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José Hélder de Souza


 

Invitação da relva


Se a relva me pedir,
Deixo o caminhar aflito sobre estas terras altas.
E volto. Vou morrer onde nasci,
Casa alpendrada, coqueiro, mar e lua...


Ai, como doi-me a relva
a relvar sob meus pés,
não chego lá...
Saudades do meu mar me dói...
Ah! se a relva
relvando alto me pedisse...
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

José Hélder de Souza



Relvas do planalto

 

E agora me parece a cabeleira dos sepulcros, formosa e não cortada.
Eu te tratarei ternamente, grama ondulada,
Pode ser emanes do peito dosjovens.
Pode ser que eu os tivesse estimado, caso os houvesse conhecido,
Pode ser que provenhas de gente velha,
ou de pequeninos logo roubados ao colo materno,
E que sejas, aqui, o seio materno.

Walt Whitman
(Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos).



Relva,
vejo-te renascer, sobre a colina,
por cima das ruínas,
tumulares de meu povo,
te insinuas pelas brechas
da alvenaria — pedra e cal —
quebrada pelo tempo,
cabeleira vegetal, fria e verde,
dos desgrenhados mortos
sem memória nestas terras de adeuses.


Relva,
brotas pelas frestas tumulares,
cabelos crespos de meus mortos
despenteados na miséria
de suas vidas vagas.
Só tu relva agora és vida
e só és relva sobre a colina
dos meus sonhos mortos.



II


Enquanto é noite a relva cresce
e cobre a terra e os mortos,
sob a lua iridescem os cristais
do orvalho recamado em suas folhas
e pia a corjua escondida
nas sombras grossas das paredes tumulares
rachadas pelo tempo, pelo sol, a chuva
e o vento a ondular a relva,
despertada na frescurada da aurora,
já crescida.


No relvado a noite é densa,
só o sol e o vento estivais
virão, quando manhã, secar e pentear
os teus cabelos relva, espêssa relva
dos meus túmulos, relva só em cima,
em baixo a raiz profunda
dos meus mortos há muito sepultados
na colina coberta pela relva.



III


A pedra tumular coberta pela relva
não sente o sol em sua pele pétrea,
há uma delgada sombra entre o chão e a folha
— aí me escondo para sempre,
sob a relva,
pedra fria de meus sonhos
mortos.


Espero, um dia, a relva seja limpa
e dela surja tudo que almejei
para o meu povo,
agora enterrado
sob a relva.
 

   

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona

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Izacyl Guimarães Ferreira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

José Hélder de Souza


 

Noturno


Silêncio descomunal, na alcova
só o relógio é audível, rangendo
engrenagens, mastigando o tempo.


Silêncio. Solidão. Sombras.


Luz distante — a Lua, a lâmpada elétrica além do
jardim?—
vem e vara as sombras, através da janela
na limpidez das vidraças cristalinas,
e se esbate no quarto delineando coisas:
partes de retratos nas paredes,
os arabescos coloridos dos tapetes,
o vestido e o robe abandonados
nos braços da poltrona carmesim, a
cortina roçando o espaldar da cama;
luz a fulgir, vinda de longe, na prata
do garfo e da faca, no cristal do copo
e do frasco com água de lima para a sede e a febre,
postos, por entre frutas, sobre a credência.


Súbito o pêndulo fende o silêncio,
o relógio bate. Bate apenas uma vez,
repercutindo na alcova um som grave, lúgubre,
um só.


Por entre as sombras e o silêncio retomado,
a badalada dissemina a dúvida:
— Doze e meia da noite?
— Uma hora da madrugada?
— Uma e meia da manhã?


Na solidão silente da alcova
só permanece a certeza da insônia
num viver malsão de febre e angústias.
 

   

 

Caravagio, Extase de São Francisco

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Rodrigo Marques, ago/2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tintoretto, Criação dos animais

José Hélder de Souza



Derrota


Navega em proceloso mar singrado
sob o sibilar dos ventos, o esbroar
das vagas no costado, o madeirame
rangendo nos calafetos, enxárcias
e estais, o cordoame, gemendo,
estalando, vergas batendo,
bujarrona rota tatalando panos,
mastareu desarvorado, segue, sigo
por entre escolhos e parceis,
sem norte, sem fanal, nas sombras
à vante só as incertezas do naufrágio.
 

