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            Hélio Pólvora 
   
            
            Florisvaldo Mattos: A caligrafia do soluço
 
 Múltipla e 
            complexa, a poética de Florisvaldo Mattos apresenta tantas faces ou 
            fases quantas sejam as circunvoluções em torno de certos temas 
            recorrentes. É certo que o poeta de Água Preta (hoje Uruçuca, que 
            também revelou outro poeta de porte nacional, Jorge Emílio Medauar), 
            se exprime, como qualquer criador, a partir de si mesmo, de suas 
            vivências, convivências, conceituações e confluências; no entanto, 
            longe de desfiar, como alguns de seus contemporâneos, o rosário de 
            dores e queixas pessoais, que muitas vezes não chegam a configurar 
            poesia, nós o vemos armar-se cavaleiro de muitas andanças e 
            inquirições.  Tais expedições, 
            alargando o alcance da obra, o fazem comunicativo, solidário, 
            socialmente combatente. E emprestam à sua voz aquela utilidade que a 
            boa poesia há de ter, sob pena de estiolar-se na retórica sonorosa 
            ou no esteticismo esterilizador.  O destino de uma 
            poesia que se desdobra, apoiada nos fluxos e refluxos da 
            individualidade e, ao mesmo tempo, deixando-se impregnar pelas 
            exteriorizações e circunstâncias da vida grupal, da presença da 
            época com todas as exigências de alinhamento maior ou menor, com ou 
            sem filiação ideológica, é um destino de grandeza.  Talvez a obra 
            fiorisvaldeana, por ser ainda pequena em extensão (o poeta reluta em 
            abrir os seus escaninhos), avaramente cultivada e saciada, ainda não 
            se tenha imposto com o impacto visual de um painel; mas nela, na sua 
            vocação íntima para o canto largo e panorâmico, sente-se ab initio o 
            impulso, o ímpeto, aquela arrancada que rasga horizontes.  Ao longo de dois 
            livros principais, que são Fábula Civil e Reverdor (aos quais se 
            juntam poemas esparsos e poemas novos para constituir o atual A 
            Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior), começamos a divisar as 
            fases da sua lunar navegação. Em primeiro lugar, FM situa-se, 
            reconhece o espaço em volta, atesta a sua identidade, confere os 
            dados essenciais do seu estar-no-mundo. Predominam neste primeiro 
            movimento de sua composição sincrônica os temas de infância: 
 
            À precipitação rural do amanhecer  
            rural retiro à flauta o som mais puro  
            de quem, já acostumado com o escuro,  
            absorto fica vendo o sol nascer.
 
            Caprino olho tecido em bem-querer,  
            preexistente nas coisas que procuro  
            pastoreando sonhos: amargo ver 
            desencontrado olhar longe do muro.   
            Recolho pastoral envelhecída 
            ao som da flauta (pastoral da vída)  
            armado de silêncio e panorama. 
 
            Ela se perde verde no horizonte,  
            como ovelha de luz ou como fonte  
            onde lavo meu sonho. E se derrama.
 
