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Florisvaldo Mattos 

florismattos@uol.com.br

Poussin, Acis and Galatea

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia:


Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Fortuna crítica: 


Alguma notícia do autor:

 

Florisvaldo Mattos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

 

Bernini_Apollo_and_Daphne_detail

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Florisvaldo Mattos


 

Bio-bibliografia:

 

O poeta baiano Florisvaldo Mattos (1932-) é dono de umaFlorisvaldo Mattos dicção que combina rigor formal com alta expressividade lírica. Para sentir, desde logo, a força desse poeta, leia ao lado o poema "Passos e Acenos". Trata-se de um texto amoroso, no qual um homem corteja uma mulher. Como tema, nada mais banal. Mas o que se vê aí é um texto recheado de artimanhas e surpresas. Um soneto tenso, erótico, elegante. Observações similares se podem fazer sobre os demais poemas.

Formado em direito, Florisvaldo Mattos optou pelo jornalismo, atividade que exerce até o presente. Nos anos 60, integrou em Salvador o grupo da chamada Geração Mapa, liderado pelo cineasta Glauber Rocha.

Entre suas obras publicadas, estão Reverdor (1965); Fábula Civil (1975); A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior (1996); e Mares Acontecidos (2000). Ele lança agora um ensaio, Travessia de Oásis – A Sensualidade na Poesia de Sosígenes Costa. Nesse volume, Florisvaldo analisa a trajetória poética do também baiano Sosígenes (1901-1968) e até encontra aproximações entre a obra dele e a do grego Konstantinos Kaváfis (1863-1933).


 

Fonte: Ave, palavra! de Carlos Machado
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Florisvaldo Mattos


 

El pibe maldito


Houve muitos Rimbaud no mundo (e haverá),
desde aquele fatídico dia em que o próprio
embrulhou-se com os fados por causa de Verlaine.
Charlie Parker, inflado de heroína em Camarillo,
sax em febre, já foi o Rimbaud do Jazz.
O cinema teve seu Rimbaud em Pasolini,
abrupta câmera a cerzir sem titubeios,
arrastado para o cerco da noite em Óstia.


Tu serás para sempre o Rimbaud do esporte;
de todos, do futebol nem se fala, enredado
na tristeza que sacode de julho
chão portenho.
Em teus pés a bola, planeta submisso,
rola com júbilo entre galáxias de cristal.
Merecias um conto de Borges, um poema de
Lugones, tanto tens no íntimo de espelho
e labirinto;
na face, muito de sonho, nunca de deserto,


Desertos são os que agora estão te olhando,
jamais os que te olharam e aplaudiram,
enquanto o planeta rolava, intumescido.
Agora és músculo e silêncio no vidro opaco
do sonho interrompido, estrela sob facas,
ruindo em pleno sol da manhã que tarda.
Pesadelo dentro do verde quadrilátero,
jamais aceitas linhas fora das quatro linhas.


Preso a um tris lance de dados, roleta russa,
de esquerda rolas o tambor do mundo
sem esquerda,
além dos noventa minutos (nunca mais
haverá dois tempos de quarenta e cinco
minutos no jogo fechado de teus dias)
de tua impaciência, tua estudada altivez,
que muitos chamam de arrogância,
mistério criollo de sangue ressentido.


Som de bandoneon travesso, tango nostálgico
deslizando na calçada de San Telmo,
e tudo mais que ferve eterno Buenos Aires.
Despedaçado mas íntegro como um boêmio
de província, testa enrugada, deus derreado,
de mistura com terra e vinho, caminhas
por Corrientes, Florida e La Recoleta,
filho do risco, neto do desamparo,
pronto para vôo à borda do penhasco
que iluminas. Contra ti nada podem
o tempo regulamentar e as regras centenárias.


(Copa do Mundo, after Argentina, julho de 94)
 

 

 

Leonardo da Vinci,  Study of hands

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Dora Ferreira da Silva

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Maja Desnuda

 

 

 

 

Florisvaldo Mattos


 

Campesino


Como folhas caindo num deserto,
humanas resistências vão caindo
sobre campo sem sol. Peito coberto
de um só grito esperança vai cobrindo.


Rude labor de enxadas consumindo
sangue que dá de sangue um sonho certo,
esperanças do amanho já sumindo
na sede de esperança que está perto.


Amargas deslembranças param, vendo
no íntimo do espetáculo chuvoso
a aparecido desaparecendo.


Antes que o amor se ausente ao chão sem húmus,
já baixam sobre o campo generoso,
as águas da manhã movendo rumos.
 

 

 

Ticiano, Magdalena

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Jomard Muniz

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

 

 

 

 

 

Florisvaldo Mattos


 

Apogeu dos vagões


Noturnos vagões carregados de amargura
de empilhados produtos e origens,
correi sobre horizontes dos dias!


Composição de espanto corrosivo
acerca-se de mim, vai penetrando
com violência em meus olhos. Vence-me
a carne e os nervos, minha voz,
meu desesperado sangue e cansaço, como
fantasma criminoso que, alta noite,
entrasse em minha casa fortemente
nutrido de perigos e desastres.