   

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Weydson Barros Leal

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Edições Cururu®

José Hélder de Souza



As horas e os dias elegíacos


Já te sentasta, alguma vez, sozinho,
num bar, numa cidade conhecida ou
desconhecida, e pediste uma cerveja?
Te servem a solidão com a bebida.


Ruminando a solidão, degusta-se
a vida, pobre branca vida.
A vida! A vida era fácil viver,
não havia ânsias.


                 Infância


— um água-pé boiando na lagoa —
Adelina, pobre menina, foi-se
como foram-se a água, a flor, o sonho.
Fábula desmentida, buscada sempre.
até agora, encanecido, debruçado
sobre a mesa — charco onde desenham-se
as sombras das passadas horas.


                 A agruras


de uma existência mole e retilínea.
Lembranças: — Domingo, incompleto dia,
findava com recitar de rezas na igreja,
a mãe era urna sombra roçagante.


                 Na casa antiga


a bandeirola da porta era bordada
e a febre delirante nela delineava
fantasmagóricos seres por entre os arabescos.
Carinhoso ressoar de vozes meigas,
das irmãs, da mãe, das tias e avós
emprestavam fala às irreais figuras.
Delírio, a febre não trouxe a esperada
morte, prossegui a fria branca vida.


                                         Um dia, inda febril,
                                         um rotundo gato preto,
                                         comeu-lhe o peixe da janta
                                         e a fome foi-lhe a primeira
                                         amarga lição existencial.


— "Acendrado amor terei por ti, senhora"...
O amor nascendo, parnasianos versos
servidos à mesa da escola antiga,
como jantar à adolescência inculta e néscia.
Moças de maiô na praia, masturbação,
espontâneo gesto, vago amor das putas
fruido com unção, saturnais sem termo
nos mais medonhos ermos
e se via belo e moço encarapítado
no docel do mundo, mas só,
como agora, no bar, alienado.


Sorve o gole da bebida amarga
e tem na vaga vista os tetos da cidade
hospedeira da adolescência tísica.
Tristes dias carcerários se esvairam
no hospital. Um só encanto: numa
janela onde esvoaçavam pombas,
uma moça de despedia e se mostrava,
raro amor sentiu pela figura vaga,
fez-se vero amante de mulher ausente.


Nascem as ânsias.
Um dia, à tarde, engraxando os sapatos
na Praça da República, sentado
ao pé da herma de Getúlio Vargas,
percebeu que já não era mais o tempo de Ezra Pound:
no rosto macilento do engraxate
toda a maltratada cara da humanidade.
— Aloizio, o poema é comício.


Numa esquecida lousa tumular
de engradeado e secular cemitério
da I eja Matriz de Aracati, leu,
um dia, atento e grave, a sentença
exata recordada agora a fitar o soco do copo:
"Não pedes-me conselhos, mas tos dou de graça:
escuta o mundo no que tem de audível,
não te embale o canto das sereias invisíveis.
Vê primeiro o homem que ao teu lado existe,
teus filhos, quando velho fores".


Só, servida a solidão
com a bebida, na cidade estranha, agora fita
as lonjuras infinitas do Pacífico, sentado
num bar a beira da Baia de São Francisco,
Califórnia, sorve o último gole vendo
através do vidro do copo cristalino, o fim da tarde,
um sol de ânsias a sumir no mar dourado
e o vento sibilante a cantar nas pedras
negras de Ponta de Lobos enervando ladradoras focas:


NeverMore... NeverMore... NeverMore...
 

   

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

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Maurício Matos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Filosofia

José Hélder de Souza



Crepúsculo plangente

 

...quando o sol da já declina...
   Guerra Junqueira        


 

Crepúsculo flamejante - nesta hora a minha avó Carmelina (há quanto tempo?) entrava na nave escura da igreja matriz de Massapê. norte cearense, para rezar ouvindo a "Ave Maria", de Charles Gounod, tocada, num harmônio, por sua filha Enoi, cega e muda de nascença - neste crepúsculo de agora, não menos rutilante, o sol meteu um raio através da vidraça e iluminou de face, duas pedras postas ao pé da estante, bem junto da bengala avoenga, seixos rolados ornando recanto desta sala sombria cheia de coisas e de recordações, como a da avó.

Uma das pedras, em forma de uma bola ovalada do tamanho de uma mão, veio do rio Corumbá, Pirinópolis, apanhada depois da festa de ano novo de 1983, a data deveria estar inscrita numa de suas rotundas faces, como lápide dos dias idos a vagar soltos na memória esgarçada, sem registro lapidar.