            (Soneto Rural)
 Mattos plasmou a 
            sensibilidade na zona rural e em pequenas cidades do Sul baiano — 
            uma terra quase que encantada. Primeiro, por ser uma das raras 
            regiões férteis do Nordeste, em que a cultura cacaueira, à sombra de 
            resíduos da Mata Atlântica, encontrou guarida. Segundo, porque essa 
            terra, conquistada, afinal, entre o derradeiro quartel do século 
            passado e o início deste século que está a findar-se, originou mitos 
            e lendas; povoada por estrangeiros de variada nacionalidade, 
            disseminou e estabeleceu costumes — tudo isso contribuindo para dar 
            aos escritores formados daquele barro e aviventados pelo sopro dos 
            ventos um timbre peculiar, de epopéia e/ou tragédia, de sensualismo 
            e também de monástico recolhimento.  Alguns 
            sortilégios daquela terra foram antenados pelos sentidos aguçados de 
            um poeta anterior a FIorisvaIdo Mattos, e com o qual, em Ilhéus, ele 
            conviveu e ouviu falar de poesia: o belmontino Sosígenes Costa. Sua 
            obra póstuma Iararana, anotada e editada por José Paulo Paes, 
            ombreia-se a Cobra Norato, de Raul Bopp, e seria, provavelmente, um 
            dos maiores, senão o maior documento poético do ciclo Pau-Brasil da 
            Semana. Uma peça, em suma, de sustentação, caso Sosígenes Costa, um 
            retraído, não lhe tivesse postergado a publicação. Se Cobra Norato 
            exprime a brasilidade nativista da floresta amazônica, Iararana será 
            o canto nativista máximo da floresta atlântica menor mas não menos 
            espantosa.  Um criador assim 
            emoldurado, sobretudo se um desses poetas, como é o caso de FM, 
            capazes de logo pressentir, intuir e desentranhar o poema do estado 
            por assim dizer genesíaco da poesia, nasce com um ouvido especial 
            para as modulações, um imaginário de rédea solta e uma visão que 
            somente irá apaziguar-se nas mais ousadas metáforas. Parecem vibrar 
            em criadores de tal jaez aquelas vozes inaudíveis que os conclamam a 
            cantos nerudianos pelo verso largo, impregnado de uma seiva 
            nativista e percorrido pelo afã de vencer as limitações da ambiência 
            regional. O microcosmo ressoa e alarga, pela metalinguagem, os 
            significados dos temas, aos quais imprime dimensão supergeográfica, 
            sobre-humana. A força do mito alimenta o halo dessa poesia 
            encantatória.  Engajados 
            implicitamente nesse insuspeitado projeto de grandeza, na poética 
            tanto quanto na prosa, os criadores mais expressivos da Região 
            Cacaueira (na poesia, Sosígenes Costa, Jorge Medauar, Florisvaldo 
            Mattos, lldásio Tavares) já não se satisfazem com o aspecto 
            descritivo, ilusório, de uma realidade imediata; lançam os temas e 
            com eles alongam e densificam o canto. A ressonância tenderá a 
            ultrapassar os limites da individualidade. O canto de temática 
            coletiva se distinguirá pela extraterritorialidade. Os cantos 
            nutridos pelas imagens e emoções de infância se interiorizam para, 
            igualmente transfigurados, adquirirem afinal aquela cristalização de 
            prementes significados humanos.  O surrealismo há 
            de regurgitar, assim, nas composições em que Florisvaldo se reflete, 
            não de forma narcisística, senão com a consciência de uma 
            identificação umbilical com a telúrica ambiência da sua emotividade.
            
 
            Seguramente amo-te, ó chuva, quando  
            das altas serras sobre os vales baixa  
            tua segura astrologia de horóscopo e surpresa,
             
            e uma saúde operosa de existência  
            cresce sob esta floresta de cercas e arames 
            Sob esta esperança frágil dos arbustos.  
            Em tua verde matéria de sonho elaborado  
            com amargura, com olhos e músculos fatigados
             
            abre-se um caminho de experiência vespertina,
             
            um diurno sabor de apodrecidas madeiras  
            sobre o solo. Um odor rústico de produção
             
            e mantimentos. Abre-se como fruto repartido
             
            entre lavradores, teu mecanismo de fartura,
             
            teu humano suor de tendência preciosa.
 