Negros, armados de geometria difícil,
rota economia de outonos ressentidos,
duram interiores funerários
sobre sacos sombrios e carregadores.
Barris de angústia, lento soluço,
arrastado gemido sobre trilhos,
correi, sempre correi, sombra
afogada na sombra de sangrento galope.


Confuso grito e fúria registrando
velocidade e pressentimentos,
avançai contra noites, contra os dias
noturnos vagões, consistência
de amarguras espessas e ferragens,
cruel fome de rodas gira-mundo.
 

 

 

Culpa

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Francisco Perna

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Venus Presenting  Arms to Aeneas

 

 

 

 

Florisvaldo Mattos


 

Sistema agrário


Meu canto gravado de um saber oculto de águas
esquecidas fabricarei no campo com suor
de rudes trabalhadores, na chuva sepultando-se
de búzios pontuais, lamentos e desgraças.
Forçosamente rústico caindo sobre troncos,
pelo ar, compacto de húmus e branco vinho caindo
sobre plantações. Sobre homens caindo. Não os sei
com metralhadoras e mortes pesadas flutuando
em suas mãos calosas de sonho e agricultura.
Senão com amargo clamor ao meio-dia, quando
com rijas ferraduras rubro sol golpeia-lhes
decisivo o tórax sombrio. De sangue a sua
permanência rural de árvore e vento.


Materiais e diários, continuamente os vejo
por frios vales e serras recolhendo incertezas
e dores unânimes, pontes que lhes pesam úmidas,
como rios perduráveis, sobre o rosto seguro (banhados
tão por cinzentos rios, girassóis destroçados
vigiando rebanhos e metais decadentes
revisando no tempo em sonora aliança), como
estranhas biografias e equipagens
de passados cavaleiros, em derrota.


Impossuídas colheitas vão durando,
como denso muro de sono cicatrizado
em seu corpo amanhecido sobre a terra, que
pensamentos cruéis e sombras apunhalam.
Meu canto fabricarei com lágrimas e suor
subterrâneo de músculos e ferramentas


Maduram no verde dos cacauais suas asas telúricas.
Nas semeaduras, sob tempestade, reside no solo
seu mecanismo de luta e existência
de incessante labor camponês. Agrário sempre.
Suas armas essenciais, sua geometria agreste
hão de impregnar-se necessárias de úmidas
paisagens agrícolas de horror precipitando-se
sobre homens em silêncio nas estradas pacíficas.
Eles que sonhavam com instrumentos longínquos
terão na cabeça, rugindo sempre uma voz de ameaça,
quando a seus pés um ruído grosso de sacrifícios
vai sua boca de amor sem pão revolucionando.
 

 

 

Um esboço de Da Vinci

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Napoleão Maia Filho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rebecca at the Well

 

 

 

 

Florisvaldo Mattos


 

Quarto monólogo
(O fel das roupagens)


Sobre areia largados utensílios,
à vigilância (naus enraivecidas)
dos cães. Os homens já são água e vento.
Retomemos o rastro dos cavalos,
O tempo regressivo, o sortilégio.
Sopram búzios os corpos esfolados.


Um grito sai das veias. Mutilados
pescoços emigrantes, olhos gastos
revisam espetáculo dos rios:
a guerra está no sangue sem verdades
submissos sem marfim — os absolutos.


Ei, parem. É comigo que eles falam,
os mortos, os prantos dominados.
Ardem de escravidão os nervos mudos.
Para os campos de el-rei, para os poentes,
os trabalhos acendem lábios duros,
os sonhos se aluíram na memória.


É comigo que duelam dedos murchos,
e sou eu quem trafega em suas noites,
piso chão de resgate e pesadelos.
Todos sabem que sou. Os que morreram
guardam o dever retido na montanha,
os ódios recomeçam e há retorno.


Mortos crivam no vidro a fúria toda
do principal momento não vivido.
Humanos gritos (sempre humanos) deixam
nas paredes a intacta geografia
do tempo aprisionado — resistência
do apodrecido chão que os mortos pisam


Meu tempo é medieval: um barão doente
vomita girassóis. Os dentes velhos
removem a canção dos muros frios,
por onde deslizasse mão ossuda,
que dos olhos nascida, florescera
em nave corrompida ou vãos tijolos.


Os bens adormeceram indivisos,
tão feitos do marfim dos patriarcas.
A palavra escondeu as previsões,
súbito amanhecida de mudanças:
o barão é um barão, sempre barão,
doira-se entre soluços e águas mortas.


Olhos pendem acesos da muralha,
riscando negro limo da memória,
e medem a extensão — antessonhado
mundo. Reina ao mesmo tempo inviolado.
Onde o espelho, o relho? Quero um espelho
onde veja o possuído tempo unânime.


o tempo meu, cortando extintos rostos,
apagados gemidos, como lâminas.
Quem vem lá, distante, avançando?
Quem ameaça meu solo, minha fauna?
Quem já próximo está violando o templo?


O espaço jaz imerecido.
Flui a verdade entre caminhos mortos.
Olho em redor: sumiram do terraço
guardas e lavradores — todos hoje
avançam na planície. As armas foram-se.
Devolvido o silêncio, as torres dormem.
 

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

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Luciano Maia