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Elmar Carvalho


 

Sete cidades
(roteiro de um passeio poético e sentimental)


I – Pórtico Triunfal

Sete Cidades
de sete vezes sete
véus de encantamento.
Cidade encantada
sempre desencantada
para novos e mais
deslumbrantes encantos.

Cidade de pedras amaciadas
pelos toques
e retoques
dos dedos
delicados diáfanos
e abstratos do vento
e da eternidade.

Cidade esculpida
pela carícia suave
do vento e do tempo.
E das forjas do vento e do tempo
emergem as esculturas
de inefáveis linhas
e tessituras.

Sete Cidades:
sonho feito
de pedra
pedra feita
de sonho
sonho que se fez sonho
na concretude da pedra.

Ó formas sinuosas
de góticas catedrais,
barrocas formas suntuosas
que se excedem e se superam
no além e no demais.
Formas de pétalas pétreas
em volteios e volutas sem iguais.


II – Figuras e Mistérios

A Serra Negra
celestialmente
se azula nos longes
do tempo e da distância.

A Biblioteca imersa
em silêncio e mistério
misteriosamente abre
suas páginas de pedra.

Ondas cavalgantes e truncadas
em pedras bordadas
na memória imortal
de um mar que naufragou,
de fenícios encalhados
nos roteiros e mapas
de esotéricas astronomias
sobrevivem nos arenitos
das marés petrificadas.

A Gruta do Pajé
deserta de tudo
deserta até das lembranças
das antigas pajelanças.

Vale dos Penitentes.
Vale de abandono e solidão.
Vale de lágrimas secas, esturricadas.
Vale de desolação.
Vale de lágrimas abortadas.
Vale de um deus sem coração.

No Forte
um Guarda de pedra na guarita
em rigidez mortuária
debalde aguarda
um outro guarda
para o ato de rendição.
Um Canhão
aponta a mira
de Telescópio
para uma outra
desconhecida dimensão.

A Tartaruga
passeia parada
no tempo e no espaço
com seu casco construído
de brisa e eternidade,
abrigando macambiras
de espinhentas espadas desfolhadas.

Do alto do Vale dos Lagartos
a pré-história nos contempla
dos olhos pedrados
dos dinossauros.

Serra da Descoberta:
em cada passo uma surpresa
em cada olhar uma nova
e surpreendente descoberta.
De suas gretas agres, agressivas e agrestes
a cabeça tosada de coroas-de-frade
se perdem em êxtase e contemplação.

Os líquens são impíngens
e manchas que se derramam
na epiderme macia
ou áspera das pedras.

No Arco do Triunfo
passam e perpassam
a Vitória e a Glória
desse reino de pedras.

A pedra se faz carne
na beleza humana
da Mulher Reclinada.

Imemoriais mistérios e arcanos
ainda persistem impregnados
na Furna do Índio,
povoada de pávidos fantasmas
desgarrados.

A insustentável leveza
da pedra se sustenta
no Jardim Suspenso
da pétrea Babilônia,
onde os segredos e sortilégios
espiam da Janela
e escorrem por veias, vênulas,
túneis e túmulos.

No Portal das Almas
os fantasmas passam
e sussurram disfarçados
no corpo e na voz do vento.

Inscrições rupestres
são o vestígio e a denúncia
de um povo espoliado,
trucidado, dizimado.

Em pedra
um grito continua
entalado na garganta
da efígie/esfinge
de Dom Pedro I.

Os Três Reis Magos esperam
extáticos e estáticos
na perenidade paciente da pedra
o advento do rei
desse reinado de pedra.

Ó glória,
ó deslumbramento
de sonho, de fastígio,
de alumbramento e encantamento
desse reino encantado,
desse reino em pedra emparedado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

Elmar Carvalho


 

Cântico do corpo amado


Teus cabelos
às vezes são filigranas escorridas
tecidas em pura maciez.
Às vezes são algas e caracóis
encrespados em ondas e espumas
esculpidas pelo vendaval.

Tua tez
revestindo a superfície
veludosa e bela de tua carne
é película de esplêndida
fruta tropical.

Teus olhos
às vezes sombrios
pelos enigmas e mistérios
de tua alma de mulher
às vezes resplandecentes
pelo relâmpago do riso
são dois lagos – calmos ou agitados –
em que os meus imergem e se perdem.

Tuas orelhas
são conchas
em labirinto de perfeito lavor
e nelas escutas e escuto as vozes
dos búzios e o chamado do mar.

Teu nariz
ergue-se em cordilheira
e de suas cavernas
emerge o vento de teu respirar.

Tuas sobrancelhas
são arcadas góticas
e teus cílios tessituras persas
do frontispício de teu altar.

A tua boca
onde as palavras lavras
em forma de canção
são retábulos e ornatos
do sacrário de teu ser.

Teus sorridentes lábios entre-
mostram o dique/arrecife
de concha, ostra e coral
do límpido colar dos dentes.

Pedestal firme e flexível
de teu rosto é o teu pescoço
- belo e singelo colosso.

Teus braços
são baraços que
enforcam e fascinam
serpentes que
atraem e traem.

Tuas mãos
são plumas e verrumas:
afagam e esmagam.

Teus seios
alçados em sublime formosura
de tenras carnes e tênues epidermes
são Olimpos
que meus dedos alpinistas escalam
para (re)colher o hidromel
no céu dos mamilos sensitivos.
Os pomos
de teus seios tomo
e eles me enchem as mãos.