            (Os Elementos e a Chuva)
 Decerto — e o 
            fragmento do poema acima bem o atesta — seria exagero falar-se numa 
            "escola de Sosígenes". No entanto, há no esforço de recriação ou 
            transfiguração poética de FM um traço melódico, sensorial, de 
            possível ressonância sosigeneana. Um pendor para o requinte verbal, 
            para o colorido, para um luxo orientalista de imagens e metáforas 
            que se precipitam como búfalos de fogo.  Sabemos que FM 
            teve o privilégio de ouvir Sosígenes Costa, algumas vezes, na 
            Associação Comercial de Ilhéus, onde o poeta dos crepúsculos e das 
            vibrantes tonalidades de amarelo havia instalado a sua tebaida. E 
            sabemos também que, ao se transferir para Salvador e iniciar-se nas 
            letras, FM o fez animado pelo poeta a quem admirava e a cujo ideário 
            estéticotemático não teria permanecido indiferent.e. Sem a intenção 
            de estabelecer um fio mestre-discípulo, mesmo porque a artesania 
            florisvaldeana é menos pictórica, menos exótica e menos folclórica, 
            apesar da grapiünidade dos primeiros versos, ousaríamos dizer que os 
            dois poetas do Sul baiano, em linha informal de sucessão, foram 
            poetas de um deslumbramento verbal mais bizantino do que grego — na 
            medida em que a arte bizantina, já espelhando a "decadência" dos 
            temas e dos heróis, recobre de paramentos artísticos as imperfeições 
            e precariedades dos homens e da vida. E o caso de Kaváfis, aliás 
            outra das prováveis âncoras de FM.  Já na sua 
            primeira fase FM surpreende pela mudança de timbre e largueza de 
            vistas. Data dessa época uma de suas realizações mais compósitas, os 
            poemas ferroviários em que ele acompanha, com a lucidez do adulto e 
            o coração de menino, o trem de-ferro Ilhéus-Conquista, que não 
            passaria de Ubaitaba e foi desativado na década de 60. Mas FM, nos 
            arquivos de sua lembrança há de ter privilegiado os apitos do trem, 
            as chegadas e partidas, as estações, a paisagem a desfilar pelas 
            janelas, o movimento de passageiros e cargas, os doces e frutas 
            apregoados por meninos e mulheres negras. 
 
            Noturnos vagões carregados de amargura 
            de empilhados produtos e origens, 
            correi sobre horizontes dos dias ! 
            Composição de espanto corrosivo  
            acerca-se de mim, vai penetrando  
            com violência em meus olhos. Vence-me  
            a carne e os nervos, minha voz,  
            meu desesperado sangue e cansaço, como  
            fantasma criminoso que, alta noite,  
            entrasse em minha casa fortemente  
            nutrido de perigos e desastres.
 
            (Apogeu dos Vagões)
 Imagem forte, 
            essa do trem. Uma lembrança vívida que mais se incorpora com a 
            passagem do tempo e a ânsia de reflexão. O canto se torna então 
            imperioso, porque em poetas desse jaez, que se deixam arrebatar pela 
            emoção, o sentimento assume a dianteira das tecnicalidades, tem 
            expressão própria: 
 
 
                        
            O trem 
            verde e vermelho como a vida 
            mas pode-se agregar ocre e amarelo 
            se é de homens e coisas que se fala
 
                       
            O trem 
            ânsias de infância 
            arrimo de velhice
 
                      
            O trem 
            rebanho de acenos 
            rama flamejante
 
                     
            O trem 
            ágil pesadelos viação da aurora
 
            (Ferroviaura)
 O trem de Água 
            Preta apita nas estradas mentais do poeta, em todos os caminhos e 
            jornadas até hoje intelectualmente percorridos. A emoção se 
            transfigura para reforçar o testemunho: 
 
            O maquinista da 15 era Paizinho 
            só ele percebe o que lhe dizem toros 
            estalando como ossos na fornalha. 
            Paiva ia na 12 engolindo rampas. 
            A 13 parecia o Cabeçorra  
            sacolejando-se em Banco do Pedro
 
            (Idem)   Sim, o trem era 
            mais um monstro da mitologia cacaueira. Escoador de riquezas, 
            decerto, e também instrumento de submissão, máquina lírica, sonho de 
            conquistas que embalavam o anseio de lonjuras, a corvéia dos 
            camponeses e a cornucópia dos fazendeiros que, em llhéus, 
            descarregavam o seu cacau. O maquinista Adriano Lopes Moura, de mais 
            saudoso apito, ficou. Mais que um nome - um símbolo ulisseano de 
            audaz navegador por entre os bosques dos cacauais.  Da ambiência 
            cacaueira, de que o trem-de-ferro há de representar uma ascensão e 
            queda da grandeza material, Florisvaldo Mattos passa a outro de seus 
            cantos gerais: a figura de Garcia D'Ávila, metade história, metade 
            lenda, é revivida num longo poema, o louvor a um barão assinalado 
            que desbravou e povoou o sertão da Bahia, ávido de ouro, feitos e 
            fama. Canto majestoso e largo, em estrofes que seriam camoneanas 
            caso estruturadas no modelo da oitava rima — mas sobremodo um canto 
            moderno, de teor surrealista, em que vigília e onirismo se 
            justapõem, envolvidos na intemporal neblina das épocas. 
 
