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Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

A Estrela de Davi
(salmo do bom pastor)


A estrela de Davi me ilumina
a cada entardecer, no crepúsculo,
quando há escuridão nas esquinas,
e a noite cai num véu que é só luto.

A estrela de que falo é do mar,
achada por Davi nas areias
onde ele se deitou, a sonhar
com as ondas que sopravam sereias.

O menino Davi, de quem falo,
é o bom filho de Sara. Tão raro
alguém ser bom assim: deu-me a estrela!

E a estrela de Davi me ilumina,
pois ela é tal e qual lamparina,
se lhe enfio dentro, acesa, uma vela.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

Deus e o Diabo
(no círculo vicioso da terra do sol)


Virou-se o diabo pra deus e disse:
— Quem sou eu, demônios! se não sou deus?
E deus, bondoso, respondeu, qual prece:
— Oh, céus! você é o que não quero meu.

O demo, esperto, retrucou, de pronto:
— Que não sou deus? que me fizeste resto
de ti? deixaste todo o mal pra mim?
Pronto, que o resto, em mim, te diminui.

Potência, ciência e presença, em ti,
não são totais, tu não és mais perfeito
... e fim de papo. E sumiu, a seu jeito.

Mas deus se arrependeu e, desde então,
corre atrás do diabo, feito um cão
caçando o rabo... (E o cão diz: — Nem te ligo!)

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Grief of the Pasha

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Ana Peluso

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

Anátema


Vogo na idéia vaga e vã do eu,
como se houvesse em mim um ser e um cerne,
uma alma inominada, em corpo inerme,
amálgama de fiat lux et breu.

Mimo a mim mesmo com um mimoso engano:
que o mundo existe como um fato meu;
que a vida é a imagem de ilusório véu,
tecido por mim (fio) o mundo (pano).

Fio-me que penso e existo e assim sou algo;
desfio meus véus, em busca de meu âmago,
mas desconfio que apenas seja imago...

Meu sumo é um oco totem hamletiano.
Do imane e ameno cenho, emana a senha:
a senda é ser não sendo (ou seja eu sonho).

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Cleópatra ante César

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Ronaldo Cagiano

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tintoretto, Criação dos animais

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

 O Jogo das Contas de Vidro

Aos poetas que li.


Qual alvo tisne, a lua tinge a noite
em tons argênteos, grises, plúmbeos, brancos.
A escuridão se esquina e cinge os flancos,
mal traçando o recanto em que se acoite.

O luar, com mãos de seda, audácia e zelo,
retira à noite o véu que a cobre espúrio;
e ilumina, de lilás a purpúreo,
tudo o que ao sol vai do azul ao vermelho.

À lua, o chão rural é mais bucólico
e o mundo urbano é um tanto mais insólito
do que revelam ser à luz do sol?

Talvez... Assim, qual lua, sem luz própria,
do corpo da poesia o poeta é cópia
— sinal especulado do farol.

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Pipelighter

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Ademir Demarchi

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

O Canto do Cisne


Quando me vi no instante derradeiro,
a musa das vontades (ela existe!),
num tom que é quase sempre terno e triste,
ofereceu-me o último desejo.

Não sei dizer que brumas me envolveram
nas lembranças de amores que não tive.
Que saudade me deu!... Desde as raízes,
degredos mal guardados soergueram.

Momento de magia e plenitude,
fremi no ardor de lívidos enlevos;
meu sonho se elevou que a mais nem pude.

Qual desejo matar?... Qual liberdade?...
Ó musa maga! música sem medos!
Na dúvida, Beethoven-me! Vivaldi-me!


 

 

 

Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

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Donizete Galvão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

Fiat Breu


Há pouco, fui brilhante.
Agora, brilho escapante,
ou escapadamente lusco
e fusco, ou busco um instante
qualquer, tropegamente.
Tão-somente, já não brilho
intensamente, como há poucos
instantes atrás.

Escapou-me o brilho reluzente
do primeiro instantâneo flash
de verídicas meta-observações,
que me conduziam a conclusões
deveras geniais, tal como eu
fosse capaz, um tanto mais
perceptivo para os tempos atuais.

Mas sou por demais insistente
e escrevo, sofregamente,
tentando segurar aquele flash,
capaz de dar-me luz de iluminação,
capaz de trazer-me compreensão
de densos organismos universais
e de mim mesmo, principalmente.

Mas é tudo um delírio,
ao final do que se escreve,
já sem brilho, tão breve...
mas já sem grilo, já leve,
até capaz de fazer-me sorrir.

 

 

 

Ticiano, Flora

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Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

Breu em Chamas


A não ser pelo fato de ser
meu melhor amigo, você
não me conhece. Ninguém me conhece.

Mas cê está tão perto!
Desde ontem que o olho há horas para sempre,
e você nem percebe o quanto estou distante...
eu dentro de meu próprio ventre.

São quilômetros de distâncias milimétricas
que nos separam,
eu e meu ventre,
do mais próximo sol poente de um olhar apaixonado.

E eu não vejo mais emoções
dentro de qualquer ventre,
pois o amor, pouco provável, esqueceu o caminho,
deitou em minha cama e dormiu,
fazendo uma fogueira de todas as minhas veleidades.

 

 

 

Titian, Noli me tangere

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Rosa Alice Branco

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos


 

Canto de Sereia
 

A Propósito de Lágrima Súbita


Da face do prazer, surgiu a lágrima,
como se fora mágica o viver.
Do riso e da alegria, veio o pranto
— testemunha de um canto de poesia.

Mas hoje, tão sozinha e triste, a gota
singelamente solta, assim... caminha
por sobre o corpo nu, livre de obstáculo
— só dor! — sem sustentáculo nenhum...

Vem do mar uma brisa de carícia
que beija sem malícia a pele e criva
em sal a solidão deste mergulho...

No solitário pulo, uma fusão
de lágrimas do rio com o vasto mar,
num encontro invulgar de dor e cio...

 

 

 

Henry J. Hudson, Neaera Reading a Letter From Catallus

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Affonso Romano de Sant'Anna