A outra, menor, também branca e arredondada, mas chata, sem qualquer grafia em suas faces, veio de longe, da praia do Camocim, ali o rio Coreaú derramando suas poucas águas no Atlântico, no Ceará, onde chorei meus primeiros desencantos, aos 10 anos.

Mas esta pedrinha a apanhei depois, bem depois, desiludido, quando lá fui, Já velho, procurar ( não encontrei) os dias de eu menino. As duas pedras, brancas como o leito dos rios que já foram, rememoram as idades, o sol insiste em luz sobre suas faces mortas não inscritas, mas cheias de visões.

Enquanto há luz crepuscular e recordativa, a visão sobe e ilumina, na mesma estante, alto do chão, um barco que nunca navegou: tem dois palmos, convés baixo, imita rebocador: na coberta superior dá proa carrega, como únicos marujos, dois copinhos; na meia nau, uma achatada garrafa de cristal, continente translúcido de avinhados sonhos, lembrança de velhos dias e amoráveis encontros com meu pai Raymundo Olavo que já se foi sem dizer adeus mas deixou a saudade feito barco em miniatura navegando em minha estante me enchendo de etílicos sonhos, com dois copos para mim mesmo que vivo e libo solitário.

Os raios do sol ainda me iludem e varam a vidraça mostrando uma coruja feia, esculpida num tronco, e pousada em ilusórios livros também de madeira. Pássaro de inaudita face, grandes asas fechadas sobre o tronco curto, sem vôo algum, veio de longe. Seus cornos e seus olhos apagados são de depois dos amores praianos da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, aí como dói ser antigo, vive-se olhando para si mesmo a - fealdade da coruja - perdidos os encantos juvenis.

Atrás da coruja, em elegante moldura, o sol, que ainda insiste em iluminar esta pequena sala em que abrigo meus desencantos, velhos e novos, mostra um antigo retrato de dois jovens sob a chuva caminhando, metidos em capas de "shantung", na Avenida Barão do Rio Branco, no Rio de Janeiro: eu mesmo quando ainda freqüentava as alegres casas da rua Alice, metido num fato de casimira preta riscado de listas brancas que a capa de todo não escondia, fumando o cigarro da ilusão; e ao lado, meu inesquecível amigo Bolívar (Bolivár, como se dizia) Costa, natural de Ubajara da Serra Grande, Ceará, mas o único cosmopolita que já vira, capaz de dissertar sobre Arist6teles ou Platão e dizer quantas faces tem o universo, curvo ou plano, medieval ou eisensteiniano e, por entre sabença, o gosto pela arte literária, a recitar António Nobre, o "Auto das Ânsias": "Desde o Ódio ao Tédio. Moléstias d'Alma para as quais não há remédio". Igual só ao meu nojo de agora, neste crepúsculo... Morreu, o Bolivár, quando não devia. deixando-me a imagem de minha inovidável mocidade, o retrato na parede, perto da estante e da coruja, mostrando minha antigüidade e a sua irreparável ausência.

O sol e seus persistentes raios vão subindo - quanto mais sobem mais vai se indo para o poente o astro - e vejo um pássaro pousado sobre dicionários. Pequeno, feito não sei de que matéria, veio da China, bico amarelo, cocuruto erguido em crista, rabo longo, fecha as asas sobre altaneiro corpo, nunca voou desde que o comprei em Manaus, quando lá fui com minha amada Neide, faz anos, ver como correm os rios e como voam os pássaros, não este pousado em minhas ilusões. Não sei que música tocando na eletrola, me diz: - Passarinhos são assim mesmo, só os vemos quando pousados, se voam nunca mais os veremos, sonhos perdidos.

Perto do memorável passarinho quietíssimo, umas rubras rosas de plástico - puros enganos - postas em esgalgados jarros, dois, de pedra sabão: tudo, sob os últimos raios do sol, tediosas evocações - a avó encantadora da infância, o sortilégio das pedras, dos rios, o barco navegando em seco nas recordações paternas, a soturna coruja e o fascínio do pássaro imóvel, os rapazes do retrato na parede, as rosas vermelhas dos sonhos, tudo se foi, tudo se vai, o sol morrendo, eu vendo, pela janela, seu descair no horizonte fugidio e, no escuro de agora, as incertezas de outro amanhecer, trevas, talvez, para sempre ...


Brasília, ao crepúsculo do dia 21 de fevereiro de 1996.
 

   

 

Inocência, foto de Marcus Prado

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João Scantimburgo