            Há poentes: aves renascentes  
            armaduras cintilam aço e escamas.  
            Outono muge de ermos reluzente.  
            Abril (diurno algoz) que somos nós ?
 
            Sob desfraldados relhos dorsos tesos.  
            Metais fuzilam. Descem das narinas  
            herança e gelo de armas latifúndio  
            raízes da memória, rastros velhos  
            presença de chão rútilo/meus sóis 
            sóis ultramarinos. Aéreos potros puxam 
            meus avós: galope surdo anterior.
 
            (A Domação das Pedras)
 Garcia D'Ávila, 
            conquistador, sonha como sonharam Espinosa, Navarro, Soares de 
            Sousa, Raposo Tavares, Borba Gato, para não mencionar os grandes 
            Cortez e Colombo. Como sonhou o próprio Orfeu, sonhado, ressonhado e 
            entressonhado herói de um sonho nebuloso. O poema sobe à condição de 
            canto primeiro da terra, de canto da descoberta e da feitoria. É 
            brasílico como outros tantos, na medida em que FM recolhe uma 
            tradição literária secular.    
            Rei, reino meu teço de chamas, reino  
            ausente de escrituras. Sesmarias  
            reúno, trituro búzios cor de níquel,  
            virgens de passo e voz, estranho aquário.
             
            De boa mão consigo-os, laborando  
            coragem de improvadas lideranças. 
 
            (Cinco Monólogos de Garcia Dávila)
 Louva-se neste 
            poema o sabor do destino e da aventura humanos, muitas vezes 
            sobrepostos às precariedades do ser, às crueldades e gestos de 
            grandeza. Imagens se atropelam na cavalgada desembestada dos versos, 
            na sucessão vertiginosa de estrofes varadas pelas modulações 
            internas, pela rima que não foi procurada e no entanto ressoa, pelas 
            metáforas que fazem o verso tinir, relampaguear, estilhaçar-se nas 
            lanças e couraças; um verso por vezes ondulado e nervoso, a 
            estrondear nos cascos dos cavalos, a suar nas crinas eriçadas dos 
            cavalos. O poeta jamais foi hermético a ponto de lhe pedirem a chave 
            — aquela clef mallarméana. Os significados recônditos acabam 
            esclarecidos pela cumplicidade de quem lê (ou de quem ouve), abertos 
            um a um por um estado assemelhado de sensibilidade poética. 
 
            Meu tempo é medieval:  
            um barão doente vomita girassóis,  
            Os dentes velhos removem 
            a canção dos muros frios, 
            por onde deslizasse mão ossuda,  
            que, dos olhos nascida, florescera  
            em nave corrompida ou vãos tijolos.    
            (Idem)
 Tendo a sua 
            metalinguagem, o poeta tem a sua metafísica, o poema será nela um 
            compromisso de ajuste entre a forma da obra, o artefato, e o seu 
            teor. Florisvaldo somente mudará de tom, tornando-se menos 
            conceptual e mais factual, isto é, abrindo os arcanos, em certas 
            peças de nítida poesia engajada que caracterizam Fábula Civil — 
            aliás, o seu primeiro livro publicado. E no entanto, os temas 
            propostos pela guerra mundial, pela ameaça nuclear, pela destruição 
            de cidades e civilizações amadas, ainda que brandidos como bandeiras 
            de campanha, não chegam a assumir in totum aquele engajamento da 
            literatura participante.  Mesmo 
            sensibilizado pelos temas de época, e portanto circunstanciais no 
            seu mapeamento poético pessoal, temas que lhe despertam a indignação 
            e o inclinam a uma atitude comicial, o poeta mantém o pulso, sofreia 
            o ímpeto da denúncia — justamente porque, em favor do desempenho 
            artesanal e pensamental do poema, não quer ficar preso à denúncia 
            pura e simples. A denúncia serve-lhe de meio. E fácil verificar em 
            FM uma tendência a conjugar-se sem perda da identidade lírica 
            básica, sem o risco de uma possível renúncia à individualidade.  Assim contido, 
            assim comprometido com o poema que se exprime mas não aliena as 
            artes da sua secreta artesania, FM se enquadra então naquela 
            estreita faixa entre o indivíduo e a massa, entre o ser e o cidadão, 
            o solitário combatente e o poeta alistado na brigada internacional 
            pela liberdade.  No poema 
            "Claro", ele dirá que a liberdade é o seu nome e a razão, o 
            sobrenome. E em outro, "A Edição Matutina", nós o vemos assumir 
            responsabilidades novas, ditadas pelas circunstâncias de vida e de 
            tempo: 
 
