Baudelaire, que trata de drogas como o vinho, o haxixe e o ópio.

Mas o aforismo de Blake sobre a percepção trata de algo muito mais simples: a percepção da própria realidade. É que o furor do capitalismo industrial-cientificista, que surgia em sua época, prenuncia uma era de apatia e morte espiritual. E já então, passava por “normal” a exploração exacerbada do trabalho de quem quer que fosse. Ou seja, o óbvio passava desapercebido. E ele afirma, em sua constante atitude de contestação social: “Como todos os homens são semelhantes na forma visível, Então (e com a mesma infinita variedade) todos são semelhantes no Gênio Poético”.

O “Gênio Poético” blakeano é a imaginação. Talvez por isso, sua obra tenha se casado tão bem com a ideologia dos hippies. Mas para estes, admiradores dos paraísos artificiais que são, aquela divisa se soma a esta: “A estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria”.

E com ela, os leitores apaixonados de poesia, se lembrarão de outro personagem radical, escandaloso e libertador: o poeta americano da geração beat, Allen Ginsberg. Com ele os versos de Blake tornam-se verdadeiros gritos de liberdade, e na prática! já que sua poesia é um manancial de alucinógenos e sua própria vida, um maravilhoso coquetel de excessos. O próprio Ginsberg não cessou de fazer referências incontáveis à poesia do bardo inglês, seja musicando as “Songs of Innocence & Experience”, seja exaltando a poesia de Blake em seus versos[iv].

Mas para entender blakeanamente essa frase, talvez precisássemos deste outro aforismo: “Nunca saberás o que é suficiente a não ser que saibas o que é mais do que suficiente.” Ou seja, não bastam disciplina e auto-negação (como supõe a religião e a moral) para que alguma sabedoria penetre em nós. É preciso paixão e entrega no seu mais sublime grau de excesso, num incessante casamento dos opostos para sairmos do que Blake chama de “Inocência” ou “Experiência” para entrarmos no mundo da inocência experiente ou da experiência inocente, que é o progresso.

Hoje, aquele poeta que era mal visto por seus contemporâneos, tornou-se um sujeito exemplar, cuja radicalidade de pensamento propõe, sem nenhuma concessão, uma verdadeira revolução humana. Não uma revolução social ou política, mas uma revolução cujo palco é o próprio indivíduo. Onde o conceito de Amor deve ser reformulado para que haja, enfim, a comunhão entre os homens. Sua poesia, que foi produzida numa época de revoluções, fala a todas as épocas.

Não surpreende, pois, que poemas como “O Menino Negro”, “O Limpador de Chaminés” ou “Quinta-Feira Santa” falem tão intensamente à situação atual do Brasil:

 

Quinta-Feira Santa[v]

 

É coisa santa de se ver,

Em terra fértil e opulenta,

Deixar na miséria um bebê,

Nutrido por mão avarenta?

 

Este grito é uma canção?

Será ela de alegria?

E tantas crianças pobres?

É uma terra de indigência!

 

E seu sol nunca tem brilho.

Seus campos secos, desertos

Seus caminhos, com espinhos

E lá é um eterno inverno.

 

Pois onde quer que o sol brilhe

Onde quer que a chuva assente:

Bebês não podem passar fome

Nem miséria assustar a mente.

 

Esse é o homem que foi tachado de louco em vida e que assim seguiu pelos séculos seguintes (“Se outros não tivessem sido loucos. nós deveríamos sê-lo.”). Seus aforismos cabem, hoje, até mesmo numa conversa corriqueira e nos ensinam sempre algo novo e subversivo. “Se o louco persistisse na sua loucura ele se tornaria sábio”, diria Blake.


 

[i] As traduções dos aforismos são tiradas do livro “Tudo que vive é sagrado”, poemas de William Blake e D. H. Lawrence (trad. Mário Alves Coutinho). Crisálida, 2001.  

[ii] “As portas da percepção/Céu e Inferno”, 2ª edição, publicado pela editora Globo com prefácio de Manuel da Costa Pinto: São Paulo, 2002. 

[iii] É de Camille Paglia o seguinte comentário: “Nos Anos 60, a poesia e o rock estavam em sincronia. Rapazes cabeludos, descalços, sentavam-se com suas guitarras embaixo das árvores, lendo poesia. Os cantos bárdicos de Allen Ginsberg empurravam as litanias da natureza de Whitman, o surrealismo urbano de Hart Crane e os ritmos afro-americanos do jazz para Bob Dylan, cujas letras ásperas fizeram do rock uma forma de arte. Jim Morrison, do grupo The Doors, era um leitor onívoro, com uma memória fotográfica. A poesia saiu de moda do mundo do rock de hoje, e a música sofreu com isso. O rock perdeu sua espiritualidade e seu senso de missão.” (em “Sexo, arte e cultura americana.” SP: Companhia das Letras,1993). 

[iv] Incluo aqui a referência à gravação dada por Augusta Vono em seu livro “Allen Ginsberg: portais da tradição” publicado pela Massao Ohno em 1986: “William Blake’s Songs of Innocence and of Experience tuned by Allen Ginsberg, MGM/Verve Records. FTS-3083, 1970. No mesmo livro, Vono transcreve a seguinte fala de Ginsberg “Eu passei pela experiência de ouvir ‘The Sick Rose” lido pela voz de Blake como algo que se aplicava a todo o universo, como se estivesse ouvindo o destino de todo o universo, e ao mesmo tempo a beleza inevitável do destino. Agora eu só consigo me lembrar que foi muito bonito e espantoso. Mas foi um pouco amedrontador por acordar em mim o conhecimento da morte – da minha própria morte e da morte do próprio ser, e esta foi a grande dor.”  

[v] Do livro “Canções da Inocência e da Experiência”, poemas de William Blake (trad. Mário Alves Coutinho e de Leonardo Gonçalves). Crisálida, 2005.

 

 


 

 

 

 

 

 

14.11.2010