Pelas dunas do deserto
de teu ventre fértil e belo
encontro o oásis na cacimba
de teu umbigo em que naufrago
perigo e me embriago.

De teu umbigo
minhas mãos e meus olhos
correm e escorrem
pelas vertentes e grotões
de tuas passagens/paragens
mais secretas e seletas
e se saciam
no frescor de tuas nascentes,
onde estão o lodo e o húmus
de um Nilo todo dádiva.

Na tecelagem da púbis
- tapete mágico de penugem e babugem –
e na fenda dos lábios
que são pétalas e conchas
recende a maresia
que reacende a velha flama
de um deus pagão.

Minhas mãos apalpam
tuas coxas roliças
de macia carnação
e descem pelas dobradiças
perfeitas de teus joelhos
circundam teus artelhos
e giram ávidas em torno
de teus pés de artesanal contorno.

Tuas pernas formam arcos
de onde são arremessadas
as flechas de meus braços
em busca de outros acidentes
geográficos anatômicos.

Tuas nádegas
às vezes árdegas gazelas
às vezes mansas aves de estimação
às vezes retesas setas acesas
às vezes quedas texturas de veludo e seda
desenham arcos e penhascos
                            rochedos e penedos
                desfiladeiros e socavões
em que meus olhos
de tamanha beleza se abismam
na vertigem que alucina e ilumina.

Meus dedos
cegos de tanto encanto
tateiam e tenteiam
se enlevam e se enleiam,
pelos enlevos e relevos
           mimos e cimos
atavios e baixios
              côncavos e recôncavos
              entrâncias e reentrâncias
da geomagia de teu corpo.

Navegam minhas mãos
pela sinuosidade litorânea
da enseada de tuas ilhargas
e do cabo bojador
de tormentas e esperanças
de tuas ancas – âncoras –
e desbravam/devassam
as volutas voluptuosas
de tua coluna (grega) dorsal
e se perdem na voragem/miragem
das ondas revoltas
de teus cabelos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Acis and Galatea

Elmar Carvalho


 

Desiderata (*)
(colagens)


Bebe teu vinho,
come teu pão,
agradece pelos amigos
e apazigua teu coração.
Nada temerás,
pois o Senhor é teu pastor
e nada te faltará.
Nas mãos de Deus deposita
teu coração e descansa.
Sem o sal sutil e sublime do amor
os mais sagrados sentimentos serão
simples sinos de latão.
Muitas pessoas, assim como as estrelas,
precisam apenas ser percebidas.
Dá-lhes um pouco de atenção.
Mesmo as mais longas e heróicas jornadas
começam com o pequenino passo inicial.
Começa, pois, tua missão.
Observa a beleza das coisas e sê belo,
ao menos em espírito ou no desejo de ser.
Distribui prodigamente o teu sorriso
e a tua palavra amiga, que nada te custam,
e no entanto têm valor incalculável.
Vive o tempo presente,
da melhor forma que puderes.
Não te perturbe o passado,
fantasma que não virá, nem o futuro, espectro
das coisas que ainda virão, se é que virão.
Sê bom e caridoso contigo mesmo:
lança o bumerangue da bondade e da caridade,
que te há de retornar maior e melhor.
A ninguém te compares,
para que não fiques vaidoso ou amargurado,
porque hão de existir
maiores e menores,
melhores e piores do que tu.
Diz a tua verdade e a dos outros escuta:
todos têm a sua verdade, mesmo os tolos e insensatos.
Foge do ruído e da pressa e mergulha na paz do silêncio.
Evita os barulhentos e agressivos,
para o bem de teu espírito.
Sem deixares de ser tu mesmo,
mantém boas relações com todas as pessoas.
Desfruta de teus êxitos e de teus projetos.
Por mais humilde que seja,
mantém o interesse em tua profissão,
pois ela é a tua dádiva e a tua fortuna.
Por causa dos enganos e armadilhas, sê cauto,
mas não esqueças que a virtude existe e predomina.
Em todo lugar existe bondade e heroísmo.
Não enganes a ti mesmo e não finjas afeto,
mas não sejas cínico no amor.
Malgrado as asperezas e desenganos,
o amor é perene como o próprio tempo
e nenhum dom é maior do que ele.
Segue o conselho dos anos, e altiva
e docilmente abandona as coisas da juventude.
Aprimora e cultiva a força de espírito,
para não fraquejares na adversidade.
Muitos temores são filhos da fadiga e da solidão.
Sobre uma benéfica disciplina,
sê tolerante contigo mesmo
e com os outros.
Assim como as plantas e as estrelas,
és uma criatura do universo
e mereces estar aqui.
Ainda que te pareça errado,
o universo se desenvolve como deveria.
Mantém a paz com Deus,
como quer que o concebas.
Não obstante todos os percalços
e acidentes de percurso,
mantém a paz com tua alma.
Apesar das ruínas
e dos sonhos malogrados,
este é um mundo maravilhoso.
Sê prudente e esforça-te
para ser feliz.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

Elmar Carvalho


 

Egocentrismo


espirrei
na réstia de luz
da janela de meu quarto
e fiz surgir um
               arco-íris
               arco-do-triunfo
sob o qual
napoleonicamente passei
sobre o qual caminhei
em busca do
              velocino de ouro
coroado com o
              l’ouro
de minha própria
    alquimia.

 

 

 

 

 

 

03.11.2006