            Queremos uma pauta 
            um roteiro qualquer 
            Não o que leve ao esclarecimento  
            de todas as culpas 
            Não buscamos desvendar o impossível  
            Queremos uma pauta  
            um caminho (por exemplo)
 
            Que comece pelos itens das lojas de brinquedos
             
            prossiga com a listagem para as horas de lazer
             
            Que enumere os chopes de todos os botequins
             
            Que reproduza todas as gargalhadas (...)
 O exercício de 
            cidadania praticado en état de toute lucidité leva o poeta, apesar 
            da sua solidão essencial, a considerar-se solidário, comungante, 
            irmanado. Os versos adquirem gestos e atitudes de uma fina nobreza 
            de sentimentos, de uma solidariedade franciscana. Esta será outra de 
            suas fases ou faces — a do "sentimento do mundo" a que se referiu 
            Drummond de Andrade, aquele Drummond de A Rosa do Povo.    
            Não sou mais de outro tempo. Junto sobras 
            De musgo e limo com que a pedra se assume. 
            Serena, a dignidade da renúncia.
 
            Com que júbilo vejo o peito hoje órfão 
            Das ilusões que a vida alimentavam. 
            A alma deseja apenas suportar.
 
            Quero lavrar com águas e flores este adro, 
            Nele podar o espinho dos dilemas 
            E escrever no muro: "resista, sempre".
 
            (Escritura em Pedra)
 Florisvaldo 
            Mattos, poeta baiano e grapiúna, aquele mesmo que, menino, ouvia e 
            identificava o apito dos maquinistas, alista-se na Brigada 
            Internacional da Poesia em socorro de Espanha. Ele marcha com Rafael 
            Alberti, com Pablo Neruda, com os poetas espanhóis e de outras 
            nacionalidades que sofreram pela Espanha e prestaram suas "homages 
            to Catalonia" (recorro ao título do livro de George Orwell sobre sua 
            participação na Guerra Civil Espanhola). De modo que, se alguém 
            perguntar, em tom de censura, "dónde están los poetas andaluces?" 
            (também poderia perguntar onde estão os poetas de Granada, da Bahia, 
            do Chile e México, e de França), o grapiúna e baiano Florisvaldo 
            Mattos responderá: presente.    
            De um certo cabedal de sonho e fé  
            trago lumes que são meu patrimônio.  
            De Lorca, de sua luzente aurora,  
            molhado ainda do orvalho de Visnar,  
            galos que bicam a casca do dia.  
            Lavor cigano, gestas andaluzes, 
            objetos de metal, carabineiros. 
            Filígranas que o murmurante Dauro 
            tece à sombra do Alhambra de ouro e púrpura
             
            na surda manhã lavada de passos e balas. 
            (...) 
            Preso ao solipsismo de minhas ânsias,  
            a fronte em febre, coração aos baques,  
            vou direto à raiz do sofrimento.  
            Arqueólogo da insônia, a sós, percorro  
            bibliotecas e arquivos burocráticos.  
            Lá folheio compêndios, sigo mapas.  
            Sobre o sal do silêncio, em viva tinta,  
            relatos que de angústia são lembretes. 
            (...) 
            Paro e vejo (são cinco da tarde em ponto)
             
            debruado pela sombra, baralhado  
            ao verde que recorta o Manzanares,  
            um partido de gente que escreveu,  
            em latinoamargo abecedário  
            e com a caligrafia do soluço, 
            a história que é de sonho e luta vã, 
            além do medo, além da compreensão.
 
            (A Caligrafia do Soluço)
 Esse seu apego à 
            Espanha é mais fundo do que a temática que parece tê-lo inspirado. 
            Vem de mais longe. Vem da extrema musicalidade do verso de um 
            António Machado, de um García Lorca, em que, além do sentimento 
            nativista ("no puedo viver fuera de los limites geográficos de 
            España", afirmou Federico García), há o toque sensual em relação à 
            mulher, aos frutos, ao vinho e à natureza. Brota igualmente da 
            temporada espanhola, para estudos, que Florisvaldo passou em Madrid, 
            Málaga, Santiago de Compostela, Toledo, Málaga, estendendo-a ao 
            Marrocos, em jornadas que lhe acentuaram o antigo sentimento de 
            hispanidad.  De todos os 
            poetas espanhóis, do Siglo de Oro aos contemporâneos da Guerra 
            Civil, FM identifica-se mais com os versos puros, quase bíblicos na 
            sua singeleza fundamental, revestidos daquele amor que significa 
            comunhão, desejo de purgar pecados, elevação da alma e, no reverso, 
            carnalidade, sensorialismo e sensualismo. Lorca, como os poetas 
            espanhóis em sua maior parte, adotou, como herança do barroco, a 
            caligrafia lírico-trágica do soluço, oscilando então entre o pecado 
            e a sublimação/sublimidade que, aliás, marca a poesia da maturidade 
            de um ancestral lusobaiano-hispano de Florisvaldo Mattos, o 
            irreverente moleque safado e lírico Gregório de Mattos e Guerra. O 
            sensualismo/sensorialismo peninsular, de nascente ibérica, forjado 
            na fogosidade dos árabes, exalta os sentidos, prolonga na boca o 
            sabor do vinho capitoso, ama até mesmo a idéia do amor.  Essa escola de 
            hedonistas firmou uma devoção aos prazeres das “nourritures 
            terrestres". São os epicuristas que, fazendo poesia, não conseguem 
            sonegar certos encantos especiais da vida. O vinho é um deles — e ao 
            vinho, justamente, um dos companheiros de geração de FM, embora lhe 
            fosse imediatamente anterior em idade, o poeta Godofredo Filho, 
            dedicou sonetos notáveis. E para Godofredo, FM lapidou um poema 
            saudoso, desses que se lêem com um soluço atravessado.  As artes do 
            viver baiano desses calejados trabalhadores intelectuais, mas 
            epicuristas de espírito, fazem das suas poéticas e obras em prosa, 
            tributários do Poema-Rio da aventura humana que se está escrevendo 
            desde a Hélade, e que ao longo dos tempos engrossa as águas, e por 
            ele somos arrebatados e levados a buscar o estuário de efêmeras 
            glórias/inevitáveis frustrações/ beneditina resignação.  Poetas ou não, 
            nós nos comprazemos em viver sobre os louros fanados das ilusões 
            perdidas. E quem melhor que um bom poeta para exprimir esses estados 
            de ânimo e delíquios de alma ? Como bem entoou Florisvaldo Mattos,    
            Sucede que um dia o peito abre-se  
            mais aurora e flor mais sentimento  
            e resume em ser o que era ter  
            tanto melhor morte traz a sorte  
            de correr liberado noutros cantos.
 
            Sucede que um dia renuncio 
            ao querer resoluto que apodrece  
            em lavra final de tempo e sal.  
            Assim despojado de sombrias asas  
            me levem que chegarei em breve. 
            (...) 
            Sucede que um dia me conheço  
            afinal. Sou todo companheiros. 
            Labirinto de chagas mas por onde  
            corre um raio farto de vontade  
            faço do amor aos outros meu caminho.
 A poética 
            florisvaldeana abre-se e fecha-se qual um leque. Em qual das duas 
            pontas estará aquela Água Preta das tardes de agosto, onde "aves 
            adotam poses de cegonha / sobre muros pintados de cinzento"? Há 
            sempre um rio a lamber os carcomidos alicerces da infância. O 
            grapiúna Florisvaldo, trazendo no peito um sufocante sentimento do 
            mundo, cheio de cantares de amigo, debruça-se na ponte do rio da sua 
            aldeia: "Olho o rio que sangra minha infância;/ Me despeço de mim - 
            lá, do que fui, / do que somente fui, não mais serei". 
 
            
             
            Leia Florisvaldo Mattos |